Miguel Miranda: "A humanidade não lida  bem com a incerteza"

A abrir a sua terceira temporada, a Ciência com Impacto recebeu o físico Miguel Miranda, presidente do IPMA - Instituto Português do Mar e da Atmosfera. Numa conversa dirigida por Paulo Caetano, um dos coordenadores desta iniciativa, abordaram-se os temas mais atuais para as Ciências da Terra. Da previsão dos sismos, às profundezas do oceano, das alterações climáticas até às consequências do clima nas pescas.
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Onde é que estamos a sentir os maiores efeitos das alterações climáticas?
Nos oceanos estamos a sentir os efeitos mais complexos. Nos continentes também sentimos essas mudanças, mas os seus efeitos não são iguais em todas as zonas da terra.

O acesso à água doce é crítico para a Humanidade...
Temos uma competição enorme pela água doce. As zonas urbanas estão a aumentar cada vez mais e, até 2050, estima-se que haja mais 80% de necessidade de água potável. Do outro lado, temos a agricultura que, pressionada pelas mudanças climáticas, é um grande consumidor de água.

Estas mudanças no planeta sentem-se, também, na litosfera? Há umas semanas tivemos um sismo que foi fortemente sentido na região de Lisboa...
Sempre que temos um sismo toca um sino de alarme: atenção que a litosfera mexe-se! Não a sentimos a mexer, só damos pelos resultados - que são os tremores de terra. Quando isso sucede é libertada uma grande quantidade de energia e, o facto de isso ser repentino, retira-nos a capacidade de o poder controlar. E as pessoas não sabem lidar com essa incerteza. Aqui, o grande desafio é prever o curto prazo e saber o que fazer no curtíssimo prazo. Há umas décadas, este problema nem existia. Não sabíamos fazer nada, só nos restava sofrer durante os dois minutos do sismo e irmos para debaixo de uma mesa. Agora, o cenário é diferente. Temos capacidade automatizada para tomar decisões e podem-se criar algoritmos que sejam capazes de fechar gás, parar comboios, ligar geradores de emergência... nós vamos trabalhar, dentro de muito pouco tempo, no período que medeia entre um sismo ser desencadeado e o momento em que o sentimos. É nesse período ínfimo que teremos de atuar.

E como é que isso pode ser feito? Estamos a falar de minutos?
Depende do local e da profundidade onde o sismo acontece. Mas já existe investigação em áreas tão estranhas como as variações da gravidade geradas pelos sismos, que são medidas pelos mesmos sensores que foram desenvolvidos para demonstrar a existência de ondas gravitacionais. Há equipas francesas e norte-americanas a trabalhar nestes temas e acredito que estamos perto de criar sistemas operacionais capazes de aproveitar esse tempo. Não para decisões humanas, mas recorrendo a automatismos.

E em termos de tsunamis? Sei que esta é uma das suas especialidades.
Estamos à beira de uma mudança estrutural na nossa capacidade de acompanhar a terra, os sismos e os tsunamis. Em breve conseguiremos utilizar as novas gerações de cabos submarinos de telecomunicações, onde serão colocados sensores que transmitem informação a 300 mil quilómetros por segundo - mais rápido do que qualquer tsunami. E isso vai mudar completamente a nossa capacidade de atuação.

Quando olhamos para a Terra, há problemas transversais que têm de ser enfrentados no curto prazo?
Claro que há. A Terra é única e todos os sistemas naturais estão interligados. A dificuldade é conseguir monitorizá-los de forma eficiente. Mas atenção: não podemos passar a vida a tentar gerir os problemas de física da Terra como se fossem problemas mediáticos.

Refere-se ao recurso à ciência para justificar decisões políticas?
O problema da política baseada em ciência invadiu a nossa sociedade de alto a baixo. E isso não é bom, porque reduz a importância da política. É como se os políticos dissessem: eu não preciso de fazer escolhas, vou comprar um programa de computador e, conforme as conclusões da ciência, tomo as minhas decisões. Como se o político se reduzisse a um algoritmo. Isto era ótimo se a ciência fosse determinista e soubesse, sem margem de erro, a complexidade de todos os fenómenos envolvidos. Se assim fosse ficámos reduzidos ao big brother. Mas a realidade não é essa. Felizmente, a ciência é um work in progress e, em cada fase, há sempre uma decisão para ser tomada e essa é uma decisão política.

Mas não o preocupa a perspetiva contrária? A falta de interesse da política pela ciência ou a iliteracia científica nos decisores políticos?
Esse não é o problema principal da Europa. A ciência não tem soluções para todos os problemas, só para aqueles que consegue simplificar. A Física foi feita com uma base conceptual que parte do princípio que podemos simplificar a fenomenologia. Mas à medida que vamos acrescentado camadas de química, biologia, sociedade, economia, ecologia... a coisa começa a complicar-se. O que nos leva ao tema da ditadura. No fundo, uma ditadura é uma visão simplista da sociedade, que a reduz a uma equação resolvida de forma autoritária. O caminho é o oposto deste. Temos de nos abrir à complexidade e à variabilidade e percebermos que ela faz parte da vida. A ciência será sempre simplificação, ilumina o caminho e tem de demonstrar capacidade de previsão. Mas a política e a sociedade têm de arriscar mais do que isso.

O mar é uma das competências do IPMA e outro dos seus interesses científicos. Que desafios é que se colocam aqui?

O principal desafio é sermos capazes de antever que alterações teremos nos ecossistemas marinhos, como consequência do aquecimento da água do mar. Mas não só. Temos de conseguir criar uma pesca controlada e sustentável, combinando a defesa da qualidade das pescarias com a defesa da qualidade de vida dos pescadores. A ciência terá, ainda, de ser capaz de encontrar novos princípios ativos provenientes do mar, bem como novos produtos alimentares, que sejam capazes de desenhar o que vai ser a alimentação do futuro.

Coordenador do Ciência com Impacto

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