Modi apela à calma após dias de violência entre hindus e muçulmanos em Deli
Lojas incendiadas, bandeiras hindus içadas numa mesquita, o Alcorão queimado e pelo menos 27 mortos e mais de 200 feridos. Este é o resultado de três dias de violência inter-religiosa, motins e saques no nordeste de Nova Deli. O caos foi desencadeado por protestos contra a nova lei de cidadania, considerada discriminatória pelos muçulmanos, que foi introduzida em dezembro pelo primeiro-ministro indiano, Narendra Modi. Este já apelou à calma.
"A paz e a harmonia são centrais no nosso ethos [carácter ou identidade]. Apelo às minhas irmãs e irmãos de Deli para manterem a paz e a irmandade em todos os momentos. É importante que haja calma e a normalidade seja reposta rapidamente", escreveu o primeiro-ministro no Twitter, indicando que a polícia e as outras forças de segurança estão no terreno para garantir a paz e a normalidade.
Uma reação que só surgiu ao terceiro dia de protestos e já depois de a líder do Partido do Congresso (oposição), Sonia Gandhi, criticar o governo por não ter conseguido travar a violência, apesar de ter recorrido ao gás lacrimogéneo e às balas de borracha. Gandhi apelou ainda à demissão do ministro do Interior, Amit Shah, diretamente responsável por garantir a segurança na capital indiana. Há apelos para chamar o exército para as ruas e impor o recolher obrigatório.
Os manifestantes armados com pedras, sabres e até armas de fogo têm causado o caos desde domingo nos bairros periféricos de maioria muçulmana, como Maujpur, Mustafabad, Jaffrabad e Shiv Vihar (no noroeste de Deli). Os grupos hindus atacaram lugares e pessoas identificadas como muçulmanos, tendo queimado duas mesquitas, com vídeos a mostrar a multidão hindu a gritar "Viva o deus Rama".
O problema parece ter começado com uma ameaça de um membro do partido de Modi contra as manifestações antilei da cidadania, no domingo. A violência começou então. Na quarta-feira a situação estava mais calma, mas jornalistas na área disseram ter visto muitos residentes abandonarem as casas, por temer mais violência.
O Supremo Tribunal de Deli, que está a ouvir os casos relacionados com a violência, já disse que não pode deixar acontecer outro 1984. Nesse ano, mais de três mil sikhs foram mortos na violência contra esta minoria na cidade.
Mas o que diz a nova e polémica lei? Esta torna mais fácil a atribuição da cidadania indiana a minorias religiosas do Paquistão, Afeganistão e Bangladesh, ou seja, países de maioria muçulmana, deixando de fora precisamente os muçulmanos. Uma lei que alguns consideram ser discriminatório e ir contra a constituição secular indiana. Cerca de 200 milhões de muçulmanos vivem na Índia e o partido nacionalista Bharatiya Janata (BJP), de Modi, rejeita as acusações de discriminação. Desde a aprovação da lei, em dezembro, pelo menos 44 pessoas morreram nos protestos.
A violência irrompeu durante a visita do presidente norte-americano, Donald Trump, que se despediu da Índia na terça-feira, após um encontro com Modi em Nova Deli. Trump regressou aos EUA sem um avanço no conflito comercial com a Índia. Questionado na conferência de imprensa sobre a violência, o presidente norte-americano recusou comentar. "Ouvi falar disso, mas não o discutimos, isso cabe à Índia", disse Trump, garantido que Modi está comprometido em respeitar a liberdade religiosa.
A lei não é o único gesto do governo de Modi, reeleito em 2019, que causou mal-estar junto dos muçulmanos.
A primeira medida foi a revogação do estatuto especial e a autonomia parcial de Jammu e Caxemira, o único estado de maioria muçulmana na Índia. O estado foi dividido em dois e o controlo de ambos os territórios foi entregue diretamente a Nova Deli. Modi alegou que tal medida era para fomentar o desenvolvimento económico e enfrentar a corrupção, mas muitos dos que vivem em Caxemira acreditam que a verdadeira razão é diluir a identidade muçulmana ao permitir que os hindus possam migrar para a região e comprar ali propriedades.
Índia e Paquistão reclamam o controlo sobre a totalidade de Caxemira, mas cada um dos países controla apenas parte. As duas potências nucleares já combateram por duas vezes por causa do território, que continua a ser origem de tensão.
O primeiro-ministro paquistanês, Imran Khan, já reagiu à violência dos últimos dias. "Hoje, na Índia, estamos a assistir à ideologia do Rashtriya Swayamsevak Sangh [grupo de extrema-direita nacionalista hindu] de inspiração nazi a assumir o controlo de um estado de mil milhões de pessoas que tem a bomba nuclear. Sempre que uma ideologia racista baseada no ódio assume o controlo, leva ao derramamento de sangue", escreveu Khan no Twitter, lembrando que já tinha avisado na Assembleia Geral das Nações Unidas que a decisão da Índia de revogar o estatuto especial da região de Caxemira iria desencadear mais violência religiosa.
Além disso, o governo terminou no final do ano passado o registo de todos os cidadãos em Assam, mas deixou de fora cerca de 1,9 milhões de pessoas, muitas delas muçulmanas, que correm o risco de ficar apátridas, acabar em centros de detenção ou até serem deportadas. A ideia é estender o registo (que até agora só existia neste estado no nordeste da Índia) até aos restantes estados indianos até 2024.
A primeira lista datava de 1951, mas não tinha sido atualizada, tendo o estado passado duas grandes ondas de imigração em massa: em 1947, quando a Índia se tornou independente, e em 1971, quando o Paquistão Oriental se transformou no Bangladesh (originando também outra guerra entre a Índia e o Paquistão). Quem não conseguir provar que vivia em Assam antes de o Bangladesh declarar independência, a 24 de março de 1971, é considerado estrangeiro.
O objetivo de atualizar agora a lista era detetar e deportar imigrantes ilegais do Bangladesh. Quem não figura pode ainda recorrer da decisão, desde que apresente documentos que possam provar a sua nacionalidade, mas só tem 120 dias para o fazer. Os media indianos contaram a história de uma mulher de 50 anos que apresentou 15 documentos para provar que era indiana, incluindo quatro listas de eleitores e a prova de que o pai estava na lista original, só para ver negado o seu pedido.
Modi também está prestes a cumprir outra promessa do seu partido há vários anos: em novembro, um tribunal autorizou a construção de um templo hindu no local onde uma mesquita foi demolida por fanáticos hindus em 1992. Os preparativos para avançar com a construção já começaram, apesar de haver quem diga que a decisão judicial legitimou a destruição da mesquita e pode abrir caminho a novos atos de vandalismo e violência (e nestes três dias já houve mesquitas incendiadas em Deli).