Na tarde do dia 22 de julho, Emyra Wajãpi, de 68 anos, chefe da aldeia Waseity, voltava de visita à filha numa região vizinha quando foi esfaqueado no meio da mata. O corpo foi encontrado na manhã seguinte, a boiar no rio, pela viúva. Nove dias depois, ainda não se sabe quem matou o chefe político índio. O crime é atribuído a garimpeiros pelos índios da tribo wajãpi e pela Funai, a fundação estatal brasileira que cuida dos direitos indigenistas. E surge no meio da apresentação de um controverso projeto do governo Bolsonaro para legalizar a caça ao ouro em terras indígenas, conforme prometido em campanha..Os cerca de 25 agentes da polícia federal e do batalhão de operações especiais, o BOPE, enviados à região não encontraram ainda sinais de invasão das terras wajãpi, na região oeste do estado do Amapá, por garimpeiros. O facto de o crime não ter sido testemunhado também dificulta a resolução do mistério. O procurador da República Rodolfo Lopes disse que embora "não tenham sido detetadas pegadas, fogueiras ou outros elementos específicos da presença de humanos [sic] na região, ainda não está descartada a possibilidade de realização de novas diligências". Por exemplo, deve ser desenterrado o corpo nas próximas horas, apesar de a prática atentar contra os costumes indígenas, e submetê-lo a perícia..De acordo com documento da Funai, os wajãpi relatam que entre dez e 15 não índios fortemente armados entraram numa outra aldeia, Yvitotó, quatro dias depois da morte de Emyra, invadiram casas, dispararam tiros de intimidação para o ar, perseguiram mulheres e crianças. Segundo essa nota, os invasores estão na aldeia Aramirã, forçando os wajãpi a se concentrarem numa comunidade vizinha, Mariry, distante 40 minutos a pé. "Podemos concluir que a presença de invasores é real e que o clima de tensão e exaltação na região é alto", adianta a FUNAI..A edição brasileira do jornal El País, tendo por base relato de Marina Amapari, ativista da causa indígena no município de Pedra Branca, onde fica o território wajãpi, diz que os garimpeiros invasores são 50. "Nós não queremos mais a morte das nossas lideranças indígenas. Estamos pedindo socorro para as autoridades competentes do estado do Amapá", acrescentou um morador ao jornal..As versões não são facilmente confirmadas porque autoridades e imprensa só conseguirem aceder a partes da região por estrada, por via fluvial e depois a pé..As reações à morte do chefe índio chegaram a Brasília. Para Jair Bolsonaro, "não há indícios de assassinato", o que levou Randolfe Rodrigues, deputado pelo Amapá do partido Rede, que está no local, a perguntar em artigo no jornal Folha de S. Paulo se o presidente da República acha que foi suicídio.."Esse tipo de violência não pode ficar impune", escreveu, por sua vez, a ex-senadora Marina Silva, líder do Rede. .Fernando Haddad (PT), candidato à presidência derrotado por Bolsonaro no ano passado, disse que "a licença para matar vem do governo"..Um entendimento semelhante ao da relatora da ONU para os povos indígenas, Victoria Tauli-Corpuz, ouvida pelo portal UOL: "Um dos elementos [da tensão no Amapá] é o facto de que o presidente tem anunciado que terras indígenas possam ser usadas para atividades produtivas, essa é uma das razões que explicam a situação, além dos interesses económicos sobre essas terras.".E ao da COIAB, coordenação dos indígenas da Amazónia brasileira, para quem a invasão do território wajãpi é resultado "dos posicionamentos intransigentes, irresponsáveis, autoritários, preconceituosos, arrogantes e desrespeitosos do atual governo, especialmente do senhor presidente da República, com os ataques que vêm fazendo aos direitos dos povos originários deste país, sobretudo aos direitos territoriais já garantidos em terras indígenas completamente demarcadas e regularizadas à luz da Constituição Federal de 1988 e que esse governo vem a todo momento tentando retroceder"..Victoria Tauli-Corpuz ainda pede que a comunidade internacional pressione o governo brasileiro e até mesmo que utilize acordos comerciais - como o tratado entre Mercosul e UE - para exigir uma resposta das autoridades nacionais de cada país diante da crise ambiental e da questão indígena. "Espero que países da Europa que fecharam esses acordos comerciais relembrem ao Brasil as suas responsabilidades e os seus compromissos com os direitos humanos e com o respeito aos direitos de indígenas, assim como com a proteção da Amazónia", afirmou..A relatora já havia criticado o Estado brasileiro durante a gestão de Dilma Rousseff, de 2011 a 2016, mas agora diz que a "extensão do que ocorre é outra". É entendimento generalizado no Brasil e nos órgãos internacionais que, apesar da suposta proteção exercida pelo Estado brasileiro, o assédio de garimpeiros, madeireiras e ruralistas são uma ameaça permanente aos indígenas que vivem na Amazónia e na região centro-oeste do país e que os conflitos ganharam novo fôlego com a eleição de Bolsonaro..O presidente já disse que uma das atribuições que pretende dar ao futuro embaixador do Brasil em Washington, que será o seu filho, o deputado Eduardo Bolsonaro, caso a sua nomeação seja aprovada pelo Senado Federal, é o de atrair investimento norte-americano para a mineração e para o garimpo. "Terra riquíssima, junta-se à Raposa Serra do Sol, é um absurdo o que temos de minerais ali. Estou procurando o primeiro mundo para explorar essas áreas em parceria e agregando valor. Por isso, a minha aproximação aos Estados Unidos", disse o chefe de Estado, no caso, a propósito de reservas yanomamis, no estado do Roraima..Por outro lado, Bolsonaro desviou a tutela da demarcação de terras indígenas para o Ministério da Agricultura, liderado por Tereza Cristina, considerada defensora radical dos grandes latifundiários, cujos interesses chocam com os dos indígenas. Franklimberg Freitas, recentemente demitido da direção da Funai, acusou, entretanto, o secretário especial de assuntos fundiários do Ministério da Agricultura, Nabhan Garcia, de "salivar ódio aos indígenas". O novo presidente do organismo, Marcelo Xavier da Silva, é um delegado da polícia considerado adepto da agenda dos latifundiários..Muito rica em ouro, que só os indígenas estão autorizados a explorar de forma artesanal, a região onde habitam os wajãpi, primeiros habitantes do estado do Amapá e da vizinha Guiana Francesa, é cobiçada desde os anos 70 do século passado por garimpeiros. No espaço de cerca de 600 mil hectares que lhes está reservado por decisão do governo de Fernando Henrique Cardoso (1995-2003), os cerca de mil wajãpi ocupam-se da caça, da pesca e da pequena agricultura e dividem-se por 49 aldeias, uma delas, Waseity, órfã do seu chefe desde o misterioso crime de dia 22.