Muros

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Vejo-te a levantar. Vestes uma roupa mais formal, com gravata, porque hoje é segunda-feira. Não te dou sinais, é como estivesse ainda no meu sono. Começa outra semana, mas porventura, será mais fácil do que os fins de semana. Durante a semana ambos trabalhamos, estamos longe um do outro, para além de todos os abismos que nos separam. Faz tempo. É uma estranheza envolvida de tristeza e de mágoa. Como é possível que seja mais difícil quando estamos perto do que quando cada um de nós está nas suas coisas? Não sei quanto tempo já passou. Desde quando é que nos perdemos um do outro? Como é que isso aconteceu? Lembro-me do jovem homem que eras quando nos conhecemos. Como nos envolvemos na descoberta das nossas pessoas e das coisas que nos interessavam. Como tudo parecia fazer sentido e o futuro tinha extensão. Sinto-me cansada. Desistente. Falar parece infrutífero. Repeti tantas vezes a mesma coisa. O que me pareceu tão relevante, importante, crucial até, para nos podermos compreender, parecem agora farrapos de uma roupa esfarelada de tanto esforço. Por vezes sinto uma dor dilacerante, outras, tenho raiva de ti. Fechei-me. Enclausurei-me neste lugar de silêncio.

Não entendo por que razão é que ela finge sempre que está a dormir.

Estou farto disto! Seria tão mais fácil se pudéssemos simplificar as coisas. Há quanto tempo não estamos só os dois? Desde quando não temos um programa só para nós? Qual é o problema dos miúdos ficaram com os meus pais? Sinto que consigo falar e ser compreendido por todos, menos por ti. Deixei de sentir o teu olhar apaixonado. Há muito que não te sinto o toque, o sorriso, o desejo. Afastas-me! Assim, ainda me sinto mais longe de ti. Cada dia que passa. E, não, já não tenho vontade de te explicar nada, nem de me fazer compreender. Para quê? De que forma? Cada vez que abro a boca para explicar alguma coisa sinto, pelo contrário, a tua crítica. Que faço mal, que as coisas não são assim, que com os miúdos procedo pior ainda.... Estou cansado de termos de atender às coisas que a tua mãe acha e que tu achas tal qual ela! Sinto que éramos nós e depois o mundo. Agora, não há nós sem a perturbação, a intromissão, do mundo.

Quando voltares, ao fim do dia, já sem gravata, vamos olhar-nos numa cumplicidade estranha. Essa estranheza da cumplicidade dos seres que supostamente se amam e se

ignoram. E ambos sabemos o que se está a passar. O nosso olhar diz isso mesmo, comunicam, remetendo-se ao silêncio. Ao não dizível. Surgem as frases salvadoras, feitas de funcionalidades que parecem salvar-nos do absurdo, ou do silêncio total, que os miúdos estranhariam.

E tenho medo, muito medo, por nós e pelos miúdos. Tudo mudou desde que eles chegaram. Não por culpa deles, claro. Mas às vezes sinto que uma infiltração silenciosa penetrou pela nossa casa adentro. As nossas crenças, os pensamentos, os valores, tudo parecia tão alinhado quando éramos só os dois. Não me sinto valorizada por ti. Não sinto que compreendes todo o esforço, parte dele invisível, que tenho feito por nós, pela nossa família. Já não discutimos, já não gritamos. Essa fase, já lá vai. A resignação apoderou-se das poucas raízes que sustentavam a nossa relação. Não paras de querer ir para fora e de ir fazer coisas. Talvez isso te ajude, mas eu não tenho forças sequer para um café de circunstância, onde sinto que tenho de fazer um esforço incomensurável, para esconder todos os sinais do meu ser. Para que não percebam. Para que ninguém perceba. Nem as minhas amigas mais próximas.

Para a semana é o aniversário da tua mãe. Se soubesses como antecipo isso! E como detesto ter de ir lá a casa, ver os teus sorrisos cúmplices com e ela, enquanto nós deixamos de ser um para o outro. Os mais pequenos detalhes dos encontros familiares parecem farpas dilacerantes. Mil vezes o trabalho! Deem mais tarefas. São bem-vindas. A nossa casa deixou de ser confortável. De cada vez que ponho a chave na porta ao fim do dia é como estivesse a entrar numa zona de cessar-fogo implícito. Lá fora, o mundo destrói-se, não sabendo distinguir entre o Bem e o Mal. E nós, temos a nossa vida absolutamente devastada, por vagas sucessivas de destruições feitas de mal-entendidos, desencontros, zangas e desilusões. Deixamos de ter canais de comunicação. Perdemos a admiração, o respeito. Nenhum canal humanitário entre nós parece conseguir abrir uma nesga da porta que fechamos entre nós. Para sempre? Perdi toda a esperança.

Diretor Clínica Ispa

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