"Não deite nada fora!" Pacheco Pereira guarda todos os papéis
Um dia destes ligou-lhe um empreiteiro: "Estamos a fazer obras numa casa, a destruir paredes, e reparei que havia uns jornais e papéis no chão. Não tinha dado importância mas vi o seu programa na televisão e achei que se calhar era melhor ver isto..." José Pacheco Pereira foi ver. E ainda bem que o empreiteiro ligou. Os papéis encontrados naquela casa eram nada mais nada menos do que o arquivo do MDP/CDE com toda a documentação do Congresso Republicano de 1973 que, agora, já estão todos devidamente arquivados num dos armazéns da Ephemera, a associação cultural sem fins lucrativos criada pelo historiador há mais de dez anos com o objetivo de "salvar, salvar, salvar tudo o que faz parte da nossa memória coletiva". Estamos a falar de coisas tão diversas quanto panfletos e cartazes de campanhas eleitorais, diários pessoais, correspondência, bilhetes de espetáculos, fotografias ou até medalhas ou equipamentos desportivos. Um dos objetos mais curiosos, por exemplo, é uma bomba de gás lacrimogéneo usada pela PSP numa manifestação antes do 25 de Abril.
Tudo começou como uma biblioteca e um arquivo pessoais, fruto do interesse de Pacheco Pereira e dos materiais guardados pela família, mas, entretanto, tornou-se um projeto de grandes dimensões. Neste momento, a Ephemera tem "mais de 200 títulos de livros e brochuras, dezenas de milhares de periódicos, vários milhares de cartazes artesanais de manifestações e de protesto, fotografias, milhares de objetos, centenas de milhares de panfletos, folhetos, tarjetas, etc., milhares de emblemas e pins, dezenas de milhares de autocolantes" que ocupam mais de seis quilómetros lineares de estantes e armários.
A sede da Ephemera é na vila da Marmeleira (Rio Maior), onde ocupa seis edifícios contíguos e um armazém e onde está o grosso da biblioteca e todo o material já tratado. Em 2016, a Ephemera expandiu-se até ao primeiro lugar da livraria Ler Devagar, em Alcântara, Lisboa. Mas é no parque industrial do Barreiro que, desde 2017, se situa "a fábrica", como lhe chama o ex-deputado: ou seja, o local onde todo o material é acolhido e depois selecionado, registado e tratado. Depois de um primeiro armazém, a associação inaugura neste sábado o segundo armazém, "um espaço absolutamente vital", diz Pacheco Pereira, não só porque o fluxo de doações é constante mas também porque há materiais, como os cartazes de grandes dimensões, que exigem algum espaço.
O segundo armazém, apresentado este sábado, tem também condições para acolher exposições e outros eventos.
"Não deite nada fora!" é um dos lemas da Ephemera. "Tudo o que aqui entra está salvo. Tudo interessa, o arquivo é omnívoro", explica o político. "Pedimos às pessoas que não deitem nada fora, nós aceitamos tudo e depois fazemos nós a triagem do que pode ou não ser relevante." E na opinião de Pacheco Pereira quase tudo é relevante, porque até mesmo as pastas ou os envelopes onde os materiais estavam originalmente guardados contêm informações preciosas sobre a história desses materiais.
Na Ephemera todo o trabalho é assegurado por voluntários: dez a 20 (é variável) que estão no Barreiro, tratando o espólio, 150 no total, incluindo os que estão nos pontos de recolha - 12 em Portugal e dois no estrangeiro (Luxemburgo e Luanda) -, que podem situar-se em locais muito distintos. Por exemplo, no Café Girassol, em Viana do Castelo, no Ginásio Clube da Figueira da Foz, ou na Sociedade Recreativa de Santarém. É aí que muitas pessoas entregam os materiais. Muitas vezes, coisas que pertenceram a familiares que morreram, outras vezes coisas que foram encontradas em casas que estavam fechadas ou dentro de gavetas ou baús comprados em segunda mão. A entrega também pode ser feita pelo correio. Há pessoas que trazem envelopes com papéis lá dentro, outras entregas são feitas num camião TIR - como foi o caso do espólio da revista Mundo da Canção (criada em 1969).
À medida que o trabalho da Ephemera foi sendo conhecido também se tornou mais comum que algumas instituições e personalidades decidissem entregar à associação o seu espólio. É o caso dos documentos de Sá Carneiro, que foram entregues pela sua secretária, Conceição Monteiro. Também estão na Ephemera, por exemplo, os espólios do escritor Eugénio de Andrade, do cineasta José Fonseca e Costa, do professor e ministro Vítor Crespo e da política e ministra Teresa Patrício Gouveia. Um dos espólios que ainda estão no Barreiro, à espera de ser tratado, é o de João Soares. Dossiês e pastas com documentos relativos ao PS, à maçonaria ou às relações com a UNITA. "Um espólio importantíssimo", avisa Pacheco Pereira. Numa das prateleiras, um papel avisa que ali estão "coisas do pai", ou seja, de Mário Soares. Ao lado outras coisas talvez menos importantes mas igualmente curiosas: duas bolas de futebol usadas em campanhas eleitorais com o símbolo do PS e o nome de João Soares.
Além dos arquivos pessoais, a Ephemera tem recebido uma grande quantidade de espólios de empresas que entretanto desapareceram, assim como de associações profissionais, partidos políticos e sociedades recreativas. Por exemplo, uma das doações mais recentes foi da Associação 25 de Abril.
Pacheco Pereira passa por entre os apertados corredores do armazém falando entusiasticamente. "Não é possível fazer a história contemporânea portuguesa sem vir aqui", diz, sublinhando a importância dos arquivos sobre a censura, a extrema-esquerda e a extrema-direita. "Fazemos recolha ativa de materiais das manifestações, de todas elas", explica. Sempre que possível, os voluntários vão às manifestações, fazem fotos e vídeos e trazem cartazes e folhetos. Da mesma forma, têm tentado recolher todo o material possível das várias campanhas eleitorais (ficaram com todo o material de campanha da Iniciativa Liberal nas últimas legislativas).
Depois de recolhidos, os documentos têm de ser identificados e conservados para que estejam disponíveis para consulta. Esta é uma parte essencial do processo. Apesar de ser visitado por investigadores, Pacheco Pereira admite que ainda há desconfiança por parte de investigadores e académicos, porque o trabalho no Ephemera ainda é amador. São seguidas as práticas mínimas arquivísticas e de conservação dos documentos doados e há um "embrião de departamento editorial" - mas não têm os meios de uma Torre do Tombo. Ainda assim, o historiador acredita que "aconteça o que acontecer, salvo a peste, a fome e a guerra, o que cá entra está mais seguro do que o que fica em casa" e só se angustia com os "milhares de fragmentos da nossa memória coletiva" que todos os dias desaparecem. Além disso, existe todo o trabalho de digitalização e disponibilização online (www.ephemerajpp.com).
A associação está aberta e disponível para avançar com mais protocolos de colaboração com entidades - como fez recentemente com o Museu Nacional da Resistência e da Liberdade. O que José Pacheco Pereira aguarda há vários anos é um enquadramento legal para potenciar o trabalho do arquivo: "Queremos algo que combine a solidez patrimonial das fundações - tudo o que é privado passará para essa fundação -, com a flexibilidade das associações culturais sem fins lucrativos, para podermos usar o trabalho dos voluntários."