A eleição de Donald Trump como presidente americano foi um choque brutal. O candidato fez o contrário do que devia, disse tudo o que não era suposto e, apesar disso, ou por causa disso, foi eleito. O paradoxo suscita muitas perguntas interessantes e inquietantes, mas o mais sensato agora é resistir a essas reflexões, bem como ao asco que a personagem impõe, para nos centrarmos na verdadeira questão relevante: que implicará a presidência Trump para a América e o mundo?.Antes de mais ressalta uma incógnita. Ninguém sabe, ou pode saber, o que vai acontecer; nem o próprio. Ninguém recuperou do abalo esmagador da inesperada eleição e falta muito para a definição dos contornos da nova administração. Isto é verdade para todos os presidentes eleitos, mas gritante neste caso..Podemos guiar-nos pelas promessas eleitorais, mas sabemos que não devemos guiar-nos pelas promessas eleitorais; aqui como sempre. Trump prometeu que poria em causa velhas alianças diplomáticas, criando dificuldades aos estrangeiros, desde um muro com o México à expulsão de imigrantes ilegais e proibição de entrada de muçulmanos. Jurou aumentar o proteccionismo e rever os tratados comerciais com Ásia (TPP), Europa (TTIP) e vizinhos (NAFTA). Garantiu uma posição conservadora nas questões fracturantes, do aborto e casamento homossexual ao sistema de saúde e armas de fogo. Assegurou aumentar o défice orçamental, com cortes nos impostos e despesas abundantes. Quantas destas promessas serão realmente cumpridas é algo que ninguém sabe, nem ele mesmo..O processo político em Washington tritura qualquer um, em especial um caloiro, que nunca esteve na política. A maioria republicana em ambas as câmaras do Congresso parece uma vantagem, mas os piores inimigos estão sempre do próprio lado. Até porque a contestação popular ao presidente, que já começou, ameaça bater os recordes dos tempos de Nixon. Analisar a presidência Trump por este lado é cair numa especulação fútil e enganadora. O resultado do mandato será certamente menos mau do que tantos temem, pior do que outros imaginam, e diferente do que todos acham. Hoje é simplesmente indescritível..Existe, porém, uma linha de abordagem mais razoável e fecunda. Marine Le Pen, na reacção pública ao resultado americano, disse que a eleição de Trump "não é o fim do mundo, mas é o fim de um mundo". Ela tem razão, não apenas pelo facto em si, mas sobretudo por toda a envolvente, de que a francesa faz parte. Esta eleição coroa uma dinâmica que já vem de longe, e que inclui os sucessos de Tsipras, Orbán e Kaczynski, a influência de Le Pen, Jerónimo de Sousa e Iglésias, o surgimento de Bernie Sanders, Catarina Martins e Nigel Farage, entre muitos outros. A evolução, que assombra o início deste terceiro milénio, já teve em 2016 dois momentos decisivos: o referendo britânico de 23 de Junho, que ditou a saída do Reino Unido da União Europeia, e sobretudo esta eleição americana de 8 de Novembro. Ainda falta o referendo constitucional italiano a 4 de Dezembro..Todos estes fenómenos resultam de um profundo descontentamento popular e determinam o novo mundo que Le Pen proclamou e a América escolheu. As pessoas estão zangadas, têm medo, exigem mudanças. Não sabem bem aqueles que apoiam, mas conhecem os que odeiam, culpam e acusam: políticos, instituições, corruptos, bancos, estrangeiros. Não têm a certeza do que querem, mas dizem claramente aquilo que detestam: integração económica, acolhimento de estrangeiros, globalização. A candidatura de Trump era um sintoma; mas a sua eleição tornou-o a doença..A variedade de orientações, discursos e medidas é miríade e a incerteza enorme, mas existe um traço comum em todos estes casos: quebra da solidariedade. Corte da solidariedade com aliados e parceiros internacionais, vistos como inúteis e oportunistas; esboroar da solidariedade política, nacional e institucional, considerada injusta, enviesada e paralisante; fragmentação da solidariedade com estrangeiros, pobres e estranhos, acusados de parasitas, criminosos e terroristas..A história dos últimos dois séculos regista várias quebras de harmonia e traça com clareza o caminho que daí resulta. A ruptura da solidariedade começa por rasgar a cooperação interna e externa; segue-se o desprezo pela democracia e a suspensão de direitos e instituições, terminando em geral com a morte da paz. O mundo que agora acaba, o sistema que azedou, foi precisamente a era de abertura e cooperação que nasceu dos escombros resultantes da anterior quebra de solidariedade.