Os militares sudaneses, liderados pelo general Abdel Fattah al-Burhan, assumiram ontem o poder, depois de prenderem o primeiro-ministro Abdalla Hamdok e os outros elementos civis do conselho soberano responsável pela transição para a democracia. Numa declaração ao país, o general declarou o estado de emergência, dissolveu o governo e o próprio conselho soberano que liderava, dizendo querer "corrigir o curso da revolução" que há pouco mais de dois anos derrubou Omar al-Bashir. E prometeu manter as eleições previstas para julho de 2023.."As Forças Armadas vão continuar a transição democrática até à entrega da liderança do país a um governo civil eleito", indicou o general de 60 anos, alegando que foram as lutas internas dentro do conselho, entre as diferentes fações políticas, que obrigaram à ação. Mas o que a comunidade internacional já apelidou de golpe surge também a poucas semanas de os militares terem que passar a liderança do conselho soberano aos civis, ao abrigo do acordo assinado em agosto de 2019..Foram os militares que, em abril de 2019 e após meses de protestos da sociedade civil, derrubaram Bashir, que estava há 30 anos no poder. Os dois grupos aceitaram depois partilhar o poder durante a transição, mas a situação foi sempre tensa. Tudo piorou no mês passado, com uma outra tentativa de golpe a 21 de setembro. Nas ruas, multiplicaram-se os protestos de campos rivais: de um lado os islamitas conservadores que querem um governo militar (acusando o civil de não estar a fazer nada para recuperar o país) e, do outro, os grupos que derrubaram Bashir e apoiam o primeiro-ministro, cujas reformas económicas não têm agradado a todos..O general Burhan, que subiu na hierarquia militar com Bashir e coordenou em 2015 o envio de tropas para o Iémen sob a coordenação da Arábia Saudita, alegou ontem que a detenção de Hamdok e os outros ministros civis era necessária devido ao recente "caos e violência" que têm atingido o Sudão. Burhan, que liderou o conselho militar que assumiu o poder após a queda de Bashir antes de liderar o conselho soberano, mantinha um perfil discreto, segundo os especialistas. O primeiro-ministro, que se encontra em parte incerta, era por seu lado o rosto do governo civil. O economista de 65 anos, que estudou no Reino Unido e trabalhou para organizações das Nações Unidas e africanas, não estava no Sudão quando Bashir foi derrubado - no ano anterior tinha mesmo recusado ser seu ministro das Finanças - e foi considerado uma escolha acertada para chefiar o governo..Os manifestantes voltaram ontem às ruas para dizer "não" ao governo militar, respondendo a um apelo de protestos pacíficos do gabinete do primeiro-ministro, que terá sido detido depois de alegadamente rejeitar apoiar o golpe (segundo o Ministério da Informação que continuava leal aos líderes civis). Pelo menos três pessoas terão morrido a tiro e 80 ficaram feridas na repressão das manifestações por parte das Forças Armadas, segundo indicou um sindicato de médicos sudaneses no Facebook..O golpe gerou protestos imediatos um pouco por todo o mundo, com o líder da Comissão da União Africana, Moussa Faki Mahamat, a apelar ao retorno imediato ao diálogo entre os militares e os civis. Já a Liga Árabe apelou a que todos cumpram o acordo de partilha de poder assinado em agosto de 2019. "O secretário-geral da Liga Árabe, Ahmed Aboul Gheit, expressa a sua profunda preocupação com os desenvolvimentos no Sudão", disse o bloco em comunicado..O chefe da diplomacia da União Europeia, Josep Borrell, também apelou a todos para regressarem ao processo que estava em curso. "As ações dos militares representam uma traição à revolução, à transição e aos pedidos legítimos do povo sudanês de paz, justiça e desenvolvimento económico", indicou. Por seu lado, o secretário-geral das Nações Unidas, António Guterres, condenou o golpe e exigiu a libertação "imediata" do primeiro-ministro e dos outros membros do governo detidos. "Tem de haver respeito total pela Constituição para proteger a transição política duramente conquistada. As Nações Unidas vão continuar ao lado do povo do Sudão", escreveu no Twitter..Twittertwitter1452620154744020999.O enviado dos EUA para o Corno de África, Jeffrey Feltman, que ainda no sábado tinha estado em Cartum para insistir na transição democrática numa altura em que os protestos estavam a aumentar, apelidou de "totalmente inaceitável" o golpe. E avisou mais uma vez que "qualquer alteração ao governo de transição pela força deixa em risco a assistência norte-americana" ao país..O golpe no Sudão é o terceiro a ocorrer neste ano em África, depois do de maio no Mali e do de setembro na Guiné-Conacri. No primeiro caso, depois da nomeação de um novo governo de transição que não era do seu agrado, os militares liderados pelo general Assimi Goïta - responsável pelo golpe de 18 de agosto de 2020 - detiveram o presidente Bah N"Daw e o primeiro-ministro Moctar Ouane. Então vice-presidente, Goïta acabaria por ser nomeado pelo Tribunal Constitucional como chefe de Estado interino, mantendo a promessa de eleições para 2022..Já na Guiné-Conacri, o presidente Alpha Condé foi deposto e detido a 5 de setembro pelo comandante das Forças Especiais, Mamady Doumbouya. Condé foi, em 2010, o primeiro presidente eleito democraticamente, mas tinha alterado a Constituição para permitir um terceiro mandato, desencadeando protestos e repressão. Doumbouya foi nomeado presidente interino até às eleições - cuja data ainda não foi anunciada..Já em janeiro, uma tentativa de golpe contra o presidente Faustin-Archange Touadéra, na República Centro-Africana, que tinha começado ainda antes das eleições de dezembro, foi travada. O ex-presidente François Bozizé terá estado por detrás da ação de grupos rebeldes, que têm sido travados com o apoio de tropas do Ruanda e de militares e mercenários russos..No Chade, em abril, a morte na frente de batalha do presidente Idriss Déby Itno, no poder desde 1990, colocou o seu filho Mahamat Idriss Déby à frente de um Conselho Militar de Transição. Este dissolveu o governo e a Assembleia Nacional e prometeu eleições "livres e democráticas" no espaço de 18 meses, não descartando entretanto que esse prazo possa vir a ser alargado caso não estejam reunidas as condições..2019.11 de abril: Quatro meses após o início dos protestos por causa do aumento do preço do pão que se transformaram em exigências de reformas, o exército do Sudão afasta o presidente Omar al-Bashir, no poder desde um golpe em 1989. Um governo de transição militar assume o controlo do país, mas milhares de pessoas acampam frente ao quartel militar exigindo um governo civil..3 de junho: Após falharem as negociações entre militares e manifestantes, o exército irrompe no acampamento e dezenas de pessoas morrem durante a repressão dos protestos. Um grupo paramilitar que teve origem na milícia Janjaweed, acusada de crimes de guerra no Darfur em 2003, é acusado de estar por detrás da violência, mas nega qualquer envolvimento..4 de agosto: Após a intervenção da União Africana, as fações civil e militar chegam a acordo para a partilha do poder, numa transição de três anos até um governo totalmente civil. A 17 de agosto uma "declaração constitucional" é assinada e um conselho soberano que inclui figuras civis e militares é formado três dias depois..Outubro: O governo e os grupos rebeldes que tinham lutado contra Bashir durante décadas chegam a acordo para um cessar-fogo permanente nas três zonas do país em guerra..14 de dezembro: Omar al-Bashir é condenado por corrupção a dois anos de prisão num centro correcional. O Tribunal Penal Internacional de Haia acusa o antigo líder de genocídio, crimes de guerra e crimes contra a humanidade no conflito no Darfur, no qual morreram 300 mil pessoas, mas um procurador rejeita entregá-lo, alegando que tal não é necessário..2020.9 de março: O primeiro-ministro Abdalla Hamdok sobrevive a uma tentativa de assassinato, por muitos vista como uma tentativa de travar a transição. Os problemas sucedem-se: a nível económico no Sudão, onde a inflação dispara em abril, após as fronteiras serem fechadas por causa da pandemia de covid-19..21 de julho: As ruas continuam a pedir justiça e Bashir é julgado pelo golpe de Estado que o levou ao poder em 1989. A nível económico, o governo anuncia que vai desvalorizar a moeda numa tentativa de conter a atividade do mercado negro..Outubro: O Sudão assina um acordo de paz com uma aliança de grupos rebeldes, mas dois grupos recusam assinar e as tribos do leste do país rejeitam também o acordo, considerando-se excluídas. A nível internacional, o Sudão aceita normalizar as relações com o Estado de Israel, num gesto que levará os EUA a retirarem o país, em dezembro, da lista de Estados que Apoiam o Terrorismo - na qual figurava desde agosto de 1993..Novembro: Milhares de refugiados cruzam a fronteira em fuga da guerra na região etíope de Tigré. O conflito reacende uma disputa antiga entre o Sudão e a Etiópia sobre a soberania da fértil região fronteiriça de Al-Fashaqa, com Cartum a enviar militares para a zona. A Grande Barragem do Renascimento Etíope é outro dos motivos de tensão..2021.Fevereiro: O Sudão anuncia um novo governo, que inclui sete ministros de antigos grupos rebeldes..Junho O primeiro-ministro alerta para fraturas dentro da aliança civil que liderou os protestos anti-Bashir..21 de setembro: Cartum anuncia ter travado uma tentativa de golpe de militares e civis ligados ao antigo regime de Bashir, numa altura em que protestos no leste do Sudão impedem as trocas comerciais através do principal porto do país, em Port Sudan..16 de outubro: Manifestantes protestam em Cartum a exigir um governo militar, aparentemente sob o comando de uma fação dissidente do principal bloco de protesto civil..21 de outubro: Em resposta, milhares saem às ruas em apoio da transição para uma democracia civil..25 de outubro: As forças armadas detêm os civis que fazem parte do conselho soberano e ministros do governo, incluindo o chefe do executivo, após este recusar apoiar o "golpe". As detenções geram novos protestos..susana.f.salvador@dn.pt