As ruas da Mouraria no Martim Moniz, junto às duas mesquitas - uma na Rua do Terreirinho e outra no Beco de São Marçal, por cima da Rua do Benformoso -, são um vaivém de muçulmanos nas horas das orações, oriundos sobretudo do Bangladesh e do Paquistão, mas também de outras nacionalidades. Nesta segunda-feira afirmavam-se tristes com a imprensa que disse que a rixa que envolveu 40 pessoas na noite de sábado se deveu a disputas religiosas, citando fontes policiais. "São questões pessoais, nada têm que ver com a religião", protestam..A mesma contestação é feita por Rana Talism Uddin, presidente da Comunidade Islâmica do Bangladesh, reeleito em 2017 para um mandato de quatro anos."Não existem problemas religiosos, existem duas mesquitas porque a principal [Beco de São Marçal] se tornou pequena, quando a nova mesquita estiver construída, quando tivermos uma mesquita grande, a comunidade poderá orar junta. Não há disputa de liderança religiosa, os imãs das duas mesquitas são escolhidos e um está aqui há dez anos. E o líder da comunidade, eu próprio, foi reeleito em 2017 e só haverá novas eleições em 2021", argumenta, contrariando a versão apresentada pela PSP..Aquelas explicações foram dadas ao fim da tarde desta segunda-feira no Centro Nacional de Apoio ao Imigrante, numa reunião convocada por Luísa Malhó, que substitui Pedro Calado no Alto-Comissariado para as Migrações desde 2 de janeiro, data em que o ex-alto-comissário passou a integrar a Fundação Calouste Gulbenkian.."Explicámos a situação, que os jornalistas escreveram sobre coisas que não sabem, que os confrontos não têm que ver com a religião. Falámos sobre como podemos colaborar, foi uma reunião muito importante", diz Rana Uddin. Acrescenta que contactaram os responsáveis da Junta de Freguesia de Santa Maria Maior (onde se integra a Mouraria), da Câmara Municipal de Lisboa e da polícia, apresentando a sua versão e o interesse em cooperar para diminuir os conflitos no bairro..Rana Uddin garante que o que esteve na origem dos confrontos com elementos da mesma comunidade são disputas entre grupos rivais do distrito de Sylhet (nas margens do rio Surma, no nordeste de Bangladesh). "São rivais do mesmo distrito, não são grupos religiosos, é a quarta vez que entram em confronto, as últimas duas vezes em setembro e no sábado.".José Duarte lembra-se desse dia de setembro. É proprietário, com a mulher, da Tasca da Isilda, na Rua do Terreirinho, ao lado da mesquita, e responsáveis pelo restaurante da Casa da Covilhã, na Rua do Benformoso. "Há quatro/cinco meses também houve confusão, os vidros das montras são muito resistentes, deram tanta pancada com barras e não partiram, mas se tivessem quebrado, eles tinham ficado todos feridos. Mas são guerras entre eles, não nos afetam, é lá entre eles.".Também não lhe acrescentam nem tiram nada ao seu negócio. "Vão aos seus cafés e restaurantes, quem vai aqui almoçar, jantar, comer qualquer coisa ou beber, são os portugueses, os cabo-verdianos, os guineenses, africanos que já vivem cá há anos". diz José Duarte..No sábado o casal não estava na Tasca da Isilda, mas na Casa da Covilhã. O que se conta na Mouraria é que os confrontos começaram ainda no Martim Moniz, os grupos dividiram-se, um veio pela Calçada da Mouraria e outro pela Rua do Benformoso, acabando por se encontrar na Rua do Terreirinho, um pouco à frente da mesquita mais pequena, que fica no número 89..Massarf Husseim, 33 anos, e Meha Uddin, 32 anos, ambos do distrito de Comilla do Bangadesh e a residir em Portugal há quatro anos, dizem frequentar os dois espaços. Trabalham numa das muitas lojas de quinquilharia e souvenirs da Rua do Benformoso e repetem. "Essa zanga tem que ver com questões pessoais, não tem que ver com a religião. Nós vamos às duas mesquitas, conforme nos dá jeito ou se uma está mais cheia do que outra. Gostamos de Portugal, as pessoas são simpáticas, são pela paz.".Uma mesquita à distância de uma rua.As duas mesquitas distam metros uma da outra, a mais antiga e maior, a do Beco de São Marçal, é dinamizada pelo Centro Islâmico do Bangladesh (CIB) e chama-se Mesquita Baitul MuKarram, cuja imã é Abu Sayed, desde 2010. O espaço religioso mais pequeno é suportado pela Associação Cultural Islâmica em Portugal (ACIPT) e o seu imã, que acabou de chegar, é Muhammad Ala Uddin.."Entrei para a mesquita neste mês e não percebo muito bem o português, mas sei que o que houve não tem nada que ver com a religião. Somos gente de paz", diz Muhammad Ala Uddin, minutos antes das 17.45 do dia 20, a quinta oração do dia. Tem 39 anos, vive em Portugal há quatro, estudou na Universidade no Bangladesh. Explica que foi escolhido pelo comité responsável pela mesquita, convida-nos a entrar no espaço, onde nos entrega uma folha A4 com o mapa dos horários das orações em janeiro, seis diárias..Mas a PSP mantém a versão inicial: "O comando da PSP esteve reunido com a comunidade e o que apurámos até ao momento aponta para uma motivação religiosa e não há qualquer tensão étnico-geográfica entre a comunidade", reafirma fonte da polícia, depois de ser confrontada com as versões da comunidade imigrante. Sublinha: "Alguma motivação terá havido para acontecer o que aconteceu, eram 40 pessoas, não eram algumas pessoas, e a polícia está interessada em perceber as motivações até no âmbito do policiamento de proximidade.".Rana Uddin quer saber como chegaram a tal conclusão. "Falaram com quem? Com as pessoas envolvidas? A maioria não fala inglês", argumenta. Sublinha que apresentaram os seus argumentos às autoridades, pediram mais vigilância na zona e que tudo está a ser feito para evitar novos conflitos. Convocou a comunidade para reunir nesta terça ou quarta-feira, dependendo da disponibilidade da Casa da Covilhã, onde costumam realizar os seus encontros, para debater o que se está a passar na Mouraria..Para Rui Nene, o que se está a passar é que a Mouraria se transformou e não têm sido tomadas medidas de fundo para integrar essas comunidades, sobretudo para que respeitem as leis locais. É um dos donos da Domingos & Nogueira (D&N), uma casa bem portuguesa, que vende peles, artigos de sapateiro e marroquinaria desde 1948. Muitos clientes são antigos, mas há também muita gente nova na área da moda e do design, que começam a frequentar a loja enquanto estudantes..Rui Nene teve o primeiro emprego (aos 18 anos) e o último (56 anos) na loja, que comprou e cuja propriedade divide com o irmão, também vive no bairro. Não estava no local na noite de sábado, apenas reparou que as mesquitas estavam muito cheias na sexta-feira (o dia mais importante dos muçulmanos), inclusive com pessoas na rua, o que já não se verificava há algum tempo. Acrescenta que a comunidade até tem contribuído para uma maior segurança, por exemplo, afastando a prostituição da rua, mas protesta: "O que condeno é que não respeitem as regras. Então a nível da higiene é terrível, deve ser uma questão cultural, mas continuam a deixar todo o lixo na rua. Até já contactámos a junta de freguesia para os sensibilizar para esse problema, se fazem panfletos com a escrita deles quando há eleições, porque é que não fazem a mesma coisa para olhes explicar que não podem deixar o lixo na rua?".Conclui: "Também emigramos e o que ouço é que os nossos compatriotas se adaptaram à cultura e às leis dos países para onde foram. As pessoas do Bangladesh, do Paquistão, são simpáticas, educadas, não são fechadas como os chineses, já consigo que me digam bom dia ou boa tarde quando os cumprimento, mas quando lhes tocamos na religião está tudo estragado. E foi isso que aconteceu no sábado."