Pós-revolução. No Liceu Nacional de Santarém, como em muitas escolas de todo o país, o calor ideológico e as portas escancaradas para um país novo mobilizam até os alunos mais novos. É este o ambiente de meados da década de 1970 que marca João de Deus, um jovem com raízes alentejanas e uma pesada herança de nome, embora sem qualquer ligação de sangue ao autor da Cartilha Maternal. O futuro médico faz então parte, pela primeira vez, de uma associação de estudantes. Um mundo, o do associativismo, que nunca mais deixou. João de Deus, considerado um dos médicos mais influentes da saúde a nível mundial, acaba de ser eleito presidente da Federação Europeia de Médicos Assalariados (FEMS)..Associação de estudantes do Liceu Nacional de Santarém, associação de estudantes da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Nova de Lisboa, Sindicato Independente dos Médicos, Ordem dos Médicos, Associação Europeia dos Médicos Hospitalares e agora a FEMS. São cerca de 40 anos de associações e cargos, acumulados com a especialização e as consultas de oftalmologia. Uma cronologia que começa nesse momento inicial - muito próximo do outro "dia inicial inteiro e limpo" - marcado não só pelo turbilhão revolucionário, mas também pela figura de um dos ícones do 25 de Abril. "A minha professora de Matemática no Liceu Nacional de Santarém era a Natércia Maia, mulher do Salgueiro Maia. Há que dizer que a política ficava sempre fora da sala de aula, mas nessa altura pude conhecer o Salgueiro Maia, o que naquela fase tinha grande impacto num jovem.".A experiência do associativismo repetiu-se durante o curso de Medicina, na Universidade Nova, onde teve como colega Jorge Roque da Cunha, de quem ficou amigo e a quem se juntou depois no Sindicato Independente dos Médicos. Mas apesar do envolvimento sindical, que surge no final da década de 1980, nos anos em que Leonor Beleza foi ministra da Saúde "e em que o SIM arranca em força", garante que nunca teve partido. "Faço parte do chamado eleitorado flutuante, já votei em vários partidos." Define-se mais como homem de consensos, característica que elogia nos nossos dirigentes associativos e uma das justificações que aponta para o sucesso dos portugueses em instituições internacionais. "Já na Ordem dos Médicos [foi membro da direção da Ordem entre 1999 e 2010], depois de estar na secção regional do sul, tive ligação à parte internacional, onde fui delegado às várias associações médicas europeias. E é aí que o trabalho dos portugueses começa a ser reconhecido. Temos capacidade de diálogo, não somos rígidos, procuramos consensos.".Consultas, cirurgias e jogos de futebol.Capacidades que o levaram à liderança da Associação Europeia dos Médicos Hospitalares em 2010. Ao fim de oito anos, destaca o maior envolvimento dos médicos na gestão hospitalar e a chamada de atenção para tarefas médicas feitas por outros profissionais como as grandes conquistas dos seus três mandatos. Mas o momento mais marcante terá sido mesmo ser considerado no final do ano passado a Personalidade Mais Influente do Setor da Saúde, a nível mundial, na categoria Associações e Federações, um prémio organizado pelo grupo editorial brasileiro Grupo Mídia. Ao seu lado, noutras categorias, estiveram figuras como Melinda Gates, copresidente da Fundação Bill & Melinda Gates (na categoria Referência), ou Yoshinori Ohsumi, nobel da Medicina de 2016 (categoria Educação e Investigação)..Além de "uma surpresa e uma honra", o reconhecimento pode ter sido importante para ser nomeado agora presidente da FEMS, admite. É que o seu nome passou a abrir muitas portas. "É claro que ajuda esse peso que o prémio trouxe, tornei-me uma figura mais pública, o que ajuda a abrir as portas do comissário europeu da Saúde e dos governos para discutir as questões de trabalho dos médicos." E entre aos temas que trouxe imediatamente para cima da mesa, logo após a eleição do último fim de semana em Bruxelas, estão a reivindicação de que o salário mínimo dos médicos seja três vezes superior ao ordenado médio e que o investimento público em saúde seja, no mínimo, de 6,9% do PIB. "Mas queremos também assegurar que os tempos de trabalho são respeitados. E não nos basta dizer que os médicos trabalham sete horas por dia, temos de saber o que fazem nessas sete horas, quantos doentes são vistos, daí a necessidade de estabelecer tempos mínimos por consulta.".Mas no meio de tantos cargos e convites para conferências - ainda nesta quinta-feira fala no Congresso da Associação Europeia de Administradores Hospitalares, em Cascais, e na abertura da Conferência Internacional de Sindicatos Médicos, em Lisboa - faz questão de continuar a acompanhar doentes no seu hospital, o Egas Moniz. "Com horário reduzido, claro, mas quero continuar a dar as minhas consultas e a fazer as minhas cirurgias." Da mesma forma que não dispensa as futeboladas na Ajuda aos domingos de manhã. Quanto ao peso do nome, ri ao dizer que é apenas coincidência, não há - "pelo menos que se saiba", ressalva - relação familiar com o pedagogo. "Mas sou adepto da Cartilha e os meus filhos até estudaram no Jardim-Escola João de Deus."