Com um telefonema por dia "como é que se mantém uma ligação com a família?"
Padre Ricardo ou, simplesmente, senhor padre, assim é tratado, fora e dentro dos muros de Vale de Judeus. Quando se tornou padre mal sabia que um dia viria a tornar-se capelão de uma prisão de alta segurança. Na altura, sentiu que "tinha sido lançado aos lobos", retardou a entrada, mas um dia meteu-se no carro e fez os 17 quilómetros que o separavam de sua casa até à cadeia. Hoje, assim que passa os portões sente-se em casa, mas começou sozinho, tantas vezes na capela, só ele e o guarda, até chegarem os primeiros quatro reclusos, depois cinco, seis e sete. Uns foram trazendo outros, e já são mais de 20 os que acompanha semanalmente e de forma regular.
Ricardo Jacinto nasceu em Mafra, numa família que não era praticante, mas quis ir à catequese, fazer a profissão de fé e ser acólito. "Achava piada a estar vestido de branco ao lado do padre", diz, confessando: "Nosso Senhor pegou-me pela vaidade." Depois, preparou-se para o seminário. Entrou e fez sete anos de formação, em Almada e nos Olivais. Quando assumiu o sacerdócio, "tiveram de me dar seis meses de dispensa de idade, porque só se é ordenado aos 25". Foi logo nomeado para três paróquias, Dois Portos, Carvoeiro e São Domingos de Carmões. Ficou com 25 igrejas a seu cargo, espalhadas por montes e vales, durante dez anos, até ser chamado pelo patriarca, em setembro de 2012, para pároco de Cadaval, Vermelhas e Peral. Em outubro, foi surpreendido com o cargo de assistente espiritual de Vale de Judeus.
Após seis anos de trabalho, acredita que ali cada um faz o melhor que pode e sabe, mas afirma com convicção que há muito a mudar no sistema prisional, para os reclusos e para quem lá trabalha, garantindo que se durante a greve dos guardas prisionais no Natal "os protestos - em Vale dos Judeus - não foram mais graves, bem se pode agradecer à prudência de alguns reclusos, porque o dano que lhes causaram foi tremendo, do ponto de vista emotivo, familiar e até para os crentes. Não vim cá uma única vez".
Ricardo Jacinto aceitou falar ao DN sobre esta sua viagem dentro de grades, da importância das relações com o exterior, das visitas, das condições e da diferença que é ser tratado como pessoa ou como número. Ou do que é viver numa prisão, mesmo não estando preso.
É manhã em Lisboa e o destino está traçado no GPS. A viagem será curta, 60 minutos, não mais, indica a máquina, que começa por obrigar a dar a volta às voltas do trânsito que já enche a capital. Passa o tempo. No mapa do ecrã, linhas de cores assinalam alternativas, mas é em frente que se segue para o destino, sem hesitação ou desvios até à placa da A1 que marca a saída para Alcoentre.
A passagem pela aldeia é obrigatória. Portas de casas abertas para a rua e sem vergonha, mulheres à conversa à beira da fruta, cafés que trazem o cheiro da vida e o verde que surge no semáforo. Alcoentre é freguesia da Azambuja, é a aldeia que vive entre duas prisões, mas que "procura esquecer que assim é."
Seguimos pela estrada à direita, aquela que leva até à E366, ao arame farpado que ladeia o primeiro estabelecimento prisional da terra, e à entrada no IC2. Em poucos quilómetros chega-se ao desvio: "Estabelecimento Prisional Vale de Judeus". A quem perguntamos a razão do nome, apenas sabe que já era o nome da terra.
Assim que se vira à esquerda percebe-se: vale, porque fica numa cova. Ao longe, o imenso complexo de betão, aquele que guarda a vida de tantos que, a certa altura, não souberam ou não aceitaram fazer o que estava certo, vai-se fazendo maior. Ao todo, são 560 os que ali estão, 504 fechados, os restantes em regime aberto. Sem contar com quem diariamente tem de entrar e sair para cumprir a sua função, seja guarda, técnico de ação social, de ensino, de saúde ou até de direção. O certo é que hoje são muito menos do que já foram, 187 trabalhadores - e é disso que se queixam.
A manhã vai a meio, na Estrada do Campo da Bola avista-se o quadrado em arame farpado que protege o portão principal de Vale de Judeus. A imponência do muro imenso, construído em 1960, mas que só em 1977 recebeu o primeiro recluso, contrasta com a degradação dos 15 edifícios - com mais de cem habitações de função e que sobressaem à direita - ou tão-só com a vegetação que ainda resiste à esquerda, e que nesta altura já secou com o tempo. Antes da hora marcada e autorizada pelos serviços prisionais, o nosso carro para.
Ao portão principal, uma carrinha celular aguarda a entrada. Só mais tarde se percebe que nela segue uma equipa do Grupo de Intervenção e Segurança Prisional (GISP). "É para levar algum recluso", comenta alguém. Para onde? A quem perguntamos também não sabe responder, mas a prisão é de alta segurança, ali está quem cometeu crimes de sangue, roubo e até de terrorismo, como o basco Andoni Zengotitabengoa, condenado a 12 anos, e a quem foi dada liberdade condicional ao fim de nove e que saiu em liberdade por aqueles dias.
Ricardo Jacinto chega logo a seguir. Há seis anos que todas as quintas-feiras faz o caminho do Cadaval, uma das seis paróquias que tem à sua conta, para dar apoio, escutar ou apenas celebrar missa para aqueles que são crentes, ou não, mas que entram na capela de Vale de Judeus.
Avisa-nos que a entrada levará o seu tempo. Há regras de segurança, que ele próprio tem de cumprir religiosamente semana a semana. Assim que o portão se abre, deparamos com a carrinha celular que ainda aguarda do lado de dentro. Um e-mail na receção regista a autorização de material fotográfico e de um telemóvel apenas, para gravar a conversa com o "senhor capelão". A regra é esta. É obrigatório marcar o código que mostra o IMEI e certifica à saída que foi aquele aparelho que entrou. O detetor de metais nada identifica. Segue-se caminho, sempre acompanhados por um guarda, até ao gabinete do diretor no andar de cima.
José Ribeiro Pereira, que antes ocupou o cargo de diretor adjunto e agora é diretor, faz a caracterização da prisão. De uma das janelas daquele piso, observamos o pátio, onde reclusos de uma das alas correm, andam e conversam. Tudo parece normal.Descemos um piso, para nos levarem de carrinha até à Capela. Não é este o percurso que Ricardo Jacinto costuma fazer, mas naquele dia é-nos pedido que assim seja, por questões de segurança. "Olha quem é ele, como estás?" De sorriso nos lábios, o homem já com alguma idade tira o boné: "Como está, senhor padre, amanhã lá estarei." É um dos reclusos que trabalham e são acompanhados pelo padre Ricardo.
Entramos na carrinha e contornamos o lado esquerdo da prisão. As chaves são levadas pelo guarda, sempre, que abre a porta lateral que dá acesso ao gabinete do padre Ricardo, à sacristia e depois à entrada para a capela. O processo leva tempo. Afinal, tem de ser aberta pelo lado de dentro. Olha-se o relógio e o guarda informa que tem horas para almoço. Da entrada à capela vão uns bons minutos de distância - ou melhor, um mundo de distância - e como o guarda vai ter de acompanhar a nossa conversa, pede substituto para ir almoçar.
A porta principal, que dá acesso ao pátio dos reclusos, está agora separada por um portão em grade, "dizem-me que por uma questão de segurança, mas antes quem estava no pátio e queria aqui entrar fazia-o. Agora é um obstáculo", conta o sacerdote.
A capela de Vale de Judeus é maior do que qualquer outra igreja das várias paróquias da zona. As obras de recuperação feitas pelos reclusos dão-lhe o ar de nova, mas está ali desde o início da construção. Em 2013, o telhado foi reparado, as paredes picadas e pintadas e até os espaços de azulejos em falta substituídos na perfeição. "Foi um recluso com muito jeito para a pintura que fez os moldes e pintou tudo. Já cá não está", conta. Hoje a limpeza da capela está a cargo de um dos mais antigos reclusos, o sacristão, com quase 80 anos e preso há mais de 20.
Quando chega, todas as quintas-feiras, pelas 14.30, estaciona o carro no parque. Passa pelo mecanismo de segurança, tal como qualquer outra visita, cumprimenta alguém da direção e entra. Passa o portão dois de segurança, no terceiro espera pelo guarda que o irá acompanhar na travessia do pátio, por entre os reclusos, até à capela.
Às vezes, espera dez minutos, noutras meia hora, mas quando passa os portões já não sente o mesmo das primeiras vezes. "Agora, sinto-me em casa", afirma. Quando para ali foi nomeado, em outubro de 2012, admite: "Sem experiência e sem conhecer minimamente o espaço para onde vinha, senti-me lançado aos lobos." Ficou assustado, retardou a sua entrada, até janeiro de 2013, não só por compromissos pessoais, mas mesmo por alguma reticência, "a imagem que se tem publicamente das prisões ou dos reclusos é muito negativa", explica.
Mas um dia pegou no carro e saiu do Cadaval direito a Vale de Judeus. São 17 quilómetros. "Pensei. Tens de ir e vamos ver. Vim sozinho. Estacionei o carro à frente deste muro imenso que está aqui à nossa volta. E pensei: onde é que eu me venho meter?"
Não era medo que sentia, "só queria perceber o que é que poderia fazer aqui. Entrei, pedi para falar com o diretor da altura, que me trouxe à capela. Decidimos que viria à quinta-feira e, a partir daí, apresento-me todas as semanas". No início, levava apenas a preparação como cristão. Ou seja, "a de olhar as pessoas como pessoas. E o princípio de não desistir de ninguém".
Diz que foi a persistência de ir continuamente que levou as pessoas à igreja. Agora, "já me esqueço de onde estou, mas antes tinha de fazer um esforço. Entro tranquilamente, como quando vou a qualquer outro dos vários lugares que tenho nas minhas paróquias, cumprimento-os a todos pelo nome, falo com eles, dou-lhes catequese e sigo".
Assim que chega toca o sino, quem quer ir falar com ele sabe que é esse o tempo. Antes, quem estava no pátio e queria entrar podia fazê-lo, agora, "há um portão de grade e têm de se inscrever - a direção entendeu que teria de ser assim, porque também havia alguns que pediam para vir à igreja e depois ficavam no pátio". Normalmente, leva uma hora a receber quem pede para falar com ele, às vezes mais, depois o sino ecoa de novo, para quem quer ir só à missa. Às vezes, ainda há tempo para uma conversa em grupo, para lhes dar "catequese", para falar sobre vários temas, para responder às perguntas que trazem, às dúvidas e às notícias que ouvem e sobre as quais querem saber mais.
No início começaram por ser quatro, cinco, seis, sete "nos melhores dias um pouco mais". Hoje acompanha regularmente mais de 20, na missa estão quase sempre 15 a 18 - "nunca vão todos, revezam-se, certamente, por condições de segurança". E isto sem contar com os que entram e saem, que tanto entram ali à quinta-feira, como nos outros dias vão aos outros espaços religiosos. "Não importa, desde que sintam que é um espaço onde podem ser ouvidos." A maioria é católica, alguns já batizados e crismados por ele. "Já tenho uns quantos afilhados", comenta. Os próprios reclusos vão trazendo outros. "Digo-lhes sempre, são batizados e missionários onde quer que estejam. E eles já me vão dizendo com orgulho: 'Senhor padre, este fui eu que trouxe.'"
Quando se lhe pergunta o que é diferente no trabalho que faz ali e cá fora, pensa por segundos. "Aqui, não há fingimento. Todos nós sabemos com quem estamos a lidar. Eles não têm de fazer figura. Contrariamente, ao que acontece às vezes lá fora." Alguns expõem-se, outros não tanto. Há coisas que nunca pergunta - como o crime ou a pena -, "só sei por eles, para mim é igual, lido com a pessoa".
Mas, às vezes, confessa, "saio daqui com uma overdose informativa. Não esqueço um recluso, que cometeu vários ilícitos e estava à conversa comigo no meu gabinete, começou a contar-me coisas impossíveis de ouvir, eu devo ter feito uma cara de espanto. Às vezes, tenho esta coisa de ser demasiado transparente. Ele percebeu, olhou-me nos olhos e disse: 'Sabe, estou a contar-lhe isto porque não posso contar a mais ninguém. Em si, sei que posso confiar.'"
Aprendeu uma lição, diz. "A partir daí, ouço as coisas mais estranhas e complicadas deste mundo, mas muito grato por eles confiarem em mim. Ter alguém que deposita nas minhas mãos a sua vida, aquilo que fez e que, habitualmente, quer esconder, porque é o pior de si, é de agradecer." Quando chegam a esta fase, é também porque eles próprios já fizeram algum trabalho interior, alguns procuram mesmo a redenção. Mas convém dizer que "nem todos estão convencidos de que são culpados. Parte deles acha que foi uma injustiça o que aconteceu. Outra parte tem consciência do mal que fez e não se arrepende. Mas há alguns com consciência do mal que fizeram e que percebem que poderiam ter feito diferente. Esses são uma pequena parte e é particularmente com estes que tenho a graça de trabalhar".
Quem não se sente culpado "vem aqui só para pedir alguma coisa, o que às vezes acontece, ou então não vem". Alguns vão por curiosidade, deixam de ir, reaparecem, mas "ninguém entra e sai sem eu o cumprimentar pessoalmente e o tratar pelo nome. Faço questão de ir ao pé da pessoa, perguntar o nome, habitualmente a idade e de onde é. Dou-lhes um abraço, um aperto de mão, trato-os como pessoas, o que aqui na máquina do sistema nem sempre acontece".
Ricardo Jacinto trava a fala para a seguir dizer: "Custa-me muito a engolir que no século XXI, e no ano de 2019, ainda se chame e trate pessoas pelo número." Acontece. E para ele é um obstáculo à reinserção. Defende, tal como a Pastoral das Penitenciárias, que "a reinserção deve começar no dia da condenação ou no dia em que fica preventivo, porque senão não funcionaria". A reinserção deve ter em atenção a pena que vai ser aplicada, onde é que esta será cumprida e o modo como se acompanha a pessoa e a sua família.
"Ou seja, é preciso que a pessoa perceba que a pena que lhe é aplicada não é apenas punitiva do crime que cometeu, mas também uma salvaguarda para si próprio. Às vezes, estas paredes também os salvaguardam do ódio dos que estão lá fora. Protegem quem cá está dentro, portanto, a pena também deve ser entendida como uma pena restaurativa."
Para isso, o sistema tem de saber onde deve colocar a pessoa. "Se é do Porto ou de Faro e é colocado em Vale de Judeus, é certo e sabido que dificilmente vai ter visitas. Dificilmente vai ter uma reinserção acompanhada pelos seus familiares ou por amigos de forma contínua. Depois, é determinante a comunicação que se permite estabelecer com o exterior. Quando não há, pode ser dramático."
Ricardo Jacinto refere-se ao direito dado a cada recluso de um telefonema por dia, com cinco minutos de conversa, mas se o telefone toca do outro lado e ninguém responde, não há nova tentativa. Sendo assim, questiona: "Como é que se mantém uma ligação com os filhos, com a mulher, com os pais que ainda têm vivos, às vezes doentes ou em fases terminais? Como é que se acompanha uma família? Que reinserção é possível desta forma? Nenhuma..."
Alerta para o facto de a reinserção de quem ali entra, seja por que crime for, ter sempre de ter em conta o mundo que existe cá fora. Tanto mais que "a prisão é sempre provisória. Quer queiramos quer não, eles um dia saem daqui. E só temos duas hipóteses: ou os preparamos de facto para o dia em que saem aquela porta - às vezes, sabe Deus, só com um saco na mão e sem saber por onde ir - ou então o mais provável é que saiam, voltem aos contactos que os trouxeram cá para dentro, e que regressem um dia".
O trabalho de reinserção terá de ser feito com o mundo exterior presente, antes de se chegar à prisão, com as pessoas mais próximas, porque estas também são, normalmente, as primeiras que perdem. Ou porque as famílias se afastam pelo crime que cometeram - "percebo, têm esse direito" - ou porque a distância e o tempo que passa entre eles também assim o dita. "Há uns tempos, quase dois terços dos reclusos em Vale dos Judeus estavam sozinhos no mundo. Abandonados pelos seus. Ou seja, 300 e tal dos 500 não tinham ninguém. Como é que se pode tentar a reintegração de alguém que está sozinho no mundo?"
Fala do sistema, mas diz que acima de tudo há uma grande falta de pessoal, admitindo que "a capacidade de acompanhamento real das situações às vezes é muito deficitária. Com certeza que cada um faz o melhor que pode, consoante os dados e os meios que tem, mas quando um recluso espera alguns meses para se encontrar com o seu educador, há qualquer coisa que não funciona no sistema".
Vale de Judeus não sofre de sobrelotação. Cada recluso tem a sua cela, mas não é isso que "lhes dá condições melhores", porque às vezes falta-lhes o básico. "Tão simples como sabonete, champô, gilete. Eles têm de comprar tudo na cantina. Há famílias que não podem ajudar e alguns deles endividam-se." Mas por vezes a falta vem do próprio sistema, conta, "há gente que não tem saúde e não consegue sair daqui para ir ao médico, a uma consulta externa, por não haver pessoal. São coisas muito simples, mas que desgastam..." Por vezes faltam condições nos espaços, nas celas ou nas celas disciplinares.
Insiste: "Não acho que seja possível de restabelecer uma pessoa num ambiente onde o teto está a cair e há infiltrações em todo o lado, num ambiente em que a pessoa tem de dormir com a cabeça encostada à sanita, não acho possível." Afirma que tudo isto "faz parte de um processo algo longo e difícil, mas que terá de mudar".
Fala-se de um sistema com penas mais duras, não só em Portugal, mas também em outros países da Europa. Ricardo Jacinto é dos que defendem: "Não sei como é possível sequer pensar que a solução da recuperação de uma sociedade consiste unicamente no aumento repressivo. Não acredito nisso, não quero acreditar."
Há muito a mudar, começando pelas relações com o exterior até ao acompanhamento que é dado aos reclusos, mas para ele já era uma alegria se se melhorasse "a dignidade com que se acolhe as visitas. Custa-me sempre ver crianças a visitar os pais reclusos, diante de toda a gente e de outros reclusos. É uma criança..."
À memória chega-lhe um caso que acompanhou. Alguém que já ali não vive, e por isso, não vai dizer o nome. Mas foi dos que mais o tocaram. "Sempre que eu chegava e ele me via atravessar o pátio, vinha ter comigo e pedia-me um abraço. E eu dava-lho. Esta minha vontade de entrar aqui, de meter conversa com quem aqui entra, de perguntar quem é, de fazer um esforço para decorar os nomes, espanta-os." Outro, uma vez, no seu gabinete, "virou-se e disse-me: 'O senhor não consegue imaginar o trabalho que faz aqui dentro.'" E eu fazia o quê? Lidava com eles apenas, e achava que não fazia grande coisa. "'Olhe, o senhor nunca me recebe atrás de uma secretária, quando fala comigo olha-me nos olhos, dá-me um abraço quando chego e me vou embora, e trata-me pelo nome.' Perante isto, uma pessoa fica sem respiração. Eles percebem que aqui dentro, e porque fazem parte do sistema e da política do sistema, são tratados como números." Por isso, "não estou convicto de que o sistema acredite na recuperação destes homens".
A atitude teria de ser diferente. Há muito que se tenta uma reforma nas prisões, a começar pelas condições. Mas este padre que vive dentro de grades sem estar preso não está convicto de que algum dia isso aconteça. Sobretudo quando ele próprio ainda ouve coisas do estilo: "O Sr. ainda conversa com este? Não vale a pena." "Eu tenho de lhes dizer: desculpem, eu sou cristão, acredito que qualquer pessoa é possível de recuperar, basta que o queira."
Hoje sabe que quem por ali passa ganha "uma experiência traumática e dolorosa". Pelo convívio que uns têm com os outros, pelos grupos que integram, pelas suas proveniências - na maioria, portugueses, de Leste e africanos -, pelos compromissos que assumem. E, se assim for, é certo e sabido que alguém irá aproveitar-se e explorar essa pessoa. A quem entra ali apenas é pedida força, a fraqueza fica lá fora. São anos e anos a retardar sentimentos e emoções, o medo não faz parte, o choro também não, o arrependimento e o perdão podem ser entendidos como fraqueza.
Talvez por isso muitos dos que passam pela capela e que acompanha "saem o portão e nunca mais me falam. Tenho saudades de alguns deles, mas percebo. Aquilo é para esquecer. É para fechar a porta e não voltar. Mas tenho alguns bons casos que saem em liberdade ou em condicional e que continuam a contactar-me ou a visitar-me, até com as famílias, e isso é profundamente gratificante".
Há quem ali vá para lhe pedir "as coisas mais estapafúrdias", desde uma caneta a selos para se corresponderem com familiares, desde calendários a pilhas ou até uma televisão. "A maior parte das coisas não lhes posso dar. Só lhes trago o que é permitido pela direção." Mas outros vão porque querem estar com outras pessoas, e o estar connosco é um pouco estar fora dos muros; por vezes não chego a perceber se é simplesmente pelas pessoas, se é de facto para conhecerem Nosso Senhor, mas isso é com eles."
Há ainda quem vá em busca de paz - e esse "processo é difícil, demora tempo. Eles têm de se reconciliar consigo e com a sua história. Há tempos tive um recluso que, já de saída, me dizia: 'Eu sempre fugi à religião católica ou a qualquer igreja. Foi preciso vir preso para conhecer Deus Nosso Senhor. Ter esta capacidade de perceber que, apesar das circunstâncias, a situação não tem de ser fatalista é muito gratificante para mim e para eles, porque é um sinal de que este espaço é uma oportunidade que podem agarrar".
A entrar no sexto ano como capelão, Ricardo Jacinto diz que já teve experiências admiráveis, mas que "alguns ainda são gozados por aqui virem, outros até espancados. Outros pedem para ficar trancados na cela, pelas dívidas que têm, outros ingerem tudo o que têm à frente para conseguirem ir ao Hospital São João de Deus, para saírem daqui e não serem espancados. De vez em quando vou sabendo de um suicídio. Infelizmente não é divulgado porque são números que não interessam".
E, sublinha, " aqui a pessoa não pode manifestar fraqueza, só força. Dizer-lhes que a fraqueza não é menor e que é da condição humana é difícil."
É o que lhes transmite. Ali dá catequese como noutro sítio qualquer, recomenda-lhes sobretudo que guardem um tempo para a oração e para o silêncio. A todos os que ali vão dá uma Bíblia - já foram algumas dezenas; sabe que alguns as vendem, outros fazem cigarros das folhas, mas se lhe pedem mais, não dá. "É uma única e sei a quem dou." Nela podem ler os salmos que servem todos os estados de alma, "desde a extrema raiva ao desejo de vingança, da profunda depressão à gratidão, da alegria do perdão à máxima exultação. Não há estado de alma humana que não esteja retratado nos salmos. Pergunto-lhes: 'Como é que tu estás hoje? Então escolhe um salmo e reza.'"
O poder das palavras é muito forte e nem sempre é fácil, confessam alguns. Não é pelo tempo, que o têm de sobra, mas pelo confronto de si próprios com o que ali está escrito. "Falta-lhes paciência e vontade, porque as palavras têm ar interrogador e alguns ainda não estão nesta fase. Estão na fase de não querer saber, de querer esquecer e de querer levar isto o mais depressa possível. Alguns vão acumulando penas e cumprem 20, 25 ou 30 anos, apesar de o nosso sistema ter como pena máxima os 25 anos e de aos cinco/seis saírem em liberdade. "Cometem ilícitos cá dentro e a pena que lhes foi atribuída é interrompida para cumprir a interna."
Aprendeu que a melhor maneira de aceitar as fraquezas dos outros é conhecer as nossas próprias. "Conhecendo as minhas, mais facilmente terei a capacidade e a docilidade de entender as fraquezas dos outros." Ele próprio ouviu isto algumas vezes nos encontros da Pastoral das Penitenciárias.
Assume que aquilo que o diferencia de alguns destes homens não passa de "alguns segundos. Porque há impulsos que graças a Deus controlo, e outros não o conseguiram, porque talvez se tenham visto em situações em que nunca me vi, senão também não sei como responderia. Olhar as minhas próprias fraquezas faz-me olhar à volta e perceber que não sou diferente deles, não me sinto assim. Sou um com eles, e suponho que todos aqueles que vêm aqui à capela o sintam e percebam isso".
O maior obstáculo no trabalho que faz hoje é o tempo. "Tenho a noção clara de que para fazer um trabalho mais capaz necessitava de mais tempo. O recluso tem direito pela sua capelania à assistência católica, à formação e ao culto. E infelizmente, nas duas horas de que disponho, eu não consigo fazer estas três coisas."
Acredita verdadeiramente que "no meio do deserto também nascem flores. Pode ser um pouco difícil ou doloroso, mas há casos de gente que, passo a passo, tranquilamente, vai ganhando vida". E se lá fora, quando saem, pudessem encontrar a sua família, muito certamente seria diferente. "A primeira coisa que um recluso deveria encontrar quando sai era a família. Depois, encontrar espaços que o ajudassem na reintegração, porque o mundo para onde volta não está igual. E como é que se adapta esta gente a viver num espaço em que já não se revê, onde parte da família já pode ter morrido e provavelmente não puderam sequer ir ao funeral, um mundo cujos laços se desvaneceram?"
A realidade deve mudar. Perguntamos se a Pastoral tem denunciado estas situações: "Os nossos encontros anuais têm tido a presença do diretor-geral - o Dr. Rómulo esteve no último, dias depois de ter tomado posse. E com eles a Pastoral sempre foi muito aberta ao declarar ou denunciar o que são de facto problemas e dificuldades. Mas também tem apresentado algumas modalidades e oportunidades que podem ser de mudança."
Compreende que não é possível mudar as 49 prisões de uma só vez e tem noção de que "algumas vezes escutam o que se diz, mas há limitações no sistema para atuar". Ainda assim, tanto ele como a Pastoral têm defendido ser necessária outra abordagem.
Diz que até para quem ali trabalha a vida é dura. Ricardo Jacinto é assistente religioso de Vale de Judeus, logo de todos os funcionários também, "desde a direção ao corpo dos guardas e aos técnicos. Nunca entro aqui sem ir cumprimentar alguém da direção, as chefias, dizer que cheguei, para depois me dirigir ao portão três e esperar pelo guarda que me irá acompanhar à porta da capela. Acontece algumas vezes, pelos corredores ou nos gabinetes, um ou outro falar comigo, pedir conselhos, esclarecimentos, mas não procuram um acompanhamento regular".
Não tem dúvida de que são poucos para as necessidades, por isso não têm tempo para falar com ele. Aliás, "convém dizer que a vida dos guardas, dos técnicos e da direção é dura. Eu venho cá uma vez por semana, eles estão aqui todos os dias a enfrentar esta realidade. É profundamente complicado. Por isso é que alguns metem baixa, saem, tiram licenças".
Eles próprios precisariam "de outras condições, de outro acompanhamento, porque também a eles é pedida "força; aos guardas e aos técnicos eficácia; e à direção que não haja complicações".
Por fim, Ricardo Jacinto lembra uma frase que traz consigo em todos os momentos, de um dos homens com maior currículo na Justiça, Laborinho Lúcio: "Nenhum juiz deveria condenar sem conhecer os serviços prisionais" - e a maioria "não os conhece", diz ele.
Quando se fala em reinserção e em devolver à sociedade homens e mulheres que erraram em certa altura na sua vida, deve-se pensar em começar a levar as escolas a conhecerem estes espaços. "Assim, não estão só no imaginário dos filmes e muitos jovens não acabariam ali", defende.