A uma semana das legislativas, o momento político espanhol cristalizou o ódio latente no discurso político, corrente de transmissão entre ruas e instituições desde que a dinâmica catalã passou a monopolizar a política nacional. Apesar de o bom desempenho económico dos últimos três anos não ter gerado estabilidade política, a consolidação do pentapartidarismo como leque variável de soluções governativas acabou por concentrar num curto espaço de tempo uma improbabilidade, uma inevitabilidade e uma incógnita..A improbabilidade está na iminente vitória do PSOE, cujo fim dos nove meses de governo minoritário ditaram a antecipação destas eleições. Pedro Sánchez já sofreu derrotas internas, regionais e nacionais, mas parece razoável afirmar que permanece, no espaço político sistémico, europeísta e cosmopolita, o único porto de abrigo que a Espanha oferece. A ver pelo que aconteceu aos sociais-democratas nas recentes eleições suecas e finlandesas, vencedores à tangente de coligações não nacionalistas, talvez seja prematuro decretar o fim continental a um centro-esquerda moderado. Aliás, nunca como hoje ele foi tão necessário, desde que exerça a sua responsabilidade histórica expurgado dos anátemas que o têm minado (corrupção, nepotismo, cristalização programática), aproveitando o voto de confiança como um fator de legitimidade acrescida no momento-fronteira que atravessamos. A sua falência é a passadeira estendida ao moralismo nacionalista à esquerda e à direita. Ou seja, o fim das democracias liberais como as entendemos..De qualquer forma, a vitória do PSOE não assegura qualquer estabilidade governativa, a ver pela ginástica forçada que constituiu o diálogo conjuntural que permitiu derrubar Mariano Rajoy há um ano e manter, de forma artificial, Sánchez na Moncloa. Nacionalismo e constitucionalismo não colam, por mais condimentos que possam coincidir num certo contexto. Esta é a incógnita maior destas eleições: como garantir uma nova maioria capaz de acautelar a unidade da Espanha e manter o dinamismo da economia. Ou seja, se Sánchez vencer e recauchutar a ERC, o PNV, o Podemos e outros pequenos partidos à esquerda para ser investido, recria a solução incomportável com que governou sob brasas no último ano. À direita, a luta pela liderança está em aberto, mas nem essa frente pode chegar para acomodar uma maioria. A hipótese mais sensata seria estabelecer um diálogo prévio entre o PSOE e o Ciudadanos (como alguns neste partido defendem), recuperando uma matriz fundacional quando, ainda centrado na política catalã, o partido de Albert Rivera estava mais próximo da social-democracia do que do conservadorismo urbano que o tem caracterizado na rota nacional entretanto trilhada..Pelas sondagens, os dois podem atingir a maioria parlamentar e prestar um bom serviço ao país: consolidavam uma frente pró-europeia rejuvenescida, constitucionalmente vinculada mas com alguma margem para acomodar as tensões internas, defensora da economia de mercado com consciência social, sem ficarem reféns do regresso de temas fraturantes como o aborto. Além disso, Sánchez tirava Rivera da incrível frente em que este estupidamente se meteu, com Pablo Casado e Santiago Abascal. Esta não tem de ser uma inevitabilidade da política espanhola, embora resida neste universo da direita uma outra que merece reflexão..O PP funcionou até à queda de Rajoy como a congregação das direitas espanholas vindas do franquismo, da transição democrática e da integração na União Europeia. Os mandatos de Aznar refletiram o sucesso desta fórmula, numa mistura entre pragmatismo ideológico, liberalismo económico e inflexibilidade constitucional. A transição entre Aznar e Rajoy, feita nos escombros dos ataques de Atocha e na oposição a Zapatero, sugou o PP desse papel federalizador que o poder sempre ajuda a montar, a que se juntaram os efeitos da crise financeira e a corrupção endémica que dinamitou o partido até à queda de Rajoy. O PP era, afinal, um universo mais líquido do que sólido..Sem surpresa, destapada a tampa, é na dissidência do PP que se fez o Vox. Tanto Abascal, como Vidal-Quadros, González Quirós ou Ortega Lara transitaram deste PP apodrecido para liderarem um reduto em ascensão que fizesse eco da trilogia do momento: parafernália nacionalista, moralismo social e agressividade discursiva. Ajudados, por um lado, pela inconsistência da liderança de Casado e, por outro, pela rede partidária nacionalista que Steve Bannon está a trabalhar na Europa, o Vox tem em Rafael Bardají o exemplo perfeito desta constelação de ultras..Antigo conselheiro de Aznar para a política externa (foi determinante no apoio à guerra do Iraque), Bardají saiu do PP há um ano diretamente para a comissão executiva do Vox, sendo um dos intelectuais mais poderosos do movimento. Em várias entrevistas, é nítida a idolatria por Trump e por Orbán, o desprezo pela direita tradicional onde esteve, a raiva anti-UE, antiecologia, antidireitos das mulheres e antiminorias. São várias as fotos ao lado de Bannon, embora este não seja tão transformador como se pinta, nem sequer tenha sido quem mais contribuiu para formatar esta rede nacionalista pan-europeia. Como procurei argumentar em Putinlândia (Tinta-da-China, 2016), coube aos lugares-tenentes de Putin essa missão (Malofeev, Rogozin): cortejar e apoiar Le Pen, Salvini, Siderov, Wilders, Farage, Baudet, Petry e Strache, com os resultados que se tem visto. Steve Bannon apenas estica a teia à dimensão transatlântica, escalando o momentum Trump..Santiago Abascal é a novidade da engrenagem que dificilmente parará em Badajoz..Não tenho dúvidas de que o resultado do VOX será celebrado em muitos círculos de Portugal..Investigador universitário