Quando chegou ao internamento do Hospital de São João, no Porto, Nazaré não se interessava muito por bonecos. Era a comida que lhe prendia a atenção. Não podia alimentar-se como as outras crianças, mas a vontade era tanta que dormia com um boião de fruta numa mão e um pacote de bolachas na outra. A menina guineense, de 3 anos, estava a ser alimentada por uma sonda há dois, desde que ingeriu soda cáustica, que lhe queimou e fechou o esófago. Um mês depois de ter chegado da Guiné-Bissau, foi submetida a uma cirurgia que lhe devolveu a capacidade de se alimentar. Agora, dez dias após a alta, no Parque do Covelo, no Porto, os olhos brilham enquanto se delicia com um gelado - os seus e os de quem está à sua volta. Mas, dizem, "o que ela gosta mais é de carne e peixe"..O corpo franzino, o jeito tímido e o olhar dócil de Nazaré escondem uma vontade imensa de comer. Mal acaba o gelado, pede "sopa". Tem sido assim desde a cirurgia de "reconstrução" do esófago. Marta Resende, coordenadora dos voluntários da Missão Saúde para a Humanidade, que cuida da menina em sua casa até ao regresso à Guiné-Bissau, a 17 de novembro, diz que para Nazaré "tudo gira à volta da comida". Não fala muito. "Mas é muito determinada." Acorda a dizer "sumo e bolachas" e, na hora da refeição, pede sempre "grande" ou "tudo". "Tem o estômago reduzido, mas quer sempre mais. Temos de controlar a situação com manobras de distração", diz a advogada, de 27 anos, destacando que, apesar de ter estado muito tempo sem se alimentar normalmente, "começou a comer de forma muito natural". E, atesta, usa garfo e faca com uma destreza ímpar..Nazaré viajou para Portugal graças à intervenção de Maria José Ferreira, responsável pela Missão Saúde para a Humanidade, que já trouxe 58 crianças e jovens guineenses para receber tratamentos médicos e cirúrgicos no nosso país. Uma história que o DN acompanhou desde o Hospital Pediátrico de São José em Bôr, nos arredores de Bissau, onde a menina estava internada. "Quando chegámos, a mãe estava ao seu lado. Tinha um ar assustado, quase de pânico. Não quis falar", recorda Maria José. A progenitora deixou que a filha viajasse rumo ao desconhecido, à procura de tratamento, na esperança de vir a ter uma vida normal. Com a ajuda de uma ONG espanhola (AIDA), a MSH acelerou o processo de deslocação, que já tinha começado por iniciativa de uma outra portuguesa, Manuela Pimenta, mas "estava muito demorado"..Nazaré chegou no dia 18 de agosto juntamente com outras três crianças: Janice Segunda Matcha, de 3 anos, e Maria Augusta Domingas Cá, de 11, ambas com problemas cardíacos; e Bidansata Clai, de 4, um rapaz que também sofria de estenose do esófago por ingestão de soda cáustica. "Esta ainda é uma situação frequente lá. É um pó branco, que as crianças vulgarmente confundem com leite. É a fome", diz Maria José, explicando que o produto é usado pelas mulheres guineenses para esticar o cabelo. Com a sonda, as crianças conseguem sobreviver, mas existem sérios riscos de infeção..A responsável pela Missão Saúde para a Humanidade recorda o fascínio de Nazaré pela comida quando chegou à pediatria do Centro Hospital de São João: "Apanhava o que os outros meninos não queriam, como fruta ou bolachas. Não podia comer, mas zangava-se se tentássemos tirar-lhe a comida." Antes da cirurgia, quando ainda era alimentada por uma sonda de gastrostomia (que lhe foi colocada na Guiné), os enfermeiros deixavam que provasse um pouco das papas, mas tinha de as deitar fora logo a seguir, porque não era capaz de engolir..Como viajou sem a mãe, tal como todas as crianças que vêm através da Missão Saúde para a Humanidade, era visitada "diariamente, várias vezes ao dia", pelos 19 voluntários da organização. Marta Resende, que assistiu à sua primeira sopa, diz que "nas primeiras refeições tinha uma expressão contida mas supersatisfeita". Uma alegria que testemunhamos enquanto come um gelado, pela própria mão. Nazaré não tem qualquer limitação. "Tem apenas uma cicatriz [na barriga]. E é muito cuidadosa com ela, quer sempre pôr o creme." Rodeada de baloiços, só quer estar ao colo. Vai passando dos braços de Marta para os de Maria José. "Precisam de muita atenção, mimo. São crianças que ligam muito às necessidades básicas. Não só à comida como também ao banho, ao ir para a escola." Nazaré frequenta o infantário enquanto está em Portugal.."Tinha o esófago fechado".Estêvão Costa, diretor do serviço de cirurgia pediátrica do Centro Hospitalar de São João (CHSJ) e cirurgião responsável por esta intervenção, diz que Nazaré chegou com o "esófago fechado". No caso de Bidansata Clai, o menino que veio para Portugal com a mesma patologia, foi possível que voltasse a comer fazendo dilatações do órgão. "Mas neste caso tinha mesmo de ser feita a cirurgia. A Nazaré nem conseguia deglutir a saliva.".Em traços gerais, a técnica cirúrgica consiste em "remover praticamente todo o esófago", sem "abrir" o tórax (esofagectomia trans-hiatal). Para o seu lugar - chamado "leito" - é deslocado o estômago, que é puxado através do pescoço (transposição gástrica). Uma cirurgia "aparentemente simples" mas, diz Estêvão Costa, que "tira anos de vida ao cirurgião"..Segundo o diretor do serviço, o Centro Hospitalar de São João foi pioneiro na utilização desta técnica em Portugal, em meados dos anos 1990. Até então, no lugar do esófago era colocada uma parte do intestino, mas o estômago revelou-se um "substituto" melhor. Uma técnica que foi sendo aprimorada (passou de uma cirurgia de sete para três horas) mas que é atualmente pouco usada. Isto porque, explica, "há cada vez menos crianças portuguesas a sofrer este tipo de acidentes, ou seja, a ingerir cáusticos", o que estará relacionado com as campanhas de prevenção..Nazaré é a segunda criança que vem de Bissau para ser submetida a esta intervenção cirúrgica. A primeira foi Zinha, uma adolescente de 14 anos que misturou soda cáustica com água a pensar que era leite. Após a cirurgia, recuperou totalmente, voltou à Guiné e alimenta-se como as outras crianças. "Não ficam com défices de vitaminas", assegura o cirurgião..Como esta ainda é uma situação frequente na Guiné, Maria José já recebeu outros pedidos para trazer crianças com a mesma patologia, que têm em Portugal uma hipótese de vir a ter uma vida normal. Por cá, o Estado providencia assistência hospitalar, através da Direção-Geral da Saúde, e a Missão Saúde para a Humanidade trata de tudo o resto, das deslocações ao alojamento após a alta. Por norma, as crianças ficam numa casa de acolhimento, mas há situações excecionais, como a de Nazaré, em que são acolhidas pelos voluntários até regressarem à ex-colónia portuguesa.