Não me lixem com a história do voto de protesto
Há uma explicação muito em voga, e não é recente, para os votos no Chega: é um voto de protesto. As pessoas estão insatisfeitas, e têm boas razões para isso, e mostram-no votando no André Ventura.
A tese, que tem vários profetas no espaço público, foi bem resumida por João Miguel Tavares: "Quem vota em Ventura não está a dizer que gosta do Chega. Está a dizer que não gosta do estado a que a política portuguesa chegou." JMT, diga-se, faz questão de deixar claro que não tem nenhuma simpatia por Ventura.
As pessoas vivem mal, sentem que há muita corrupção, percebem que os filhos vão viver pior do que elas, não se sentem representadas e decidem protestar votando no Chega e no André Ventura.
Para início de conversa, está por provar que o grosso das intenções de voto neste personagem seja de pessoas que vivem mal. O meu privilegiado meio social diz-me exatamente o contrário, mas, claro está, não o vou tomar como prova do que quer que seja.
Estas pessoas revoltadas não são racistas, não são xenófobas, não são contra o Estado de direito, não são a favor da prisão perpétua, não querem que ninguém seja castrado quimicamente, não querem deixar ninguém sem o mínimo de meios de subsistência, não acham que meio país vive à custa de subsídios ilegítimos, não são a favor de se condenar alguém sem julgamento. Nada disso, estão a protestar e decidem votar num partido que defende tudo isto e num indivíduo que já ninguém ignora ser um oportunista e um aldrabão encartado. Nas palavras de JMT, num demagogo e troca-tintas.
Não, as pessoas não gostam do Chega, mas só têm esta forma de exprimir o seu descontentamento com o sistema.
Há aqui logo um pequeno problema. Como não há uma caixinha no boletim de voto em que se pondo lá a cruz se diz que aquele voto é só para mostrar revolta ou descontentamento, não há outra forma de se contar aquele voto que não seja como apoio às medidas propagadas por aquele partido: implementar as suas belas ideias, seja como partido maioritário ou como apoiante de uma solução governativa. É que no boletim também não há uma zona de comentário em que se possa escrever "atenção que a minha revolta não é suficiente para que este voto tenha validade se o Chega passar os, digamos, 10%".
Claro, as pessoas que votam no Chega não são racistas nem xenófobas nem querem acabar com o regime. É impossível tanta gente ser assim. Lamento informar, mas é. A propósito, muitos dos que pensam que quem apoia o Ventura não é por acreditar no que ele diz são também os que dizem não haver racismo estrutural em Portugal.
Basta estar um bocadinho atento para não ignorar, dando outro exemplo, o enorme coro de pessoas que desprezam valores como o da presunção de inocência e o da não inversão do ónus da prova ou que acham que o Estado de direito é uma abstração que não quer dizer nada (até na comunicação social tradicional não faltam).
Não tenho a mais pequena dúvida de que as pessoas que votam em racistas e xenófobos não se consideram isso, como também quem acha que direitos fundamentais só servem para defender os ricos e poderosos não acha que é contra o Estado de direito. Claro, o Ventura também não é. Chamar branco a um branco é igual a chamar preto a um preto, certo?
Não, estas pessoas não nasceram com o Ventura. Elas existiam, sempre existiram. Não tinham era ninguém para corporizar aquilo em que pensavam. Diziam-no, mas não tinham uma voz pública que o exprimisse. Agora têm o seu porta-voz. Será um aldrabão, mas diz "as verdades" que são as deles.
Aliás, basta pensar no motivo pelo qual o troca-tintas escolheu aquele discurso: se não pensa assim (sabe-se lá o que pensa), porque diria o que diz se os que visava angariar como apoiantes também não o pensassem? Se o problema dessas pessoas é estarem revoltadas, porque não vai aos motivos dessa revolta, em vez de caluniar os mais pobres e discriminados e acicatar o ódio, enquanto promete cortar os impostos dos mais ricos e retirar direitos sociais a toda a gente? Os revoltados querem mesmo ficar sem escola pública, sem Serviço Nacional de Saúde, querem mesmo pagar a mesma taxa de IRS que os milionários? Ou ignoram tudo isso porque gostam de ouvir dizer mal dos ciganos, chamar bandidos a quem vive em bairros da lata e parasitas a quem recebe rendimento social de inserção?
Sim, há gente da minha comunidade que não partilha dos meus valores, que não acredita que no atual quadro de valores constitucionais podemos fazer e tornar a nossa comunidade melhor. Porém, não os insulto dizendo-lhes que não acredito que quando votam não acreditam no que votam.