RUAS é o novo álbum de Mísia e chega às lojas esta segunda-feira, dia 27. No dia seguinte, o Teatro São Carlos recebe a fadista para a primeira apresentação nacional do novo trabalho, composto por um momento – Lisboarium, «dedicado a Eduardo Prado Coelho» – com «os sons de Lisboa» e um outro (Turistas) em que Mísia interpreta ao seu estilo canções que, para ela, não são mais do que os fados de outros países e culturas. Aí podem ouvir-se versões de Hurt, de Johnny Cash, Love Will Tear Us Apart, dos Joy Division, ou Como el Agua, de Camarón de la Isla, entre outras.O Casino de Paris já recebeu o espectáculo no dia 8, em mais uma prova de que a fadista continua a ser respeitada e querida por esse mundo fora, como nunca foi em Portugal…Em conversa com a NS’, Mísia fala sobre isso e tudo o resto, apresentando este trabalho que é também um momento de viragem na sua vida artística..Quando lançou o seu livro Os Fados de Mísia, em 2007, disse que queria gravar um disco de fado e que seria a sua «despedida durante alguns anos». Lisboarium é esse disco?.Tem os sinos no fim… «Quando eu partir reza por mim Lisboa». Não é uma despedida, mas é um afastamento. O que tenho ou possa ter de fadista vai estar sempre dentro de mim, não é algo de que uma pessoa se limpe ou desligue, nem tenho intenção de o fazer, o que sei é que ultimamente me sinto com vontade de experimentar outras coisas. Depois, a visão que tinha em 1990, quando gravei o meu primeiro disco de fado, está cumprida, ou seja, o que queria fazer está feito. Neste momento tenho dez discos de fado na minha cabeça se os quisesse fazer, mas ia ser também como aquele escritor que escreve sempre o mesmo livro. Voltarei sempre ao fado mas, neste momento, apetece-me fazer outras coisas, como escrever um livro… O fado pode ser utilizado no futuro mais como uma linguagem..Na mesma altura afirmou não saber como fechar a porta que abriu em 1990. Posso deduzir, então, que já sabe?.Acho que vou fechar a porta com um projecto em 2010. Era para ser feito em 2009, num dos mais importantes festivais da Europa, na região do Ruhr, na Alemanha, mas disse-lhes que este ano não podia fazer porque saía o disco. Mas em 2010, até porque me deram carta branca, vou fazê-lo, porque acho que é um projecto que poderá ficar para o futuro..Este será um fechar de porta que não à chave?.Claro, não fecho nada à chave. Nada é definitivo… nunca.Falando sobre este novo álbum, que Ruas são estas?São as ruas da vida, dos sentimentos, de várias cidades, ruas geograficamente ruas, ruas interiores… São caminhos, mas urbanos, porque sou bastante urbana..É notório que neste Ruas há dois roteiros diferentes. São apenas os estilos que marcam as diferenças entre os dois discos que formam o álbum?.Os estilos e as culturas, as línguas. No entanto, a nível de sentimento, que é o que me faz cantar, não me mexi nem um milímetro, estou no mesmo sítio. Aliás, estou no mesmo sítio desde o princípio, há muitos anos que não me mexo, e que é exactamente cantar a vida e a morte de uma maneira muito expressionista, não diria exagerada, mas é o tal vómito, uma forma muito física, muito orgânica, de cantar. Portanto, não me mexi a nível de sentimentos, de matéria, de trabalho, de objecto, do que é que quero, quais as perguntas que faço a mim própria e qual é a minha autoria na escolha. Como diz um amigo meu, é como pôr bálsamo em cima das cicatrizes para assim continuar..Como nasceu este Ruas?.É um bocado complicado explicar, mas… estava sem editora, portanto artista pobre, e disse para mim que tinha de fazer uma omeleta com meio ovo. Então fui convidada pelo [encenador inglês] Peter Brook para cantar no Les Bouffes du Nord, em Paris, que é onde ele tem uma residência, e pensei que teria de fazer algo com três músicos porque não tinha dinheiro para andar com cinco músicos como andava. Aliás, nunca fui uma pessoa com um karma discográfico bom... Estava a viver em Paris e decidi fazer o Lisboarium, que é a saudade, um sonho de Lisboa de longe. Portanto, foi assim que isto começou e fiz dez espectáculos durante dez dias, em que cantei hora e meia, sem microfone, como numa autêntica casa de fados em Lisboa. O espectáculo mereceu críticas fantásticas do Libération e outros. No fim fui buscar um tema da Edith Piaf e disse que se ela fosse portuguesa de certeza que era fadista. Esta foi a primeira semente para o Turistas, que é poder imaginar certas pessoas, nascidas noutra época e noutro sítio, que se tivessem nascido em Portugal teriam cantado fado..Este Lisboarium seria possível se não vivesse em Paris?.Não, aliás fiz questão de o gravar em Paris e tudo..Foi a saudade, esse sentimento tão português e tão fadista, que a estimulou?.Quando me perguntam por que fui para Paris, respondo que estou à espera de que a saudade venha atacar-me e venha buscar-me. Digamos que me sinto muito portuguesa em Paris, sem ir a restaurantes portugueses. Não preciso de comer caldo verde para me sentir portuguesa, nem acho que o meu trabalho seja um passaporte, pois não preciso de o mostrar, mas gosto de encontrar o fado nas outras culturas. Em Paris vou aos sítios onde acho que estão os fados dos franceses. Para já, se não tivesse ido viver para Barcelona com a minha avó, ida do Porto, não teria sido fadista. Na altura queria estudar antropologia e penso mesmo que não teria sido artista sequer. A saudade, ou a ausência, é que me motivou para fazer coisas..Ouvindo o Lisboarium fico com a sensação de que nas letras se pode trocar a palavra Lisboa por Mísia. É assim, ou nem tanto?.Há fados muito pessoais que foram escritos para mim por pessoas que me conhecem muito bem. Por exemplo, o Fado da Rua da Bica, do Paulo José Miranda, foi escrito a partir das nossas noites na Bicaense; o Fado de Santa Catarina foi escrito pelo Vasco Graça Moura quando lhe contei que tinha comprado a minha casa na Rua de Santa Catarina e que ia lá pôr um copo com uma orquídea antes de colocar os móveis. Há coisas muito pessoais. O Autopsicografia, de Fernando Pessoa… Sou uma fingidora fantástica. Identifico-me imenso com Mário de Sá Carneiro, que para continuar a existir e a ser teve de ir para fora. Sim, acho que há muita Mísia neste Lisboarium… Nunca tinha pensado nisso, a não ser naqueles mais evidentes, como no Fado de Santa Catarina e também nos sinos, por ter ido embora..«Entre esta falta de um porto de ancoragem e o desejo incessante do outro e do mundo» é a frase que encerra a sua biografia no seu sítio na internet. Foi este o ponto de partida para o disco Turistas?.Foi e já não volto atrás, já percebi que vai ser sempre isto. Às tantas, quando já for mais velhinha, talvez fique como o Picasso e queira pintar como uma criança, ou seja, cantar como uma criança e simplificar, simplificar. Já me perguntei no disco anterior, e a frase não é minha: porque é que o rouxinol canta? Porque pode fazê-lo. Na minha página do Facebook tenho esta frase: «Eu não sou aquela que não canta.» Portanto, tudo aquilo que acho que posso fazer bem, na minha humilde opinião, faço, porque sei que não posso fazer tudo… Por exemplo, no tema do Camarón de la Isla não canto flamenco, mas aquilo que acho que consigo cantar. Agora, tudo aquilo que acho que posso fazer, vou fazer, porque vou crescer como pessoa e vou evoluir. Não tenho pressa, mas não posso parar..Além do aspecto emocional e da proximidade com o fado, que critérios usou na escolha dos temas deste Turistas?.Tinham de ser letras que fossem ao fundo, ao que é essencial, e tinham de ser artistas, excepto o turco, que não conheço, que tivessem arriscado um pouco a sua existência. Noutras artes, noutras disciplinas, gosto de pessoas que usam a sua vida como matéria. E tem que ver com coisas locais mas, ao mesmo tempo, universais, como o espanhol Camarón da la Isla, ou a japonesa Misora, rainha do enka, que é uma forma musical muito local, mas são, sobretudo aquelas coisas que vêm do mais interior de nós. Os meus músicos costumam brincar comigo, dizendo: «Vais adorar isto porque não é nada bonito.» Não me digam que é bonitinho… E não se canta fado com uma voz à Nana Mouskouri….Nos últimos tempos, tem trabalhado numa área mais clássica....Primeiro foi um convite de uma mulher em Munique, não sei o que lhe passou pela cabeça, para fazer os Sete Pecados Capitais, de Kurt Weill e Bertold Brecht. Não sei falar alemão e ela devia estar à espera de que eu dissesse que não, mas eu aceitei, memorizei tudo foneticamente. Depois, foi Maria de Buenos Aires, que em 2010 vou voltar a fazer em Buenos Aires, produzido pelo Teatro São Carlos. E, ultimamente, fiz uma experiência no El Grec, em Barcelona, onde cantei a História do Soldado, do Stravinsky, com texto em francês. Quando canto sou uma voz-personagem, porque a interpretação é mais importante do que a perfeição vocal. Mas não procurei isto e penso que surgiu mais pelo meu lado personagem do que pelo de fadista. São mundos que quero investigar. Agora estou a pensar fazer uma coisa e convidar a Liliana Cavani para encenar, mas é uma coisa pessoal sobre a minha vida, sobre as três gerações de artistas. Esta parte de teatro que comecei a desenvolver em Drama Box, no texto que dizia que inventei dia a dia, e que actores que viram acharam que podia dar um monólogo em palco sem nenhum problema e mantendo o interesse das pessoas… Se me convidassem para fazer uma equação, não dava, mas isto é uma coisa natural em mim. Comunicar é essencial e é para comunicar com o mundo que canto fado. Para poder comunicar com um japonês, através da linguagem das emoções, canto o fado..E tem também agendado para Maio um espectáculo na Opera La Fenice, em Veneza?.O Miguel da Silva é um músico que faz parte do fantástico Quarteto Ysaie. Ele é filho de pai português e tem uma atracção muito grande pela cultura portuguesa. Foi convidado pelo Petit Palais, em França, e depois pela Opera La Fenice, em Itália, para algo em que ele convidava outro artista. Conheceu o meu trabalho e convidou-me. Ele toca Brahms, que acha que tem um lado dark e profundo como o fado, e depois acompanha-nos nos fados à viola, instrumento que tem um som mais grave do que o violino. .E em que pé está o projecto do livro?.A minha mãe faleceu em Dezembro e sempre disse que só após a morte dela começaria a escrever, apesar de ela nos últimos anos sofrer de Alzheimer, pelo que não teria percebido. Já fechei a casa de Barcelona e agora acho que posso começar a escrever. Aliás, vai fazer-se uma reinauguração do El Molino, em Barcelona, que é um teatro em que sou o caso único de três gerações que lá trabalharam. Na época em que fiz striptease trabalhei lá, tal como a minha mãe e a minha avó antes dela. E uma coisa que adoro são estas ruas e estas viagens… Ir do El Molino ao Palau de la Musica são os caminhos que têm graça. Quando disse no Palau de la Musica que tinha estado no El Molino, as pessoas ficaram muito chocadas… Mas as pessoas que vão reinaugurar o El Molino convidaram-me para fazer uma obra de teatro a falar das três gerações da minha família que lá trabalharam. Neste Verão está prevista a apresentação do Ruas diante da fachada do El Molino que agora está todo em obras. Quanto ao livro, estou a começar e já tenho alguns textos escritos, mas veremos, pois ainda não sei bem como vai ser..Perfil.Caniche chorão cor-de-rosa.É feliz o ar de Mísia, espalhando-se pela face branca e radiosa, como se fosse pó-de-arroz que esconde 53 anos de uma vida cheia de… emoções. «Tenho uma pele limpinha porque digo quase tudo o que penso e isso limpa», sustenta.Considera-se uma sobrevivente – «um dos traços do meu carácter é ser uma sobrevivente e isso é algo que nos fica nos ossos e não sai» –, recordando amiúde as figuras mais marcantes da sua vida: a mãe e a avó, também elas mulheres das artes.«Sou tão frágil como forte, só que há pessoas que só lhes convém ver o forte e há outras que vêem o bambi…», diz Mísia sobre ela própria, definindo-se ainda como «um caniche chorão pintado de cor-de-rosa».Mísia, alter-ego de Susana Maria Alfonso de Aguiar, nasceu no Porto onde viveu até perto dos 20 anos. Na Invicta, ainda criança, chegou a cantar o fado, mas era um curso de Antropologia que a esperava na idade adulta. «Preciso de me reconciliar com o Porto, por motivos familiares há muito tempo que não vou lá como queria. Preciso de rever os cantos e os cheiros da cidade», afirma.Decidiu, então, viajar para Barcelona, juntando-se à mãe e à avó e iniciando aí a sua vida artística. Stripper no célebre cabaré El Molino durante um ano, Mísia completou o ciclo de três gerações de mulheres da sua família que ali trabalharam.Em 1990 regressa a Portugal e instala-se em Lisboa, dando início a uma carreira muitas vezes incompreendida. No entanto, o estrangeiro sempre a consagrou, respeitou e aplaudiu, o que a levou a actuar nas salas mais conceituadas do mundo. Houve quem lhe dissesse que não tinha aspecto de quem tinha sofrido – e por isso não era fadista...«Lembro-me de uma entrevista com a Ana Sousa Dias, divertidíssima e fantástica, e depois houve uma outra cantora de fado que fez uma entrevista hipersofrida e que também era autêntica e fantástica. Não sei se ela poderia ter feito uma divertida, mas eu podia ter feito uma entrevista a falar das minhas duas tentativas de suicídio, de como eram o meu pai e a minha mãe…», recorda, referindo-se a um período difícil.É a própria que se afirma feliz, apesar de neste momento o amor não lhe bater à porta. «Estou numa época que nem sequer é de solidão, é uma época muito criativa», começa por dizer, respondendo de seguida à pergunta se já encontrou «o tal especial», que sustenta ainda procurar: «Não o encontrei porque fiz muitos erros de casting, que são totalmente compreensíveis e normais tendo em conta o pai e a mãe que tive, e uma pessoa repete aquilo com que tem familiaridade. Estou muito atenta para não cometer mais erros de casting…»Apesar de manter a casa na Rua de Santa Catarina, há três anos mudou-se para Paris, onde vive com dois gatos: Vírgula Manuel e Missuko..«Agora permito-me ser criança».Diz que não é boa a competir mas sim a abrir portas. Hoje sente que isso tem sido uma missão?.Não, fiz isto de uma maneira temerária, mas sem perceber. Diz-se que a ignorância é muito atrevida e eu ignorava os perigos que estava a passar quando abri as tais portas, ou os campos de minas que atravessei. E é verdade que percebi que fiz uma coisa que me faz sentir bem, que foi fazer um tipo de fado, quando comecei em 1990, para o qual não havia público. Agora, involuntariamente, voltei a abrir portas. Nunca pensei em renovar o fado, não sou eu que o faço, o fado renova-se sozinho. Agora, realmente, sou muito má a competir, mas acho que sou boa a ter coragem….E essa coragem, ao fim de 19 anos, sente que foi reconhecida pelo público português?.O público português merece tudo, porque eu não fui fácil artisticamente para ele. Pelas minhas escolhas artísticas, éticas e estéticas, não fui fácil de perceber. Tenho honestidade de dizer que gostava de ser muito mais popular no meu país, mas nunca procurei ser uma artista de culto, isso enerva-me, ou elitista… Fiz o Big Show SIC, dei entrevistas à Maria, ou seja, tentei tudo, foi tipo guerrilha. E continuei a ser a artista intelectual, etc., mesmo depois disso tudo. O que sinto é que as pessoas têm uma enorme simpatia pela Mísia, mas não sabem bem o que ando a fazer. Isso, porém, foi compensado com a aceitação....Não sinto...no estrangeiro..Ainda tem alguma espécie de ressentimento pela forma como foi recebida no panorama musical português?.Não é uma questão de ressentimento, é uma questão de amor. Eu canto e vou para o palco porque quero que gostem de mim. Houve um tempo em que sofri imenso com isto tudo, mas agora já não, já vejo as coisas de outra maneira. Porém, a primeira condecoração que recebi foi em França….E a última em Portugal, em 2005..Foi a Medalha de Mérito Cívico, quer dizer... eu não sou enfermeira!.Mas isso amenizou de alguma forma a situação?.Tenho a sensação de que me deram essa condecoração porque era impossível ser cavaleira das Artes e das Letras no estrangeiro e não ter uma «bugiganga», como dizia a Amália, de Portugal..Portugal trata mal os seus melhores?.Deixo isso como reflexão, senão pode dar a ideia de que estou amarga com o meu país e, olhe para a minha cara, estou feliz. Gosto de cá vir e não quero dar a impressão de que estou sempre a queixar-me. Sinto-me muito bem comigo própria e a boa notícia para as pessoas que envelhecem… se repararem nos olhos da capa do meu livro, são olhos de criança, e os olhos na primeira foto sou uma adulta, com um olhar grave e preocupado, de alguém que tem de tomar conta de si própria. Ultimamente, permito-me ser criança…