O sonho era antigo e vinha a ser preparado há alguns anos. À segunda tentativa, a Universidade Católica Portuguesa (UCP) viu o seu curso de Medicina autorizado pela Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior (A3ES). Será o primeiro curso de Medicina a ser lecionado por uma universidade privada em Portugal..O curso deverá começar a funcionar em setembro do próximo ano com cerca de meia centena de alunos, disse à Lusa a reitora da instituição, Isabel Capeloa Gil. Foi desenhado para ter cem alunos, mas no primeiro ano de funcionamento, que a instituição acredita ser no ano letivo de 2021-2022, terá menos. A aposta é na qualidade, e essa não se atinge com pressas, diz a instituição..Como vai ser o curso de Medicina da Católica?.O curso de Medicina da UCP será um mestrado integrado, de seis anos, à semelhança do que acontece nos cursos que já existem nas universidades públicas, e será lecionado em parceira com a Universidade de Maastricht, na Holanda, e o Grupo Luz Saúde (GLS)..Será lecionado em inglês, aberto a estudantes internacionais e, além disso, "distingue-se dos currículos tradicionais por ter uma abordagem mais prática e integrada desde os primeiros anos", segundo o comunicado do gabinete de imprensa da UCP. António Medina de Almeida, médico e professor, responsável pelo curso, explicou à Rádio Observador que este seguira a metodologia usada há muito na Universidade de Maastricht, muito "centrada no aluno, em que a aprendizagem é feita à base da resolução de problemas, mais do que numa educação passiva"..A ideia é que logo no primeiro ano os alunos tenham contacto com doentes simulados, e a partir do terceiro contactem com doentes reais. "Os alunos vão estar inseridos nas equipas hospitalares, mas serão poucos por equipa para que eles possam verdadeiramente participar no dia-a-dia da equipa e não ser apenas observadores", explica António Medina Almeida..No fim do curso, os alunos terão os mesmos conhecimentos que os alunos do ensino convencional, mas terão, garante o responsável, "muito mais à vontade, confiança e satisfação profissional". Haverá, portanto, uma aposta numa série de competências profissionais, que vão do como falar com os doentes ao saber onde ir buscar a melhor e mais atualizada informação..A Católica informa ainda que o curso "será lecionado em instalações modernas e especificamente concebidas/adaptadas ao nível do mais avançado ensino de Medicina que se pratica nas melhores universidades mundiais". A Faculdade de Medicina deverá ser instalada no Campus Universitário de Sintra, junto ao Taguspark, em Rio de Mouro/São Marcos, tal como acordado com a autarquia de Sintra..O montante das propinas ainda está a ser avaliado, sendo certo que será "mais elevado" do que o valor pago por um aluno de Medicina de uma instituição pública. "O custo de formação de um aluno de Medicina na Católica não estará longe do custo de um aluno de uma universidade estatal, sendo certo que esta é subsidiada pelo Orçamento do Estado", afirma Isabel Capeloa Gil.."Vamos encontrar meios para que a propina, sendo mais elevada, possa ser compatível para que as famílias a possam pagar", garante a reitora, dando como exemplo os estudantes portugueses que optam por ir estudar para o estrangeiro por não conseguir vaga em Portugal. Além disso, diz, "a universidade tem um conjunto de bolsas por mérito e bolsas sociais". A reitora apela, por isso, aos bons alunos que se candidatem porque "ninguém deixará de entrar" por motivos financeiros..O primeiro curso de Medicina numa universidade privada.A Católica apresentou um pedido inicial de acreditação em outubro de 2018 que foi "chumbado" pela A3ES em dezembro do ano passado, acatando os dois pareceres negativos que recebeu: um da Ordem dos Médicos e outro da comissão de avaliação de peritos nomeada pela agência..Entre as falhas apontadas nos dois pareceres negativos estavam questões pedagógicas, a discordância da Ordem dos Médicos em relação a uma disciplina e ao tempo insuficiente de contacto com a prática clínica, em hospitais, de acordo com a proposta inicial entregue. Foi ainda considerada a sobreposição de oferta, uma vez que a abertura do curso representaria uma terceira formação em Medicina na região de Lisboa, e o facto de "parte do pessoal docente da nova faculdade ser retirada da Universidade de Lisboa e da Universidade Nova de Lisboa"..A universidade reestruturou o curso e apresentou um novo pedido, que foi agora autorizado. Será a primeira vez que o curso vai ser ministrado por uma universidade privada em Portugal. Para a reitora da UCP, a decisão agora conhecida "robustece o sistema de ensino superior, permitindo que mais jovens se possam formar em Portugal e garantindo a supervisão da qualidade daqueles que praticam medicina no nosso país.".Ao Público, Alberto Amaral, presidente da Agência de Avaliação e Acreditação do Ensino Superior, explicou que a autorização, como "é normal sempre que surge um novo curso", é válida pelo período inicial de um ano, findo o qual, se cumpridas todas as regras, deverá ser renovada por mais três anos..Os fundamentos da decisão ainda não são conhecidos, mas deverão ser publicados em breve no site da A3ES. De qualquer forma, algo já sabemos: a aprovação foi decidida apesar do chumbo dado pela Ordem dos Médicos à proposta da UCP, que continua a ter várias reservas em relação à qualidade e à diversidade do currículo proposto pela Católica. No entanto, o seu parecer não é vinculativo..Além do curso de Medicina da Católica, a AE3S está a avaliar também propostas da Universidade Fernando Pessoa e da Cooperativa de Ensino Politécnico (CESPU)..Na última década, a A3ES recebeu 12 propostas de abertura de novos cursos superiores de Medicina de instituições particulares, mas nenhum foi aprovado. A Universidade Lusófona tentou ter um curso de Medicina em 2010, a Universidade Fernando Pessoa, no Porto, apresentou propostas em 2010 e 2012 (e novamente em 2020) e a Universidade Europeia concorreu em 2015 e 2017. A Cooperativa de Ensino Superior Politécnico e Universitário (CESPU), sediada em Gandra, no concelho de Paredes, já apresentou seis propostas desde 2009..Faltam médicos em Portugal?.De acordo com os dados mais recentes, em Portugal existem mais de cinco médicos por cada mil habitantes (5,15 segundo o World Bank e a Pordata, números de 2017), o que é uma evolução extraordinária: em 2000 havia apenas três médicos para mil habitantes, em 1980 eram 1,9..Portugal é, portanto, o terceiro país da OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Económico) com maior rácio de médicos per capita, à frente de países como Alemanha e Reino Unido. Contudo, se analisarmos o número de médicos que trabalham no Serviço Nacional de Saúde (SNS), a média desce para os 2,8 médicos por cada mil habitantes, abaixo da média dos 28 países da União Europeia (3,6)..No ano passado, o número de profissionais inscritos na Ordem dos Médicos situava-se próximo dos 45 mil, mas, de acordo com o Relatório Social do Ministério da Saúde (2017), apenas 28 609 médicos estavam a trabalhar no SNS em Portugal..Isto faz que o SNS tenha falta de médicos, especialmente no Interior e no Algarve, mas também em Lisboa, em algumas especialidades, como saúde pública e medicina geral e familiar. O facto de muitos portugueses não terem médico de família e de haver longas listas de espera em algumas especialidades no SNS cria esta sensação de que há falta de médicos, o que estatisticamente não é verdade. Há médicos, mas não estão equitativamente distribuídos, quer a nível regional quer entre público e privado, reconheceu a ministra da Saúde, Marta Temido, nesta quarta-feira..O difícil acesso a um curso de Medicina.Questionada sobre o novo curso, na conferência de imprensa sobre a situação da covid-19, Marta Temido limitou-se a admitir que este poderá evitar que os alunos tenham de sair do país para estudar Medicina: "Sabemos que há muitos portugueses que procuraram a sua formação superior nesta área noutros países. Esta oferta formativa será uma oportunidade para eles terem a sua formação cá dentro e, eventualmente, ficarem no país, o que é importante.".É verdade que todos os anos muitos alunos excelentes não conseguem cumprir o seu sonho de entrar num curso de Medicina em Portugal e acabam por ir estudar para o estrangeiro - sobretudo para Espanha e para a República Checa..Quem define o numerus clausus nos cursos de Medicina é a Direção-Geral do Ensino Superior, na dependência do Ministério da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior. Após um congelamento de dez anos, o Ministério permitiu que neste ano letivo as faculdades de Medicina abrissem mais 15% de vagas para o concurso nacional de acesso. Mas, de uma maneira geral, as universidades optaram por não aproveitar essa oportunidade. Aparentemente, as universidades que lecionam os cursos de Medicina consideram que não são necessárias mais vagas ou então que não têm capacidade para acolher mais alunos..Em Portugal existem atualmente sete cursos universitários de Medicina, mais duas universidades (Açores e Madeira) que disponibilizam uma formação básica de três anos que depois é completada numa das outras universidades. No total, estas faculdades abriram 1523 vagas (mais seis do que ano passado)..Os cursos de medicina estão, geralmente, entre aqueles que têm uma nota de acesso mais elevada, sempre com médias acima dos 17 valores:.Universidade do Porto - Instituto de Ciências Biomédicas Abel Salazar: 155 vagas; 18,50 (nota do último aluno que entrou em 2019) Universidade do Porto - Faculdade de Medicina: 245 vagas; 18,27 Universidade do Minho - 120 vagas; 18,22 Universidade Nova de Lisboa - Faculdade de Ciências Médicas: 231 vagas; 17,73 Universidade de Coimbra - Faculdade de Medicina: 255 vagas; 17,97 Universidade da Beira Interior - 140 vagas; 17,73 Universidade de Lisboa - Faculdade de Medicina: 295 vagas; 17,57.Universidade da Madeira - Faculdade de Ciências da Vida: 38 vagas; 17,50 Universidade dos Açores - Faculdade de Ciências e Tecnologia: 44 vagas; 17,48.Porque não abriram mais vagas?.Em junho, o Conselho de Escolas Médicas Portuguesas (CEMP) criticou a possibilidade de aumentar as vagas para estes cursos, argumentando que esse aumento não se justificava em face das necessidades do país e dos lugares na especialidade, como ainda iria comprometer a qualidade do ensino por falta de condições de acompanhamento dos alunos nos serviços de saúde..O CEMP realçava que as faculdades de Medicina esgotaram a sua capacidade "há muito", por falta de "espaços físicos" e pela carência de "recursos humanos que permitam um rácio aluno: tutor de acordo com as recomendações internacionais"..Este organismo considera ainda que "o aumento do número de alunos não equivale a um aumento do número de médicos futuros, sobretudo especialistas", e que aumentar o número de vagas para acesso aos cursos de Medicina apenas vai "engrossar o número de médicos sem acesso a especialização, não contribuindo, em nada, para colmatar as eventuais assimetrias na distribuição de médicos" no país..O mesmo argumento é usado por outros agentes. "Nós somos contra a abertura de qualquer curso novo, seja numa universidade pública ou privada, isto não tem a ver com ideologia", diz ao DN Mar Mateus da Costa, presidente Associação Nacional de Estudantes de Medicina (ANEM).."Sentimos que a formação clínica já está extremamente saturada, as equipas estão extremamente saturadas, não há espaço para mais estudantes e internos nos hospitais, se esse número aumentar os estudantes vão estar a competir entre si quer por um tutor quer por doentes", afirma esta estudante que acabou agora o seu mestrado integrado em Medicina e que considera que este novo curso é "um presente envenenado": abrem mais vagas para os cursos de Medicina, mas não abrem mais vagas para especialização, o que faz que haja um "afunilamento" e, consequentemente, "um excesso de médicos indiferenciados, mas continuam a faltar médicos especialistas". "O que faz falta é um melhor planeamento dos recursos humanos", defende.."O problema não são as vagas para os cursos, o problema é o depois", concorda Constança Carvalho, presidente da Associação de Médicos pela Formação Especializada (AMFE). Em declarações ao DN, esta responsável mostra-se preocupada com uma decisão política que "não vem resolver qualquer problema da saúde em Portugal, pelo contrário, vem agravar alguns dos problemas que já existem".."Faltam médicos no SNS, é verdade, mas faltam sobretudo especialistas. Faltam médicos de saúde pública, intensivistas, internistas, infecciologistas, de saúde familiar... Ao aumentar o número de estudantes de Medicina sem aumentar o número de vagas para especialidades estamos a aumentar a pool de médicos indiferenciados, que não poderão dar resposta às necessidades que existem e que continuarão sujeitos a contratos precários", explica Constança Carvalho..No que diz respeito à formação pós-graduada, ou seja, no acesso à especialidade, a Ordem dos Médicos determina a capacidade formativa dos hospitais para receber médicos internos. Desta forma, a Ordem emite um parecer que, no entanto, não é vinculativo. É a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) quem publica as vagas da especialidade. No ano passado, abriram mais de 1800 vagas para especialidades, o que foi um número superior ao ano de 2018, mas que mesmo assim deixou cerca de 1100 médicos de fora. "O número de médicos que ficam nesta situação aumenta todos os anos e atualmente deverão ser cerca de quatro mil os colegas sem qualquer especialidade. Só quando se esgotar esta pool é que deverão abrir novas vagas para cursos. Até porque um interno não se forma sozinho, é preciso haver médicos especializados nos serviços que possam dar essa formação. É preciso uma alteração de fundo para dar resposta a este problema que não se resolve com novos cursos, seja em que universidade for.".Claro que há quem pense de maneira diferente. Para Isabel Vaz, presidente do Grupo Luz Saúde, este é mais um motivo de orgulho: "O GPL, que faz 20 anos neste ano, já colabora com os dois cursos de Medicina das universidades de Lisboa, e, portanto, isto não é uma novidade. Nós já formamos médicos para o país e queremos continuar a fazê-lo." O Hospital Luz Lisboa duplicou recentemente a sua capacidade e tem atualmente mais dois mil metros quadrados só para inovação e ensino, com um laboratório de simulação médica de grande qualidade, afirma Isabel Vaz ao DN.."Queremos continuar a ser parceiros do ensino superior em Portugal, não só na área da saúde mas também da gestão e da engenharia", diz esta responsável, sublinhando que o ensino tem também um potencial económico e de internacionalização. "Este projeto não pode ser visto como uma ameaça, é algo que vem adicionar valor e não diminuir", conclui.