Mayra Andrade: "Esta força muitas vezes assusta os homens"
Muito mudou em Mayra Andrade desde Lovely Difficult (2013). A chegada aos 30 anos - hoje tem quase 34 - iniciou na cantora uma revolução que ainda nada foi capaz de travar, libertou-a, deu-lhe força, uma força marcadamente feminina, apresentou de uma vez por todas a cantora à sua voz e ela começou, de uma vez por todas, a cantar a sua vida.
Manga, o novo disco, lançado nesta sexta-feira, é essa espécie de autorretrato sem autocensura. A quem não gostar, previne, resta-lhe os anteriores quatro álbuns.
Talvez não por acaso, Manga começou a formar-se depois de Mayra Andrade se mudar para Lisboa e numa noite sonhar que encontrava David Bowie, seu vizinho, conta no final da entrevista, com o gravador já desligado.
Raramente se fala dela sem percorrer a sua geografia, que começa em Cuba, onde nasce, e atravessa Cabo Verde, claro, a sua terra, Senegal, Angola, Alemanha, ou França. Foi para Paris que, aos 17 anos, foi viver sozinha. Durante um ano inteiro não se permitiu a si mesma chorar.
Desde Lovely Difficult Mayra Andrade passou dois anos na estrada e viveu um ano sabático, que tirou para si, o ano da sua mudança para Lisboa. Há dois anos que Manga está a ser trabalhado. Conta com canções de Sara Tavares, Luísa Sobral ou Cachupa Psicadélica, mas a maioria são suas. Também lá está o seu guitarrista, Kim Alves, o produtor Romain Bilharz, que trabalhou com Stromae, Ayo ou Feist, e nomes do panorama urbano da África contemporânea como 2B, Akatche, Momo Wang e JC.
Manga, disco fortemente urbano e, simultaneamente, com qualquer coisa que vem muito de lá atrás, do primeiro Navega (2006), fala do amor, da sensualidade, ou da família, com a avó Eugénia em Guardar Mais ou essa "ânsia de sermos dois e três e quatro e cinco, e as mil coisas que sonhei", que canta em Plena.
Mayra Andrade leva o novo disco ao palco do Capitólio, em Lisboa, a 1 de março.
Estava a precisava de parar naquele ano que tirou para si e em que se mudou para Lisboa?
Não consigo compor na estrada, porque é muito intenso. Faço imensos concertos e sou uma pessoa que precisa de estar também longe da música para ter vontade de cantar. Não gosto de enganar as pessoas quando canto. Podia provavelmente fazer mais um ano ou dois de tourneé, mas quando começo a cansar-me das músicas acho que já não devo cantá-las às pessoas, por mais que haja lugares onde nunca estive. Acho que há um momento em que se tem de parar e trazer uma mensagem renovada e atualizada com o que se é: quando deixas de cantar com o coração porque já cantaste aquelas músicas demasiadas vezes. A música para mim é uma vocação, é um dom, e eu sempre fiz isso de forma muito intuitiva e muito inteira, e quando sinto que está a deixar de ser, digo as pessoas com quem trabalho: "Não vendas mais concertos. Acabou."
O que é que cria um certo modo automático em que se deixa de cantar com o coração?
Há uma realidade que é a estrada e a estrada desgasta. As pessoas nem imaginam o que a estrada faz. O problema não é o que fazemos no palco, é o desgaste das viagens. Eu conheço pessoas que sobem no avião duas vezes por ano e ficam uma semana a dizer como aquela viagem lhes destruiu a cabeça e o corpo e a saúde e o sono. Em novembro eu fiz 25 viagens.
Como é que se foca? Cria rotinas?
Não existe rotina. Esse é o meu problema. Quando estou na estrada muito tempo já me sinto emocionalmente unbalanced, torno-me mais sensível as coisas, mais emotiva. Preciso de acordar em minha casa durante uma semana para estar outra vez bem.
O regresso à vida deve-se também a uma procura por canções?
Eu vivo porque preciso de viver, e não penso em de que forma é que isso poderá influenciar a minha música. Não estou à procura. Eu tenho um lado muito reservado, mas emocionalmente sou muito intensa. Não estou a fazer um cálculo nem a pensar se isto vai alimentar o que estou a criar. Eu vivo e ao mesmo tempo acabo por ter uma certa distância às coisas que vivo. Sou a atriz e a narradora ao mesmo tempo. Há simplesmente um momento em que o copo enche e tu, seja para bem ou para mal, precisas de começar a escrever. Este disco é muito um disco de confissões, de revelações e foi uma forma para mim de exorcizar coisas, fazer as pazes com certas coisas, expressar-me.
É um autorretrato?
Sim. Eu componho desde o primeiro disco, mas falava sempre de histórias de vida e de personagens que não têm nada a ver comigo. Como se a minha vida não fosse suficientemente interessante, como se eu me considerasse demasiadamente sortuda para falar das coisas que me tocavam ou que me magoavam.
Como assim demasiado sortuda?
Como se para entrar numa música tivesse de ser mais. Com o passar dos anos percebi que é só uma questão de perspetiva. Eu posso fazer uma música sobre esta mesa e essa música ser fantástica, se calhar não sabia era olha para a mesa de uma forma interessante. Com o tempo aprendi a encontrar em mim os recursos para tocar os outros.
É o momento em que a Mayra Andrade e a sua voz se encontram?
Sim, e é o momento de muita afirmação, da mulher, do ser humano. Tu podes ter uma voz, ser uma excelente intérprete e cantar coisas que na verdade não são tuas e não te tocam. A proporção de mim em cada disco foi aumentando. Neste consegui de alguma forma revelar-me mais. Há alguma coisa que aconteceu talvez a partir dos 30 - eu tenho quase 34. Houve uma revolução muito grande, está a haver. Houve uma rutura com o meu eu criança. Isso manifestou-se até em sonhos que tive. Agora vejo aquela menina de frente e o que apetece às vezes é abraçá-la, acarinhá-la. Perguntam-me: "O que é que dirias ao teu eu de quando tinhas 17 anos e foste viver para Paris?" Agora já tenho uma distância tão maior, estou numa fase tão diferente que já tenho muito mais carinho por aquela pessoa.
Como se agora tivesse algo para dizer?
Eu sempre disse. Mas estou num momento da vida em que penso em mim com 17 ou 18 anos e digo: "Não sejas tão dura contigo. Foste tão forte." Há dias estava a fazer um jogo de perguntas com amigos e uma delas foi: Qual foi o maior challenge que tiveste de enfrentar e de que forma conseguiste dar a volta? Eu percebi que, sem dúvida, foi ir viver sozinha para Paris. É uma cidade duríssima. E eu para não fraquejar não me permitia sequer chorar. A minha professora de canto dizia-me: "Relaxa, tu precisas de chorar, o teu diafragma está que nem uma pedra." Durante um ano eu não me autorizei a isso, porque tinha de ser forte. Acho que no momento em que estou aceito muito mais a minha fragilidade e isso faz com que eu esteja mais feliz, e com vontade de dar carinho àquela miúda.
É um disco corajoso. Hesitou ou pensou muito?
Não, é este momento. Eu não teria feito este disco há quatro anos. É o momento em que é "foda-se", é agora, não há como não ser. É isto. Quem quiser quer, quem não quiser não quer. É um momento de empoderamento muito grande na vida de uma mulher. Esta força muitas vezes assusta os homens. Há homens que tentam, na medida do possível, travar esse empoderamento das mulheres, pode ser um pai a uma filha, um marido a uma esposa, um irmão a uma irmã.
É uma coisa apenas íntima, sua, ou também tem que ver com o momento atual que vivemos?
Acho que há uma onda de feminismo nova que é real, que se partilha de forma muito rápida, contagiamo-nos umas às outras. Mas aquilo de que eu estou a falar vem muito de dentro, é muito íntimo, pessoal. É o meu momento. Sinto que o tom do disco é muito direto. É como a galinha que põe o ovo: Pum, direto. Vem de mim. Sou muito eu este disco. Não me censurei. Noutros momentos se calhar censurava-me: "O que é que vão pensar? O que é que a minha família vai dizer? O que é que em Cabo Verde vão achar?" Eu fiz o melhor que pude nos meus discos. E agora, se não gostarem disto, já têm quatro discos para ouvir. Agora vai ser assim. Há uma libertação muito grande, uma irreverência muito assumida. Acho que temos de celebrar a nossa força, é o que eu faço neste disco.
Intuiu que era o momento?
Eu fui sempre uma pessoa muito de instinto. E sei que o meu instinto me salvou de muitas situações, desde pequenina, de situações que podiam ser graves.
O que tem a agradecer ao instinto?
Muita coisa, é uma antena, um radar. Agradeço ao meu instinto por me proteger, de situações, de pessoas, de mim mesma. Ajudou-me aos 17 anos em Paris, aos sete anos no Senegal, ajudou-me aos 10 anos em Cabo Verde. Foram situações das quais eu me safei sozinha.
Situações de perigo? Relacionados com o ser-se rapariga, mulher?
Sim. Não vou entrar em detalhes, mas sim, a mulher está muito exposta.
Além das colaborações que existem no álbum, de que forma entra nele Lisboa?
Influenciou sobretudo o mood. Este disco não seria tão positivo, suave e dançante, com groove, se eu estivesse em Paris. Lisboa deu-me as vitaminas e o sorriso necessário. Mas claro que transporto em mim Cabo Verde, e todo o continente africano que me inspira de forma infinita. Fiz uma viagem ao Gana há 3 anos que me marcou imenso. Tenho imensa vontade de conhecer a Nigéria. A influência do continente africano contemporâneo está muito presente neste disco.
O que descobriu de Cabo Verde aqui?
Fez-me sorrir desde o início como os cabo-verdianos de Lisboa são super cabo-verdianos. Há uns que são mesmo do interior de Santiago. A transmissão da cultura veio-lhes dos avós e falam aquele crioulo bem fundo que nós, da Cidade da Praia, não falamos. É incrível como Cabo Verde vive em Lisboa. Há festas cabo-verdianas, há cachupa, dança-se. É muito bonito ver como as culturas luso-africanas ocupam a vida das pessoas em Lisboa. Acabas por ser acolhida como uma artista daqui. Isso é uma grande diferença para França onde, apesar de ser aquele palco incrível para a world music, és sempre uma artista exótica. Aqui és o que fizeres.
Há uma gradação entre Paris, onde anda à vontade, aqui onde a reconhecem, e Cabo Verde, onde toda a gente a conhece?
Em Cabo Verde toda a gente sabe quem tu és. Mesmo que não falem, sabes que estás a ser observada. Hoje em dia reconhecem-te e filmam-te, às escondidas ou às claras. Isso muda um bocadinho o sentido de liberdade. Às vezes há jovens que têm esses reflexos e eu chamo-os. Eles ficam a olhar uns para os outros meio assustados. "Se quiseres uma fotografia pede. Não faças as coisas assim às escondidas, não é simpático." Isso nunca me há de impedir de ir lá, e não é assédio, eu sou muito acarinhada, mas existe essa componente na nova geração, na forma como se relacionam com os artistas. Antigamente eras cantora, mas eras filha de tal pessoa, e a mulher de tal pessoa, e é por isso que nos conhecíamos todos. Há uma geração nova que não conheceu tanto esse Cabo Verde e que conhece o mundo através do YouTube, do Instagram. Então roubam aquele momento, querem levar qualquer coisa para casa.
Em Vapor Di Imigration fala de uma questão muito cabo-verdiana: a imigração. É uma história de família também?
É a história do povo cabo-verdiano. Na verdade eu escrevi aquela música em 2002 e nunca gravei, porque a música não estava pronta. Foi uma música que escrevi quando me mudei para Paris e fala da dor de imigrante. É uma musica que desde sempre dediquei ao meu avô, pai do meu pai, Lela d'Tilvina, que era um homem muito querido, as pessoas gostavam muito dele, ajudou muita gente. Ele tinha um barco, o Maria Sony, de que a música fala, que ajudou muita gente a imigrar. Disseram-me que existe uma réplica deste veleiro de três mastros em Boston. O meu avô tinha um sócio que era sobrinho dele e que teve varias filhas. Uma delas é a Maria Sony.
Alguma razão particular para ser o nome desta?
Não sei. Talvez fosse a mais bonita.