Não é compra, não é arrendamento. Como funciona a habitação "vitalícia"
É uma nova figura legal, que está em vigor desde a última sexta-feira, diferente do arrendamento tradicional e da compra de casa. O DHD permite que um morador (ou moradores) permaneça numa casa até à sua morte - é um contrato "vitalício". Mas a lista de exigências para que o contrato se possa efetivar não é pequena.
Antes de mais, há que tornar claro que o Direito Real de Habitação Duradoura não substitui os arrendamentos tradicionais. Ou seja, um contrato de arrendamento comum não pode ser transformado num DHD. Em teoria, até pode acontecer que um inquilino ou um proprietário proponham à outra parte um DHD, mas para o caso é irrelevante se há ou não um contrato prévio - as duas partes têm que chegar a acordo, todo o processo é novo e obriga à assinatura de um contrato específico.
O DHD implica que o futuro morador vitalício pague ao proprietário do imóvel uma caução num montante que pode ir dos 10 aos 20% do valor do imóvel - calculado pelo valor mediano das "vendas por m2 de alojamentos familiares, por freguesia, aplicável em função da localização da habitação e da área constante da respetiva caderneta predial". Isto significa que, se estiver em causa um imóvel no valor de 200 mil euros, o morador tem de avançar 20 a 40 mil euros de caução.
A percentagem concreta é acordada entre as duas partes, que têm de chegar também a um consenso sobre o valor mensal que o morador fica a pagar ao proprietário.
A caução é prestada por um prazo de 30 anos. Desde o 11º ano e até ao 30º ano de vigência do contrato, o proprietário desconta 5% ao ano do valor total pago pelo morador. O que significa que, se o morador denunciar o contrato nos primeiros dez anos recebe integralmente o valor da caução (salvo se houver dívidas a ressarcir). A partir daí perde 5% da caução por cada ano. Ao fim de três décadas já não haverá lugar à devolução de qualquer montante.
O contrato é obrigatoriamente celebrado por escritura pública (ou documento particular com as assinaturas das partes presencialmente reconhecidas) - altura em que o morador paga a caução - e está sujeito a inscrição no registo predial, que deve ser requerida pelo morador.
De acordo com a lei, cabe ao proprietário pagar "os custos de obras e demais encargos relativos às partes comuns do prédio". As quotas do condomínio e "demais obrigações enquanto condómino" também ficam sob a responsabilidade do proprietário, que fica ainda responsável pelos "seguros relativos ao prédio e à habitação que sejam legalmente obrigatórios".
As obras de conservação extraordinária da habitação também ficam por conta do dono do imóvel, salvo se resultarem da ação culposa do morador.
Em caso de renúncia do contrato por parte do morador, o proprietário do imóvel tem um prazo de até três meses para devolver o remanescente da caução quando o valor a devolver seja "igual ou inferior a 30%" do valor total. Esse prazo passa para seis meses se o valor em causa representar 30 a 60% da caução. E aumenta para os nove meses quando o valor do saldo for igual ou superior a 60 % dos montantes pagos pelo morador a título de caução.
O morador fica responsável pelo pagamento das taxas municipais e tem de entregar ao proprietário os valores respeitantes ao Imposto Municipal Sobre Imóveis (IMI) - que depois paga o imposto à câmara, dado que o IMI tem de ser saldado pelo proprietário.
Os encargos com as obras de conservação ordinária na habitação também ficam por conta do morador.
Em cada período de oito anos de vigência do contrato de DHD, o morador "deve remeter ao proprietário ficha de avaliação atualizada do nível de conservação". Em alternativa, pode optar por permitir ao proprietário o acesso à habitação para esse efeito.
O contrato não pode ser denunciado pelo proprietário, salvo em caso de incumprimento do morador.
O morador, por seu lado, pode denunciar o contrato em qualquer altura, recebendo de volta a caução, mas reduzida anualmente em 5% a partir do 11º ano.
Pode, dando como garantia de hipoteca o próprio contrato de DHD. Segundo a lei, o DHD pode ser hipotecado pelo seu titular "para garantir crédito que lhe seja concedido para pagar, no todo ou em parte, o valor da caução". Se o morador vier, um dia, a adquirir efetivamente o imóvel, a hipoteca é transferida para a propriedade da habitação, como num crédito "normal".
Mas se o contrato cessar, ou por renúncia ou por incumprimento, a "hipoteca subsiste". No caso de execução da hipoteca constituída sobre o DHD, o proprietário pode usar o saldo da caução para extinguir a ação executiva.
Neste cenário, o proprietário mantém a obrigação de "devolver ao morador o saldo da caução remanescente, após pagamento das quantias necessárias à extinção da ação executiva e da dedução dos montantes" a que tenha direito (por exemplo, para se ressarcir do não pagamento da mensalidade).
No caso do morador, não, o contrato deixa de existir com a morte do seu titular (ou do último dos seus titulares, se tiver mais que um).
No caso do proprietário, sim. Sendo o contrato vitalício para o morador não pode ser denunciado pelos herdeiros do proprietário, mesmo quando se tornem titulares do imóvel. O proprietário também não pode pedir a saída do morador alegando que precisa da casa para morada própria.
No decreto-lei que cria esta nova figura legal, o Governo sublinha que "73% dos alojamentos familiares clássicos de residência habitual em Portugal são ocupados pelos proprietários" e que o "endividamento dos agregados familiares para aquisição de habitação assume valores muito elevados". Por outro lado, o setor do arrendamento é "diminuto e pouco acessível em termos de preços e as famílias encontram-se numa situação pouco favorável à mobilidade, o que reduz as suas opções", refere o documento, apontando o Direito Real de Habitação Duradoura como uma solução intermédia, que garante habitação estável a longo prazo sem exigir um elevado nível de endividamento.
"Sentimos a necessidade de criar um instrumento que permitisse, do ponto de vista dos agregados familiares, ter segurança e estabilidade sem para isso precisarem de assumir os encargos com a compra de uma casa e também sem ficarem sem as amarras e o peso inerente à aquisição", justificou Ana Pinho, secretária de Estado da Habitação.
Não, de todo. Apesar de ter promulgado a lei, até mesmo o Presidente da República manifestou dúvidas "sobre o sucesso pretendido para o novo direito e efeitos colaterais da definição de 'morador'". Luís Menezes Leitão, presidente da Associação Lisbonense de Proprietários (e em vésperas de tomar posse como bastonário da Ordem dos Advogados) afirmava há poucos dias, em entrevista ao DN/TSF, que a nova lei "não tem eficácia nenhuma"
"Não vejo ninguém que tenha interesse em celebrar esse contrato. Pelo menos da parte do proprietário", sublinhou Menezes Leitão - "Ninguém vai dar a uma pessoa o direito de ficar no seu imóvel para toda a vida". Aliás, o próprio senhor Presidente da República disse que promulgava o diploma, mas não via nenhuma utilidade nele", concluiu.
Do lado dos inquilinos, Romão Lavadinho, presidente da Associação dos Inquilinos Lisbonenses (AIL), dizia ao DN, após a aprovação em Conselho de Ministros, que esta "é uma solução que não vai resolver nenhum dos problemas dos inquilinos", antecipando uma "adesão diminuta, se não for quase nula".
"A associação tem grandes dúvidas de que os inquilinos entrem neste jogo", sublinhava então o presidente da AIL, resumindo assim o novo mecanismo: "Estamos a transformar os inquilinos em banqueiros para apoiar os proprietários."
Esta nova figura legal tem sido apontada como podendo interessar, sobretudo, a fundos de investimento, e menos a particulares.