"Missão cumprida". O cante levou o Alentejo a Praga e foi aplaudido de pé
Foram oito modas alentejanas, cantadas sob absoluto silêncio do público e que, no final, arrancaram palavras como "bravo" e "espectacular". O grupo coral Os Boinas deu esta quinta-feira o pontapé de saída para a 16.ª edição do festival Terras sem Sombra. O evento, que até julho vai passar por 13 concelhos do Alentejo, com dezenas de iniciativas gratuitas, que vão desde concertos de música clássica e erudita, a conferências e visitas guiadas focadas na preservação do património e na promoção da biodiversidade, deu este ano o seu primeiro passo em Praga, capital da República Checa, país que estará em destaque na programação para 2020.
Antes de a República Checa chegar em peso ao Alentejo - já no próximo dia 18 a Igreja Matriz de São Cucufate, em Vila de Frades (Vidigueira), recebe o Tiburtina Ensemble, conjunto feminino checo especializado em canto gregoriano e polifonia medieval - na quinta-feira foi a vez do cante alentejano (classificado património imaterial da Humanidade pela Unesco em 2014) se mostrar em Praga.
Num palco que tem tanto de solene como de histórico - o convento de Santa Inês da Boémia, no estilo gótico, que faz parte da Galeria Nacional de Praga -, o cante foi apresentado ao público checo como "a quintessência da música do Alentejo", pelo espanhol Juan Vela del Campo, diretor artístico do Terras sem Sombra. A responsabilidade de representar o género esteve a cargo de um grupo de cantadores vindo de Ferreira do Alentejo, que cantaram oito modas antes de saírem de palco aplaudidos de pé e com a "sensação de missão cumprida".
"Sentimos que conseguimos trazer o Alentejo até aqui e mostrar o que sabemos fazer. Entre nós, reparamos muito e falamos sobre pormenores que, por vezes, não saem tão bem. Mesmo no ensaio da tarde, notámos algumas imperfeições que durante o concerto foram completamente ultrapassadas. Antes da atuação existia alguma nervosismo, mas hoje já vou dormir melhor porque sinto que demos um passo em frente naquilo que é a nossa qualidade enquanto grupo", diz ao DN o ensaiador Fernando Candeias, 48 anos, admitindo "orgulho" por o grupo estar a Praga "como representante do Alentejo".
Formado em 2014, o conjunto coral Os Boinas é ainda um ator emergente dentro da realidade do cante alentejano e esta atuação em Praga, a convite do Terras sem Sombra, era também encarada como uma espécie de teste ao seu desenvolvimento. A avaliação feita por Sara Fonseca, diretora executiva do festival, foi a melhor possível. "Estiveram lindamente. Estão cada vez melhores e no bom caminho", disse, dirigindo-se ao ensaiador.
Na plateia estava a assistir Luís Pita Ameixa, presidente da câmara de Ferreira do Alentejo, eleito pelo PS. O antigo deputado socialista reconhece que, por mais vezes que isso aconteça, continua "a emocionar-se" sempre que ouve a moda Ferreira do Alentejo (que abriu e fechou o concerto de Os Boinas), até porque esta tornou-se "uma espécie de hino" do concelho a que preside.
Outro dos presentes na sala era Ludek Boura, um dos membros do quarteto de clarinetistas checo Clarinet Factory que também virá a Portugal tocar no Terras sem Sombra - 16 de maio, no Castelo de Sines. Este foi o primeiro contacto do músico checo com o cante alentejano. "Adorei. Há no nordeste da República Checa, na cordilheira de Beskydy, algo parecido, mas cantado por grupos de mulheres que estão em pontos diferentes de uma montanha e se dirigem umas às outras cantando em coro. O que me fez pensar que o cante alentejano também pode funcionar muito bem fora de espaços fechados, cantando em plena natureza", sublinhou ao DN.
Antes do concerto de Os Boinas teve lugar a apresentação do festival Terras sem Sombra ao público checo, após uma primeira cerimónia na Academia das Ciência de Lisboa na passada terça-feira. Depois de Brasil, Espanha, Hungria e Estados Unidos, é agora a vez de a República Checa ser o país convidado desta 16.ª edição do festival.
Em Praga, o novo embaixador português, Luís de Almeida Sampaio, que só chegou em dezembro e ainda nem sequer apresentou credenciais ao presidente checo, destacou o Terras sem Sombra por ser um festival que "combina herança cultural, com sustentabilidade e música lírica", antes de sublinhar que esta "parceria terá um papel importante no aprofundamento das relações bilaterais" entre Portugal e República Checa. "Ser embaixador de Portugal é muito fácil, porque não é nada complicado vender o produto que nós representamos. Temos de facto um produto extraordinário que facilita muita a vida dos representantes de Portugal no estrangeiro", diria mais tarde o Almeida Sampaio, que anteriormente prestava serviço diplomático em Bruxelas como embaixador de Portugal na NATO.
Já Petra Smolikova, vice-ministra da cultura da República Checa, também se referiu ao festival como "uma plataforma da convivência da cultura checa e portuguesa", que vai trazer "música excelente ao Alentejo" naquele que considera ser "um dos maiores eventos culturais já organizados entre os dois países".
"Numa Europa em profunda transformação, continuamos a olhar o nosso continente como uma casa comum. Identidade, história, conservação da natureza, música e arte fazem parte do nosso ADN", considerou, por sua vez, José António Falcão, diretor geral do festival, sublinhando a vertente ecológica deste evento e o facto de contar com uma rede de cerca de 200 voluntários.
O festival segue agora para Portugal. Depois do concerto de 18 de janeiro na Igreja Matriz de São Cucufate (Vidigueira), seguem-se passagens por Barrancos (1 de fevereiro), Mértola (15 de fevereiro), Arraiolos (29 de fevereiro), Viana do Alentejo (21 de março), Beja (4 de abril), Ferreira do Alentejo (18 de abril, no lagar da Herdade de Marmelo, em Figueira dos Cavaleiros), Castelo de Vide (2 de maio), Sines (16 de maio), Alter do Chão (30 de maio), Santiago do Cacém (27 de junho) e, a fechar, Vila Nova de Milfontes, a 11 de julho. Haverá ainda um concerto surpresa a 13 de junho, cujo local e artista só serão revelados mais em cima da hora.
Esta passagem do festival Terras sem Sombra por Praga contou também com o apoio, do ponto de vista organizacional, do Instituto Camões, entidade que promove a divulgação e ensino da língua portuguesa pelo mundo. Localizado bem no centro da capital checa, nas instalações onde também funciona a Faculdade de Letras (que tem um curso próprio de português e literatura portuguesa), esta delegação do instituto conta atualmente com cerca de 140 alunos (dos 17 aos 70 anos) a serem formados em cursos rápidos de português e também de checo, este último procurado sobretudo por estudantes portugueses em Praga.
Stepanka Hulakova, uma das seis professoras do instituto, ensina português para o nível de iniciantes e explica alguns dos motivos que fazem com que a procura dos cursos esteja a aumentar. "Hoje viaja-se cada vez mais e o facto de Portugal ser atualmente um dos destinos da moda procura também faz com que alguns alunos cheguem até nós. Depois há casos de pessoas que compraram casa em Portugal, nos Açores ou no Algarve, e querem aprender a língua. E outras situações, como por exemplo uma senhora checa que veio para cá estudar porque a filha é casada com um português e ela queria poder comunicar melhor com o genro".
O jornalista viajou a convite da organização do Terras sem Sombra