Uma Herança, romance escrito pelo francês Miguel Bonnefoy, 37 anos, está agora traduzido em português. O escritor, que também tem nacionalidade venezuelana por via materna, já viveu em vários países entre os quais Portugal, onde em Lisboa, na sua adolescência, estudou no Liceu Francês. Guarda boas memórias da capital portuguesa e conta mesmo que a vontade de se tornar escritor, fortemente influenciada pelo pai, tomou forma concreta na casa onde vivia, na zona das Amoreiras..Uma Herança é o seu sétimo livro e sobre o qual os críticos do The New York Times escreveram que fazia lembrar as obras de colombiano Gabriel Garcia Marquez . Entretanto, já publicou um novo livro, L"inventeur (ainda sem tradução em português) e está já a escrever outro romance "mais sul americano". Conta tudo isso ao telefone, desde Toulon, onde agora vive com a mulher e duas filhas. Uma conversa que começou em francês, passou pelo português e continuou em castelhano. Uma mescla de línguas e culturas, tal como é a vida de Bonnefoy..A história do livro Uma Herança é inspirada na sua família e na viagem de franceses que foram para a América do Sul. .Absolutamente. O que me contaram, na "mitologia" familiar, é que a minha família saiu da região do Jura, no este da França, onde supostamente faziam vinho. Há quem diga que simplesmente tinham uma taberna, mas de alguma forma estavam ligados ao comércio do vinho. E com o surgimento da filoxera, que foi uma doença muito trágica para as vinhas, decidiram atravessar o Atlântico e viajar para o Chile. E por lá ficaram a fazer vinho. A primeira geração era ainda muito francesa, a segunda menos, a terceira ainda menos, e a quarta geração, que é a do meu pai - que no livro se chama Ilario Da (Michel Bonnefoy é o seu verdadeiro nome) - era muito chilena. As únicas coisas que tinham de francês eram a dupla nacionalidade e o passaporte. Ficou na família a ideia de manterem o passaporte e passá-lo para os filhos, apesar de nunca terem estado em França. E foi isso que o salvou quando se meteu nos movimentos de esquerda revolucionária e foi preso e torturado pela ditadura chilena. Foi devido a esse passaporte que conseguiu que a embaixada francesa no Chile o tirasse da prisão e o exilasse. Depois chegou a França, conheceu a minha mãe e eu nasci. É absolutamente uma história familiar, mas, claro, como uma porosidade e algumas infidelidades em relação à realidade. O esqueleto narrativo está influenciado na história familiar, no exílio, na migração, nessas trocas entre França e Chile. Por outro lado, tive necessidade de modificar algumas coisas, como criar personagens que não existiram ou omitir outros que de facto existiram..Mas a essência dessa aventura passa muito pela viagem de ida e regresso de franceses que se tornaram chilenos e que gerações mais tarde voltam ao país de origem..É uma ida e volta. Exatamente com um século de diferença. E isso permitiu-me ter uma narrativa fácil: um século, quatro gerações e dois países..Sempre teve o desejo de escrever esta história?.Já há muito tempo que queria escrever este livro. Cresci numa casa em que o meu pai falava muito da ditadura chilena e consequentemente da tortura. Sempre teve necessidade de contar a mim, e à minha irmã, os detalhes do que passou. Não sei se foi bom ou mau, mas acabou por me dar vontade de reescrever essa história. Quando ele chegou a França, com 18 anos, depois de ter sofrido torturas na prisão, escreveu um livro testemunhal que se chama Relato da Frente Chilena, e que foi publicado por uma pequena editora de Barcelona, sob o seu homónimo Ilario Da. Durante muito tempo tive na cabeça esse Ilario Da, que era o meu pai mas ao mesmo tempo não era. E sempre tive a humilde esperança de algum dia escrever sobre esse Ilario Da. No início queria simplesmente agarrar no livro do meu pai, traduzi-lo para o francês e escrever um bonito prefácio. Contudo, quando o comecei a ler achei que poderia ser mais interessante falar dos pais do meu pai e explicar como eram franceses no Chile. E depois fui um pouco mais atrás na árvore genealógica. E, pouco a pouco, cheguei à geração dos Bonnefoy que saíram de França. E aí dei-me conta, com alguma surpresa, que essa viagem se deu um século antes da ditadura de Pinochet. Percebi então que podia ter um livro que percorria um ciclo perfeito, de 1873 a 1973, com duas migrações..O Miguel é metade venezuelano e metade francês. Metade europeu, metade sul-americano. Como é estar entre dois continentes?.É mais uma riqueza do que uma condenação. Quando és jovem não queres ser diferente para não estares à parte, mas depois quando cresci e comecei a escrever essa mistura foi uma riqueza. E isso permitiu-me malabariar a escrita entre os dois continentes. O rigor francês, o lado cartesiano, com uma literatura muito vasta e profunda, com uma história cheia de luzes e ensinamento; e por outro um mundo um pouco mais mágico, mais irracional, um pouco mais onírico com uma literatura muito mais jovem, mas com uma forte identidade. Tenho um pé em cada continente, ainda por cima porque vivi um tempo em Itália, vivi em Portugal, vivi em Berlim durante um ano. A Europa não é só França e sinto-me muito mais europeu que francês e, efetivamente, sinto-me muito mais latino americano do que venezuelano ou chileno. Sim, vivi uma grande parte da minha vida em Caracas, mas também vivi algum tempo na Argentina e no Chile. É uma riqueza imensa poder mostrar que a literatura, e a arte em geral, pode romper fronteiras..E o novo livro, L"Inventeur, é muito diferente de Uma Herança?.É um livro que fala do destino extraordinário, fabuloso e também triste de um homem chamado Augustin Mouchot, que foi um dos pioneiros da energia solar em França. O que é maravilhoso é que era um homem muito triste e frio que conquistou a estrela mais alegre e o calor. Gostei desse paradoxo. Por isso lancei-me numa grande investigação para conseguir elementos da sua vida. Na sua época foi um homem muito conhecido, todo o mundo o seguiu e aplaudia. E podia ter sido uma espécie de Louis Pasteur, um Edison ou um Nicholas Tesla, contudo a história esqueceu-se dele, quase na totalidade e nos dias de hoje quase ninguém o conhece. Pareceu-me interessante tirar do esquecimento a figura maravilhosa e trágica deste homem que conquistou o sol. É um estilo diferente do Uma Herança, é muito mais sóbria, muito mais francesa, muito mais Napoleão III, século XIX. Não é homérico ou épico como no livro. O L"Inventeur é um livro mais íntimo, com uma só personagem num mundo muito masculino, onde entram poucas mulheres, onde não há música: é somente um homem a criar uma máquina para conquistar o calor solar..Ou seja, essa mescla cultural permite que, como escritor, tanto escreva romances mais latino-americanos ou mais racionais..Exatamente, permite-te ter os códigos dos dois lados. Neste momento estou a escrever um livro muito venezuelano, muito caribenho, e que provavelmente vão dizer que é um livro muito Garcia Márquez, mas é normal. Garcia Márquez é como uma árvore tão grande que faz sombra a todas as outras árvores no bosque. Tal como ele próprio tinha os seus mestres e falava de Faulkner, de Virgínia Woolf....Voltando ao livro Uma Herança. Ganhou vários prémios e distinções e foi eleito um dos dez melhores romances históricos do ano pelo The New York Times. Como foi receber estes prémios e distinções? Faz mudar alguma coisa para os próximos livros?.Para ser honesto o que muda realmente é o facto de que um êxito permite dar-te mais tempo. Simplesmente. O livro vende-se melhor e ganha-se mais dinheiro, e dinheiro é tempo. Permitindo-me ter mais tempo para escrever um livro melhor. Para ser honesto, penso que Uma Herança tem muitos defeitos, tem muitas imperfeições e que o meu trabalho, agora, é tratar de as corrigir nos próximos livros. E, muito honestamente, não ligo muito aos prémios, pois se nos deixamos guiar por isso perdemos a lucidez, a vista para ver outros horizontes. Hoje em dia tenho o meu coração totalmente consagrado ao novo livro..E como é o seu processo criativo na escrita?.Também acho muito fascinante saber a rotina dos escritores. Pergunto sempre aos meus amigos escritores como é a sua rotina. Hoje em dia tenho de ir mudando a minha porque tenho duas filhas pequenas, uma de três e outra de um ano e meio. Mas depois de as entregar na escola, de manhã, sento-me a trabalhar. Em geral, o que faço é tomar notas de diferentes cenas. O livro compõe-se verdadeiramente como um puzzle. Sou incapaz de escrever da primeira à última linha, vou escrevendo por pedaços. Neste momento, por exemplo, há semanas que tenho a cabeça ocupada com uma personagem, uma mulher, que irá aparecer no último capítulo do novo livro. Ao trabalhar por pedaços o meu trabalho depois é ligar esses pedaços entre eles, criar um apego, criar a mesma música entre eles..E como foram os anos vividos em Lisboa?.Foram dos mais belos que já vivi, e digo-o sem demagogias. Dos meus 12 aos 16 anos. A minha mãe trabalhava como delegada cultural na embaixada da Venezuela e isso permitiu que vivêssemos num belo apartamento nas Amoreiras, perto do Liceu Francês onde estudei. E vivi uma vida deliciosa entre o Marquês de Pombal, o Largo do Rato e o Parque Eduardo VII. Guardo recordações de grandes amizades e de uma cidade tranquila, serena, acolhedora para os jovens, onde era fácil caminhar. Antes vivia na Venezuela onde não podíamos andar sozinhos à noite. Em Lisboa podia ficar até tarde com os amigos e sem ter medo que alguma tragédia pudesse acontecer. E depois havia a língua portuguesa, que perdi entretanto mas que guardo no meu coração e sei que a tenho em alguma gaveta da minha memória. Se voltasse a Portugal, sei que em poucos meses falaria português fluído. De Lisboa recordo um ambiente e uma língua que me tocou muito. Um dia gostava de apresentar Lisboa às minhas filhas..E nessa altura, de vida lisboeta, já havia a ideia de se tornar escritor?.Sim, nessa altura já havia essa vontade, tanto que os meus primeiros textos foram escritos em Lisboa e depois mostrava à minha professora de Francês ou enviava para alguns concursos em França. Foi no meu quarto, nas Amoreiras, que escrevi os meus primeiros textos. Inclusive fazia rap em português, isto para dizer que a língua portuguesa tem uma musicalidade para mim..E escreve sempre em francês ou também escreve em castelhano?.Por agora escrevo em francês e tenho contratos com editoras que esperam os meus livros em francês. Mas sei que tenho vontade de, em algum momento, poder passar ao castelhano e tentar uma nova aventura literária com um novo idioma. E seria fantástico ter duas vidas de escritor na mesma vida, uma em francês e outra em castelhano. Há vários escritores que o fizeram, como Beckett, Nabokov, etc. Gostava muito de entrar nesse rol de escritores bilíngues..Uma Herança Miguel Bonnefoy Edições ASA 191 páginas.filipe.gil@dn.pt