A maioria dos que passam pela Rua Alexandre Herculano não sabem da existência do Mercado do Rato. São poucos os que se atrevem a descobrir o que existe por lá atualmente: uma loja social e dois restaurantes nos seus 18 mil quadrados - quase o dobro da área do Mercado da Ribeira..A carne, o peixe e as hortaliças deram lugar à roupa vintage, aos livros e discos. As velhas bancas de mármore estão agora por conta da IPSS Boa Vizinhança de Santo António - a instituição de voluntariado de proximidade que nasceu para unir os moradores da freguesia e que abarca uma série de projetos sociais, ambientais, culturais e económicos..Numa das naves do mercado está desde 2016 um desses projetos: a loja social Dona Ajuda. Tudo começou com um pedido à câmara para "armazenar a roupa" da instituição, explica ao DN a coordenadora Paula Berberan. Lembra-se do estado do mercado "completamente podre e caótico", antes da reabilitação gradual pelos voluntários..Outra das organizações no local é a ONG Dress a Girl, que entrega vestidos e calções a crianças desfavorecidas de todo o mundo, sobretudo nos países africanos de língua oficial portuguesa. Leonor, uma das responsáveis, explica que "muitas vezes, é a primeira vez que essas crianças têm uma roupa nova"..As peças são confecionadas na Dona Ajuda a partir de tecido doado, num encontro semanal do seu "grupo de amigas", que ensina a costurar e a tricotar. Há quem doe tecidos mas também quem se voluntarie para entregar as roupas em mão..Se segunda-feira é dia de costura, é, todavia, a terça-feira que leva pessoas ao mercado. Neste dia, o espaço reencontra um pouco do alvoroço antigo. Há cabazes de peras, bananas e alfaces por toda a parte, naquele que é, desde 2016, um dos pontos de recolha da Fruta Feia - a cooperativa que combate o desperdício de fruta e legumes rejeitados pelos parâmetros da grande distribuição..José Aires, de 36 anos, vem todas as terças ao mercado por causa disso. "Acho espetacular, uma maneira correta e coerente de aproveitar produção de comida que de outra forma iria para desperdício", diz. Apesar de só ter conhecido o mercado através da Fruta Feia, repara no que mudou nos últimos dois anos. "Há mais dinamismo", comenta. Também João Delgado, que trabalha com a cooperativa, confessa só conhecer o sítio há pouco mais de três anos. Afirma que tem vindo a descobrir fragmentos da história do local sobretudo através das "pessoas mais velhas que lá aparecem"..Como é o caso Teresa e Carlota (nomes fictícios, uma vez que não quiseram identificar-se) que frequentam o mercado há 50 anos. A passo lento, recordam a época áurea do espaço. "Vim aqui toda a minha vida, esta sempre foi a minha praça", conta Teresa sobre um passado que deixou vestígios - numa loja, ainda se lê sobre o azulejo: "Talho das Miudezas"..José Saraiva não faz parte desse tempo, mas ainda recorda o mercado em polvorosa quando inaugurou o restaurante O Cantinho do Rato, em 2000. Na altura, era ainda "um mercado municipal com bastante movimento" - isto antes da desativação parcial em 2013 e da tentativa de encerramento em 2014. "Agora, é um mercado de ruínas." Maria de Lurdes, presente desde os anos 1990, é responsável pelo outro restaurante do espaço, o Mercado da Sardinha..A decadência, diz, não deriva apenas das superfícies comerciais que surgiram na zona a partir de 2011. "Ainda estava o mercado em pleno funcionamento, quando a máquina do gelo avariou. O gelo era pago pelos comerciantes: tínhamos de fazer a deslocação ao Mercado de Campo de Ourique e de lá trazê-lo, no nosso transporte." Essa terá sido uma das medidas de um "período de saturação" executado "para acabar" com o espaço, de irritações a conta-gotas, "para as pessoas se cansarem. Havia pessoas que já estavam reformadas; tinham uma determinada idade, 70 e tal. Iam arranjar conflito? Com o pouco que receberam foram-se embora à sua vida"..O finca-pé.Em 2016, perante uma proposta da Câmara Municipal de Lisboa para sair do mercado, José Saraiva e Maria de Lurdes fincaram o pé. "Isto teria fechado definitivamente", asseguram. "Quem é que ficava? Ninguém." Ambos os restaurantes continuaram e puderam assistir ao mais recente marco na história do edifício: está desde fevereiro deste ano sob a alçada da Direção Municipal de Gestão Patrimonial. Nada mais sabem, o destino do mercado continua um enigma. O DN procurou informações junto da autarquia mas não obteve resposta até ao fecho desta edição..Na última década, a regeneração dos mercados passou a ser uma das prioridades da câmara. Em 2014, o Mercado da Ribeira tornou-se um porta-estandarte da cidade. Campo de Ourique, no ano anterior, foi a primeira pedra. Arroios, Santos ou Alvalade Norte e Sul viram os seus espaços serem requalificados. Mas esse futuro nunca passou pelo Mercado do Rato..No Plano Municipal dos Mercados de Lisboa (2016-2020), o edifício ficou fora das ambições de modernização e competitividade, devido à "ação de intervenção em curso". A Empresa Municipal de Estacionamento de Lisboa (EMEL), à qual o espaço foi cedido em 2015, pretendia construir ali um parque de estacionamento - projeto previsto desde 2006 pela autarquia, entretanto abortado. O mercado manteve as portas abertas, mas sem o comércio tradicional que o caracterizava..E é graças ao passa-palavra dos "clientes de rua" que O Cantinho do Rato e o Mercado da Sardinha sobrevivem. Maria de Soares alerta para as dificuldades de acesso da localização: "Obriga a um desvio, é uma zona muito de trânsito e pouco de peões." Arrumado num canto da Rua Alexandre Herculano, passa despercebido, anunciado pelo magro letreiro e a faixa da Dona Ajuda. "Não é fácil, para uma pessoa que não conheça isto, chegar à porta e ter vontade de entrar, não é?", aponta Maria de Lurdes. A divulgação, nas redes sociais e em cartazes, é um esforço único da Boa Vizinhança. Cristina Velozo, que preside a esta IPSS, reconhece que é "muito difícil" chamar a atenção dos meios. "Acho que as pessoas não têm hipótese de ler, não têm tempo. Ou é de um amigo ou não acontece nada.".A nova vida cultural do mercado.Contudo, ao seu próprio ritmo, uma nova clientela descobre o mercado. Ana, voluntária da loja social, menciona os "executivos" e os "jovens" que recebe ao almoço. A designer de moda Paula Melo de Assis visitou o edifício pela primeira vez no mercado social de Natal, inaugurado em 2019 pelo Presidente da República, Marcelo Rebelo de Sousa. Concertos e exposições com fins solidários, como o Arraial Cardinal - em que já participaram músicos como B Fachada ou Gabriel Ferrandini -, também convocam uma geração mais nova. "A parte cultural é algo de que gostamos e que nos faz muito sentido", aponta a presidente da instituição, que imagina a parte desocupada do mercado transformada em espaço de exposições ou oficinas. Já Maria Soares sugere outro percurso. "Acho que, cada vez mais, vai haver procura por mercados tradicionais. Por mim, seria um prazer poder cumprimentar os vizinhos comerciantes quando vou às compras.".Com o passar dos anos, essa hipótese torna-se mais baça. O Plano Municipal dos Mercados de Lisboa, de julho de 2016, registava seis comerciantes no edifício, com idade média de 70 anos. Não houve quem os substituísse nas bancas, após a despedida definitiva de um mercado que, a precisar de limpeza geral e reparação do teto, não consta no Diretório da Cidade do site da câmara..Maria de Lurdes admite que não seja imitado o modelo da Ribeira e de Campo de Ourique, sugere antes uma "zona de restauração" e o aproveitamento do espaço restante com "pavilhões para eventos", mas, no fundo, sabe que são só ideias. Uma dessas, o projeto final de mestrado da arquiteta Sara de Morais Pereira, propunha módulos de startups, incubadoras e coworking. Foi rejeitado pelo Orçamento Participativo, considerado incompatível com a intenção da EMEL de ali construir um parque de estacionamento..Outros planos avançados em 2019 - mas não discutidos com quem permanece no mercado - incluíram a criação de um centro de atendimento a mulheres vítimas de violência doméstica e uma escola básica do primeiro ciclo. Em 2020, o Mercado do Rato está a séculos daquilo que já foi, em tempos de rebuliço diário de peixe escamado e sítio de convívio. Ainda que a Boa Vizinhança tenha vindo renovar o ar, não suprimiu a falta de informação e investimento. Uma coisa é certa para esta IPSS: perder o espaço seria o fim da Dona Ajuda. "Não há plano B", assevera a presidente Cristina Velozo..De um lado, as memórias que prescrevem: "Isto agora é um centro comercial!", observa Carlota, inquieta. Do outro, um destino que teima em não se adivinhar. "Cá estamos", espera José Saraiva. Num dos mercados mais antigos da capital, os dias resolvem-se num purgatório..Texto editado por Filipe Gil