"Não há intenção de voltar atrás" nos manuais gratuitos até ao 12.º ano

PCP e Bloco apresentam projetos de lei para que os manuais gratuitos no ensino público deixem de estar dependentes de acordos no Orçamento do Estado e da relação de forças na Assembleia da República.
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É uma das medidas que marcou a legislatura que agora está a chegar ao fim na área da Educação, mas pode muito bem sobreviver à geringonça. Essa é pelo menos a intenção do Partido Comunista e do Bloco de Esquerda, que nesta quarta-feira apresentam no Parlamento projetos de lei que tornam gratuitos, em definitivo, os manuais escolares para os alunos do ensino público. A ideia é que a medida deixe de estar dependente de acordos no Orçamento do Estado e de futuros jogos de forças na Assembleia da República.

E olhando para o atual equilíbrio parlamentar, tendo em conta que a direita nunca foi adepta da forma como o projeto avançou - ainda recentemente, a propósito de um relatório do Tribunal de Contas, o deputado social-democrata Duarte Marques lembrou que o seu partido sempre discordou desta medida e que preferia mais verbas para a ação social escolar -, a aprovação está dependente do voto socialista.

"Nós no PS não antecipamos posições nesta matéria", começa por avisar o deputado socialista Porfírio Silva ao DN, que ainda assim não deixa de fazer uma "apreciação positiva" da medida, que começou por abranger os alunos do 1.º ciclo, neste ano foi alargada até ao 6.º ano e no próximo ano letivo vai chegar a todos os estudantes das escolas públicas até ao 12.º.

O deputado do PS, que faz parte da comissão parlamentar de Educação e Ciência, deixa mesmo uma frase que é sintomática do que podemos esperar para o futuro: "Não temos intenção de voltar atrás nesta medida", garante Porfírio Silva, que ainda assim alerta para a necessidade de repensar a medida, não por questões orçamentais, "mas mais na relação que as famílias têm com os manuais e nas vantagens pedagógicas que podem trazer". Mas o que quer, na prática, isso dizer? "É esperar pelas propostas que o PS vai apresentar esta quarta-feira na discussão dos projetos", responde Porfírio Silva. A votação dos dois projetos deve acontecer apenas na sexta-feira.

Consagrada no OE 2016

No Orçamento do Estado para 2016 foi consagrada a gratuitidade dos manuais para todas as crianças que iniciassem o seu percurso escolar no ano letivo 2016/2017, medida que foi alargada no ano de 2017 a todos os alunos do 1.º ciclo do ensino básico. Iniciativa que, lembra o PCP na proposta que será apresentada no Parlamento, foi inscrita na posição conjunta com o Partido Socialista, tendo em vista a "progressiva gratuitidade dos manuais escolares para todo o ensino obrigatório enquanto objetivo a atingir de forma inadiável".

Ainda na campanha para as europeias, quando confrontado com as conclusões do relatório do Tribunal de Contas, o candidato comunista, João Ferreira, reforçou que "neste, como noutros domínios, a necessidade que se coloca ao país é a de avançar, não é de andar para trás". Frase a fazer lembrar a sublinhada agora por Porfírio Silva.

Em declarações ao DN a deputada bloquista Joana Mortágua não vê razões para que os partidos que têm aprovado a gratuitidade dos manuais em sede orçamental não convertam agora a medida em letra de lei, o que na prática seria a segunda alteração à Lei 47/2006.

Apesar de à esquerda se fazer um balanço positivo, Joana Mortágua coincide com uma preocupação de Porfírio Silva - e, diga-se, dos diretores das escolas: A reutilização tem de ser afinada. "Apesar de haver, e bem, a obrigação de reutilização, o que se percebe é que os manuais não estão preparados para isso", admite Joana Mortágua.

E é no 1º ciclo que o problema é maior, explica Filinto Lima, presidente da Associação Nacional de Diretores de Agrupamentos e Escolas Públicas (ANDAEP), que reconhece que na escola que dirige, em Gaia, é difícil reaproveitar os livros até ao 4º ano. "A forma como os manuais do 1º ciclo são concebidos inviabiliza a rua reutilização quase a 100%. Têm espaços em branco para que os alunos escrevam, outros para desenhos. E bem, diga-se, não podemos cair no exagero de endeusar o manual escolar, não são obras de arte. Os alunos têm de trabalhar, de sublinhar".

Livros digitais podem ser solução

O Tribunal de Contas alertou num relatório publicado em maio que o orçamento previsto para a distribuição gratuita de manuais escolares a todos os alunos do ensino obrigatório está 100 milhões abaixo da despesa estimada para o próximo ano letivo. Já a percentagem de manuais reutilizados este ano letivo foi inferior a 4%. Entre as razões apontadas para a fraca reutilização esteve o acréscimo de trabalho para as escolas (a quem cabe várias tarefas, como avaliar o estado de conservação dos manuais) e o facto de o ministério ter optado por não reutilizar os manuais no 2.º ciclo (5.º e 6.º anos), para que todos os alunos se encontrassem em condições de igualdade no primeiro ano de implementação da medida neste ciclo.

A inexistência de procedimentos uniformes e precisos também terá sido um dos motivos para a fraca reutilização, segundo o Tribunal de Contas, que indicou ainda o facto de não ter existido controlo sobre os manuais reutilizados de forma que os que se encontravam em bom estado pudessem ser colocados no circuito de distribuição.

No início do ano, o Governo criou um guia de Apoio à Reutilização de Manuais Escolares e anunciou uma campanha para promover a reutilização dos livros escolares, com prémios de 10 mil euros para as 20 escolas com taxas de reutilização mais elevadas e um selo para distinguir 100 escolas como exemplos de boas práticas. "Mas corremos o risco de passar do 8 ao 80", avisa Filinto Lima. "Não podemos deixar que esse incentivo leve ao exagero de não permitir que um aluno sublinhe os livros".

Uma das soluções para resolver o problema da falta de reutilização, defende Joana Mortágua, passa pela "desmaterialização dos manuais", a aposta nos livros digitais, "embora isso não possa ser legislado por decreto, têm de ser as escolas a experimentar". Essa é mesmo, segundo Filinto Lima, 'a' solução, o grande salto nesta área. Mas para isso, convém não começar "a casa pelo telhado e ir à base da questão: precisamos de mais tablets e computadores novos, dotar as escolas de parque informático atualizado e melhor rede wi-fi".

Buraco de cem milhões de euros

Este ano letivo, o programa do Governo disponibilizou gratuitamente manuais a cerca de 500 mil alunos do 1.º e do 2.º ciclos. No próximo ano letivo, a medida será alargada a todos os estudantes do ensino obrigatório que frequentem escolas públicas e estima-se que custará cerca de 145 milhões de euros.

No entanto, o orçamento do Instituto de Gestão Financeira da Educação (IGeFE) para 2019 é de apenas 47 milhões de euros, ou seja, as verbas cobrem apenas cerca de um terço das necessidades, indica o relatório do Tribunal de Contas. O Tribunal recomenda ao ministro da Educação, Tiago Brandão Rodrigues, que garanta "a inscrição no Orçamento do Estado das dotações apropriadas à execução da medida".

A suborçamentação não é um problema apenas para o futuro, tendo acontecido também este ano letivo: a distribuição gratuita de manuais custou 29,8 milhões de euros aos cofres do Estado, mas foram orçamentados apenas 28,7 milhões de euros, o que "se revelou insuficiente" face ao necessário para a sua execução. Esta diferença deveu-se ao facto de estarem orçamentadas verbas apenas para comprar manuais para os alunos do 1.º ciclo e o Governo ter entretanto decidido alargar a medida aos estudantes do 2.º ciclo.

A agravar esta diferença está o facto de em março de 2019 permanecerem "em dívida às livrarias pelo menos 3,1 milhões de euros", segundo o relatório. No contraditório, o Ministério da Educação salientou que "o valor identificado como dívida pode ser somente o reflexo do desfasamento temporal entre o registo contabilístico por parte das escolas".

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