Morte à Morte!, o antes e o depois da abolição da pena capital

A Assembleia da República recebe, a partir da próxima quarta-feira, uma mostra sobre os principais momentos da história da abolição da condenação à morte
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"O prior de Marvão procura reconfortar o condenado, mas, subitamente, cai morto. Fulminara-o uma apoplexia. Eleva-se um grande clamor na multidão e o corpo do sacerdote é imediatamente retirado na cadeira onde viera o condenado. No entanto, a execução prossegue. Um padre chamado Sales toma o lugar do prior. O rosto de Matos Lobo é tapado com o capuz da alva e o condenado, com o algoz escarrachado sobre ele, é precipitado no espaço. As pernas do verdugo, porém, resvalam, e ele, para não cair, segura-se à corda. Por momentos, veem-se os dois pendurados, um pelas mãos, outro pelo pescoço, debatendo-se na agonia da sufocação. Por fim, o carrasco, num derradeiro esforço, consegue firmar-se sobre o padecente e completar a execução. Durou o suplício 15 minutos." Este é um excerto do relato sobre a última execução em Lisboa, a 16 de abril de 1842. Pode ser lido e ouvido, na íntegra, na exposição Morte à Morte! 150 Anos da Abolição da Pena de Morte em Portugal, que é inaugurada na Assembleia da República na quarta-feira, às 17.30, após o plenário, e está aberta ao público a partir de quinta-feira.

Como era Portugal na segunda metade do século XIX? Como se chegou à abolição desta pena? Como estamos hoje? Eis algumas das perguntas que a exposição, coordenada pelo historiador Luís Farinha, pretende responder nos seus 11 núcleos temáticos, dispersos numa estrutura em forma de 150, o número de anos que Portugal leva sem pena de morte. É um dos países que mais cedo adotaram esta reforma penal. E, como o seu comissário quis sublinhar, um dos países em que a decisão nunca voltou atrás, com exceção da reposição da pena para crimes militares em 1916, durante a I Guerra Mundial.

O relato, "muito forte", do último condenado ajuda a explicar o ambiente favorável à abolição da pena de morte, segundo Teresa Fonseca, funcionária da Assembleia da República e uma das pessoas que integram a equipa que está a organizar esta exposição. "Foi uma comoção tão grande que, na opinião pública, já estava abolida", refere, a propósito da execução de Matos Lobo e da descrição dos seus últimos dias. O relato pode ser descarregado por QR Code.

A história deste homem é uma entre outros relatos de condenações que foram escolhidos para a exposição. Há a da revolta dos taberneiros no Porto, de que resultaram 17 enforcamentos (12 homens e 5 mulheres), em 1757. Os nomes, retirados da sentença, estarão, um por um, na exposição (uma das mulheres não foi executada por estar grávida).

Está também o relato do que aconteceu a uma das últimas mulheres a ser executada. Chamava-se Leonor Pimentel e era descendente de aristocratas portugueses. "Devia ser uma mulher especial, porque era a diretora do principal jornal republicano de Nápoles e quando houve o fracasso da revolução foi condenada e enforcada." Aconteceu em 1799.

A carta de lei, original, promulgada a 1 de julho de 1867, é outro dos documentos selecionados para fazer parte da exposição. Vem do Arquivo Nacional da Torre do Tombo e faz a capa do catálogo da exposição, que será editado em simultâneo com a inauguração. Acompanha-a uma cronologia dos acontecimentos mais relevantes que precederam a sua assinatura.

Basta fazer as contas à execução de Matos Lobo para ver que, apesar de ainda existir no Código Penal, a pena de morte já não existia nos tribunais. Há mais de 20 que não era aplicada quando foi promulgada. Carrascos, geralmente homens que haviam sido eles próprios condenados à forca, tinham deixado de existir.

A pena é abolida para os crimes comuns, mas é preciso chegar a 1911, mudar de século e de regime político, para que seja posta de parte entre militares. E a história não acaba aí. "Só em 1976 é consagrada a abolição total", diz Teresa Fonseca. A abolição total e a proibição de extradição de pessoas que possam ser condenadas com pena de morte pelo crime que cometeram. "Vamos ter também um original da Constituição de 1976, aqui da Assembleia", continua Teresa Fonseca. A medida "é relativamente recente em relação a outros países". "Também aqui Portugal foi pioneiro", completa.

Hoje, 2017, a Bielorrússia é o único país europeu que mantém a pena de morte no seu Código Penal. Como era e como é a situação são informações que também se pode ler nesta estrutura em forma de 150 que é a exposição Morte à Morte!.

Três mapas do mundo, em três momentos distintos - 1880, 1980 e 2016 - permitem "ter uma visão da evolução, dos países que ainda têm pena de morte", afirma Nuno Timóteo, designer e responsável pela imagem da exposição. Uma leitura gráfica que diz quais os estados dos EUA que mantêm a pena de morte ou que reflete sobre o desconhecimento do número de condenados na China. Da Amnistia Internacional vêm as imagens daqueles que passaram anos no corredor da morte, descobrindo-se que eram, afinal, inocentes.

"A exposição valoriza mais a perspetiva otimista e abolicionista do que a outra, o horror", observa Teresa Fonseca. A história dos últimos 150 anos conta-se em gravuras, pinturas - como a reprodução de Alegoria da Constituição, de Domingos Sequeira, cujo original se encontra no Museu Nacional de Arte Antiga - documentos e livros que se tornaram imprescindíveis quando se fala na abolição da pena capital. Uma dessas obras é Dos Delitos e das Penas (1764), do italiano Cesare Beccaria, fundamental entre os movimentos humanistas.

Um exemplar de Dei Delitti e delle Pene, habitualmente na Biblioteca do Museu da Marinha, estará na exposição no momento dedicado às "estratégias de humanização das leis penais, mesmo antes da abolição da pena de morte", a partir do século XVIII, e à luz das quais se pode entender a abolição da pena de morte. Por exemplo, o salário dos carrascos é posto em causa por um bispo numa sessão parlamentar por ser mais elevado do que o de um sacerdote, fala-se da execução sem sofrimento dos condenados e a cadeia de Lisboa, que começa a ser construída, pretender ser um lugar de regeneração para os indivíduos. Quando a abolição chega aos códices, em 1867, outras leis do Código Penal estavam em revisão.

No debate parlamentar que se faz à época, o facto de já não se condenar à morte é um dos argumentos sobre a mesa quando se fala no assunto. "É usado a favor e contra", explica Teresa Fonseca. "Quem é a favor diz que não faz sentido a lei conter uma disposição que não se aplica, quem é contra a abolição - muito poucos - diziam que se não havia execuções também não valia a pena acabar, estava ali como "espantalho"."

Foram poucas as vozes críticas, reitera Teresa Fonseca, e muita a repercussão nos jornais nacionais e internacionais quando ganhou forma de lei. Também terão eco na exposição. Nomeadamente, a carta enviada pelo escritor francês Victor Hugo ao jornalista do DN Brito Aranha, em que diz que "proclamar princípios é ainda mais belo do que descobrir mundos", cita Teresa Fonseca.

Mas, por aqui, também se fala das tentativas de repor a pena de morte. Na I República, com o assassínio de Sidónio Pais; em 1922, após a noite sangrenta e na sequência de uma onda de criminalidade. Em 1937, com o atentado a Salazar. "E, em janeiro 1974, há um deputado que enumera uma série de atentados que tinham acontecido no ano anterior e diz que Portugal foi o primeiro país a abolir a pena de morte e que é um índice civilizacional, mas que às vezes os países têm de retomar disposições legais que lhes permitam lidar com a situação." Sete anos antes, o centenário da abolição havia sido amplamente celebrado com um colóquio, a publicação de livros e participações de escritores como Miguel Torga ou Vergílio Ferreira.

O último momento da exposição é a projeção em videomapping (Óscar & Gaspar), sobre dois manequins, da história dos debates parlamentares sobre a pena de morte, de 1821 a 1976.

Morte à Morte! 150 Anos da Abolição da Pena de Morte fica até 29 de dezembro. Depois deverá itinerar pelo país. Uma vez que resulta da parceria com o Arquivo Nacional Torre de Tombo, a ideia será passar pelos arquivos distritais. Para já, na Assembleia da República a entrada é livre e estão previstas visitas guiadas.

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