Miguel Sousa Tavares lançou nesta semana um novo livro. Não, não é um romance à Equador, antes um conjunto de histórias que contam os primeiros quarenta anos da sua vida e a que chamou Cebola Crua com Sal e Broa... Já vamos saber porquê este título exótico, numa entrevista em que relata muitos sentimentos, vivências de vários tempos e até algumas intimidades, mesmo que no livro estejam embrulhadas numa narrativa sempre cuidada e de modo a evitar polémicas entre o que pode ser público e privado. Não deixa de referir que tratava por tu o atual Presidente da República até ser eleito; de classificar António Costa como um político florentino; de fazer várias referências a Mário Soares; de esmagar Salazar, e não esquece Álvaro Cunhal. Aliás, deste recorda uma história para esta conversa que não está no livro: "Encontrei-o num supermercado em Lagos com uma melancia na mão e um ar muito embaraçado. Cumprimentei-o e perguntei-lhe o que se passava. Ele respondeu: "A minha companheira mandou-me escolher um melão e não sei bem se é isto!" Tive de lhe escolher o melão." Entretanto, garante que já desistiu de ir viver para o Brasil: "Aquilo voltou a ser um fungagá." Antes de terminar, reafirma que um dos seus maiores prazeres é viajar e revela os seus dois grandes projetos: "Queria ir à Austrália, se souber de alguém que queira fazer-me companhia..." e fazer "uma grande viagem de barco"..Esta é a história do Miguel carapau?.Sim. Metade dos meus amigos de infância do Norte tratam-me por Miguel carapau, mesmo que não saibam porquê. Já me conheceram assim. E os do Sul não sabem dessa minha alcunha, de que sempre gostei, e no livro relato os lugares onde nasceu..Tem explicação para um título destes!.Só a malta do Norte é que sabe o que é Cebola Crua com Sal e Broa..Comer cebola crua com sal e broa não é nojento?.Nojento? Não é com certeza. Invulgar pode ser, mas era a minha merenda todos os dias no Norte. Merenda é típico do Norte e quer dizer lanche, o que me faz lembrar as aulas de Medicina Legal que tinha na faculdade quando estudava Direito, em que o professor tinha um léxico diferente para os alunos de Direito e os de Medicina: "O ânus para os senhores de Medicina e o cu para os senhores de Direito." Voltando à minha merenda de todos os dias, era deliciosa mesmo que quando acabasse de comer tivesse de ir a correr para uma bica de água gelada para tirar o gosto intenso a cebola com sal..Este livro é um grande confronto com a sua biografia. Como é que sai dele?.Tranquilíssimo, porque o grande confronto era o de escrever enquanto a memória estava fresca. Isto não é um livro pró-memória, mas para deixar registado o que lembro antes de me esquecer..Receia algum estado de demência?.Não, é como quando o computador está com o disco rígido com cagabytes a mais e o melhor é limpar antes que rebente. Portanto, decidi descarregar os dados e agora o espaço está limpo. São os primeiros 40 anos que estão neste livro..E os outros que entretanto viveu?.Já não me interessa contá-los, nem aos leitores. Os mais recentes conhecem a minha vida porque é mais ou menos pública e seguiram-na. Não há muitas novidades. Também acho que é menos interessante no sentido em que o que foi determinante aconteceu até aí, sobretudo na infância, que é como começo o livro por ser a parte mais marcante..Por que razão decidiu recordar?.Sempre tive uma certeza, a de que a infância me determinou muito. No livro, descrevo como é que aos 6 anos um miúdo sai de casa dos pais e do que lhe é habitual na cidade em que vivia e é mandado para um povoado a 400 e tal quilómetros de distância, longe de tudo, e fica por lá dois anos. Hoje seria estudado pelos psicólogos como uma agressão, mas sobrevivi e foi determinante. Sempre achei que tudo o que acontece na infância, pelo menos na minha, iria ser importante. Nesse aspeto, a minha história é muito otimista e prova que não só somos resilientes como capazes de transformar coisas que seriam contra nós numa ferramenta para a vida..Esses primeiros capítulos são bons para quem partilha as ideias de Freud!.Não estou a extrapolar, é o caso pessoal. Os profissionais que tirem conclusões..Quando recorda os colegas de escola que andavam descalços, a intenção é fazer um retrato social já esquecido?.Pode ser esse o facto que me levou a escrever este livro, o de ter a obrigação cívica e ética em contar que frequentei uma escola na primeira classe em que era o único que ia calçado. As pessoas têm a obrigação de saber que esse país existiu, que não foi assim tão longe quanto isso e que é preciso perceber o que significava em termos éticos, sociais e de formação. Até podem dizer "olha que sorte, eras o único que ia calçado", mas aquilo era duro de ver e ser o menino rico da escola pobre. Acho que já ninguém tem essa noção e, quando conto as condições, só penso que se fosse hoje os pais ou a Fenprof encerravam logo a escola..Ao ler essa parte e a da passagem pelo Ministério da Educação compreende-se porque faz uma crítica tão cerrada às reivindicações dos professores....Não a faço assim tão cerrada, apenas uma que foi confundida pelo facto de os professores não quererem ser avaliados - é a base de qualquer evolução profissional, seja no ensino público ou privado. O que chamo à atenção é que tudo é relativo e deve ser comparado. Estamos esquecidos de onde viemos, e não há tanto tempo como isso, e sobrevivemos..São os tais tempos salazaristas que assustaram Mário Soares quando propôs a lei sobre as rendas e lhe disse que era salazarista, o que o levou a cancelá-la de imediato. Pode dizer-se que se nota um antissalazarismo constante?.Era endémico em mim. Tive a sorte e o infortúnio de conhecer o cheiro do salazarismo, e quando digo o cheiro refiro-me ao cheiro da PIDE, por ter acordado três vezes quando iam lá a casa prender o meu pai às oito da manhã. O cheiro dos pides estava entranhado em mim, aquela roupa húmida, suja e sebenta, que era o cheiro de Salazar e do país para mim. Ainda fico com os pelos eriçados quando me lembro desse tempo, tanto que quando ouço conversas e começo a sentir que alguém está a tentar resgatar o Salazar saem-me as garras para fora..Mesmo que boa parte da juventude o ache agora uma figura importante?.São ignorantes e imbecis. Têm a sorte de ter nascido num país onde não precisaram de sofrer nem de lutar pela liberdade. São uns imbecis..Outro dos ódios que lhe lemos é em relação à educação dos jesuítas!.Manda a boa-fé que diga que o colégio de jesuítas onde andei parece ter mudado radicalmente o seu ensino, mas não posso deixar de contar o que vi e o que foi nos anos 1960: uma catástrofe em termos pedagógicos, éticos e religiosos. Os jesuítas que conheci eram uma vergonha, e dou esse testemunho..Conta tudo o que viu ou resguarda-se?.Tive algum cuidado, mas não deixei de fora nada de grave. Digamos que tivesse eu assistido a fenómenos de pedofilia os teria contado, no entanto o que vi já é suficientemente grave. O que me chocou era a total inversão de valores morais e pedagógicos do seu ensino..E no resto dos temas contou tudo?.Uma pessoa tem sempre de se resguardar um pouco porque isto não pretendia ser um striptease. Contei o essencial para conhecer não só o meu percurso de vida, porque não é o centro da história, mas o testemunho de vida que tive a sorte de ver..Uma época em que surge o atual Presidente Rebelo de Sousa e refere o seu pouco apreço pela palavra "afetos"..Exatamente. Acho que quem inventou isso foi Jorge Sampaio, mas o que vejo é que ele é uma fábrica ambulante de afetos e tenho de viver com isso. Hoje tenho um problema quando o encontro, o de não saber como o tratar. Por "senhor Presidente" faz-me uma enorme confusão, pois 15 dias antes de ser eleito tratávamo-nos por tu....Sabe-se que integrou a Mocidade Portuguesa. Como foi a experiência?.Nunca integrei nem tive atividade, era obrigatório. Mas o meu pai teve essa inspiração extraordinária de me dizer: "Inscreva-se na vela porque como eles não têm barcos não vai ter de fazer o que quer que seja." Assim foi, jogava futebol..Grande parte dos seus leitores são mulheres. Há aqui vários machismos....Refere-se à professora D. Alice, que era uma insatisfeita e mal resolvida. Acho que as leitoras não ficarão incomodadas, é um facto da vida que vão reconhecer como verdadeiro..Ou quando perfilha ideais imperialistas sobre o Portugal com colónias....Estou a falar de D. João VI e da época dos impérios. Hoje não faria sentido que o Rio de Janeiro fosse a capital de um império triangular com Lisboa e Angola nos outros vértices, mas teria sido fascinante se ele não tivesse voltado do Brasil. Teria sido muito interessante ver a evolução da história..Que dava quase um Equador?.É verdade, dava um segundo Equador..Quando se acaba de ler o livro sente-se que nada fazia sentido na ditadura. Estaremos num tempo parecido?.Acho que não há comparação. Quando olho retrospetivamente percebe-se que havia uma sensação de fechamento e eu, embora fosse demasiado imaturo para prever o que se seguiria, pensava qual seria o final desta história. Será que iríamos viver eternamente como o último país que ainda combate por colónias em África e a viver à margem de toda a Europa? Hoje, bem ou mal, estamos integrados e não distantes do mundo..Percebe-se que a casa dos seus pais era uma escola alternativa. Foi o que lhe moldou a visão do mundo?.Salvou-me, sobretudo, do sufoco dos jesuítas e do país. Como passava oito horas por dia numa prisão que era a escola e o resto do tempo noutra que era Portugal e o regime do Estado Novo, felizmente na casa dos meus pais havia um espaço de liberdade e de genuína anarquia que nos disciplinava mental, cultural e intelectualmente. Tinha a sensação de que o que se passava dentro da casa dos meus pais não era para ser contado nem aos meus amigos. Era um segredo e, portanto, uma escola alternativa..Foi isso que o faz estudar o marxismo e abeirar-se do MRPP?.Nunca me abeirei do MRPP. Entrei para a faculdade e juntei-me à associação de estudantes que na altura era dominada por eles, mas o que eu queria era estar no contra. Como era o MRPP que dominava, trabalhei com eles, como a seguir trabalhei com a associação que estava ligada ao PCP, e trabalharia com qualquer uma. Sempre fui antimaoista e antiestalinista..Isso não evita que Cunhal lhe tivesse dito que percebia bem de marxismo....Porque tinha feito um curso de filosofia marxista e percebia do assunto..Não esquece que António Costa não ganhou as eleições mas formou governo. Porquê vir até ao presente?.É uma constatação, pois conseguiu formar um governo tendo perdido as eleições. Classifico-o como um político florentino, título que já vi aplicado a Mitterrand. O balanço que faço da sua governação é bem mais positivo do que negativo, e se o anterior governo tivesse continuado as coisas teriam sido piores. Um governo de teimosos é sempre mau. Veja-se o Bruno de Carvalho, mesmo que não seja comparável a Passos Coelho, afinal só ao próprio se pode comparar..Acha que Bruno de Carvalho irá demitir-se?.Só se demitirá por morte ou alguma forma estatutária. Desde o início que percebi que o homem ia ser isto, estava escrito na cara. Faz-me confusão o apoio que tem de certas figuras..Sabemos pelo livro que se recusou a ir para a tropa. Preferia o exílio?.Teria recusado ir se tivesse sido chamado. O 25 de Abril salvou-me, pois não teria ido combater pelas ex-colónias. Já estava decidido na minha cabeça que seria um exilado político. Não iria defender os negócios dos Vinhas, dos Mellos e dos Espírito Santo em África..Muitas das páginas relatam a sua vida jornalística enquanto critica as empresas onde trabalhou. Mudou alguma coisa?.Mudou. Falo do que era a RTP, onde não me deixavam fazer televisão. Era o exemplo da empresa pública onde a inércia proíbe fazer diferente sem enfrentar uma coligação de medíocres que estavam instalados num monopólio, que abanou de cima a baixo com as privadas..Não tem saudades do jornalismo?.Tento não ter saudades das coisas boas porque é uma armadilha horrível. O que transparece no livro é que fugi daquela frase "no meu tempo é que era bom". Felizmente, gosto sempre do tempo que estou a viver..Livro.Cebola Crua com Sal e Broa.Miguel Sousa Tavares.Editora Clube do Autor.363 páginas