Qual Dom Sebastião a regressar de Alcácer-Quibir, Sergio Moro fotografou a asa do avião e as luzes da noite de São Paulo, aonde voltava depois de advogar por dois anos numa multinacional em Washington. O facto de não ter usado legenda para a fotografia foi lido como uma legenda em si mesma: "sou pré-candidato ao Palácio do Planalto contra Lula da Silva, que condenei em 2018 ainda enquanto juiz, e contra Jair Bolsonaro, de quem fui superministro de 2019 a 2020"..Se é verdade que Moro ainda não oficializou a candidatura, todos os passos dados após o desembarque a dão como muito provável - passou a semana em Brasília em reuniões com outros pré-candidatos do que se convencionou chamar de "terceira via" a Lula e Bolsonaro, anunciou participação num evento do MBL, grupo que há meses procura uma alternativa àqueles dois nomes, e, mais importante, concordou em filiar-se, quarta-feira, 10, a um partido político, o Podemos, condição essencial para alguém se candidatar a um cargo público no Brasil..Mas a pergunta que todos fazem nos corredores de Brasília é "quanto vale, afinal, Moro na corrida eleitoral?". A resposta é "8%", diz a sondagem do instituto Ipespe, revelada na quarta-feira, 3. No inquérito, o ex-juiz e ex-ministro aparece em quarto lugar, um ponto atrás de Ciro Gomes, pré-candidato do PDT, e a larga distância de Bolsonaro (ainda sem partido), com 25%, e Lula (PT), preferido de 41% dos brasileiros..Mas, ainda assim, à frente de todo o pelotão de presidenciáveis da terceira via, como Luiz Henrique Mandetta (DEM), ex-ministro da Saúde, os pré-candidatos do PSDB, João Doria e Eduardo Leite, e Rodrigo Pacheco (PSD), o atual presidente do Senado, entre outros nomes.."Se, de facto, admitir disputar a eleição presidencial do ano que vem, em princípio o ex-juiz Sérgio Moro, depois do exercício da advocacia numa grande firma nos Estados Unidos, servirá mais para emaranhar o meio de campo entre os aspirantes a candidato da chamada terceira via do que para assustar Lula e Bolsonaro", escreveu o jornalista Ricardo Noblat, no jornal Metrópoles.."Moro é o nome que mais atrai a parcela de eleitores que odeia Bolsonaro e Lula. É com tal património que se apresenta, embora ainda não tenha decidido o seu destino. A resistência da classe política a apoiá-lo é grande. Direita e esquerda acusam-no de ter demonizado a política quando comandou a Operação Lava Jato", conclui..Segundo reportagem do Correio Braziliense, Moro é também o preferido dos dissidentes, tal como ele, do bolsonarismo. "Representa uma opção de equilíbrio, né? De que é possível o Brasil vencer a corrupção. Então, eu o vejo como uma grande opção", disse o general Santos Cruz, ex-braço-direito de Bolsonaro, ao jornal. Outros militares, atribuem-lhe o papel de alternativa "ao fanatismo de extrema-direita e extrema esquerda", conforme afirmou o general Paulo Chagas, ex-candidato a governador do Distrito Federal, àquela reportagem..Um dado curioso do mergulho de cabeça de Moro na política é que o partido que escolheu, o Podemos, tem nas suas fileiras alvos da Lava-Jato, a tal operação policial que catapultou o juiz - e acusados de promover candidaturas femininas falsas, além de investigados pela polícia federal e até de suspeitos filmados a pagar subornos a delatores, conforme levantamento do jornal O Estado de S. Paulo.."A cada três décadas, o Brasil elege um salvador da pátria que promete acabar com a corrupção. Em 2018, Jair Bolsonaro reciclou o discurso moralista de Fernando Collor em 1989. Os dois seguiram a trilha de Jânio Quadros, fenómeno eleitoral de 1960", regista o colunista de O Globo Bernardo Mello Franco.."O ex-juiz projetou-se com a imagem de caçador de corruptos. Depois abandonou a toga, virou ministro e caiu em desgraça ao romper com Bolsonaro e ter sentenças anuladas pelo Supremo. Detestado por petistas [militantes do PT] e por bolsonaristas, o presidenciável não terá vida fácil em 2022. Precisará explicar a tabelinha ilegal com procuradores, o desempenho pífio como ministro e a atuação nebulosa como consultor. Além da decisão de concorrer por um partido de má fama", continua.."Fãs de Moro dizem que ele pode furar a polarização entre o atual presidente e o ex", mas, sublinha Franco, "duas rejeições não bastam para fazer um candidato". "Além disso, pesquisas eleitorais mostram que a corrupção desabou no ranking de preocupações do eleitor. E o ex-juiz só conta com a memória desbotada da Lava-Jato"..Outros observadores não excluem que Moro acabe candidato mas não ao Planalto. Em entrevista recente ao DN, a deputada Joice Hasselmann, biógrafa do ex-juiz, aconselhou-o a "disputar uma vaga no Senado". "Até de pantufas, em casa, sem fazer campanha, ele se elege"..Para Augusto Arruda Botelho, colunista do portal UOL, "a eventual candidatura à presidência serve mais como um balão de ensaio para testar o seu nome". "Eventualmente, uma candidatura mais viável para ele do ponto de vista eleitoral seria algo como o Senado ou o governo do Paraná", o seu estado natal..De acordo com o colunista, que é advogado, o maior trunfo de Moro, a Lava Jato, é também a sua maior desvantagem. "Essa candidatura dele, seja lá ao que for, só mostra que Moro agiu enquanto juiz com interesses pessoais, políticos e agora eleitorais". "O que fica bastante evidente é que a condução ao longo da Lava Jato, ou pelo menos um bom período da Lava Jato, tinha sim um interesse pessoal, fazendo com que a autoridade judicial Sergio Moro fosse, como sempre foi, suspeito para julgar os casos da Lava Jato". Também nesta semana, o principal procurador da Lava Jato, Deltan Dallagnol, anunciou a saída do Ministério Público para concorrer a cargo político..Moro determinou a prisão de Lula a seis meses das eleições de 2018 que o antigo presidente liderava nas sondagens. Além disso, depois da subida nas pesquisas eleitorais de Fernando Haddad, o plano B do PT, o ex-juiz soltou uma delação de um ex-braço direito do antigo presidente, Antonio Palocci, para os jornais supostamente explosiva. Finalmente, aceitou fazer parte do governo do candidato vencedor, Bolsonaro, como superministro da Justiça e da Segurança Pública..Pelo meio, cerca de 100 reportagens do site The Intercept de junho de 2019, conhecidas como "Vaza Jato", revelaram que o ex-juiz combinou táticas com a acusação de forma a minar a defesa de Lula e preferiu poupar investigações, por exemplo, a Fernando Henrique Cardoso por considerá-lo "aliado". Lula acabou ilibado do caso que o mandou para a prisão - a de suposta posse ilegal de um apartamento duplex na Praia do Guarujá - e de mais outros 20 processos..Com Bolsonaro, o juiz incompatibilizou-se depois de se sentir pressionado a blindar o presidente e a sua família em casos de polícia. Segundo o então superministro, o presidente quis colocar pessoas da sua confiança pessoal em cargos chave. "O primeiro problema é a violação de uma promessa que me foi feita, de ter carta-branca. Em segundo lugar, mostraria uma interferência política na polícia federal, o que gera um abalo na credibilidade, não só minha, mas também do governo", queixou-se..Na quarta-feira, dia 3, Bolsonaro em depoimento à polícia rebateu: disse que Moro aceitaria trocar o comando da polícia em troca de uma nomeação para o Supremo Tribunal Federal..dnot@dn.pt