Mau de ver

Publicado a
Atualizado a

No último dia 9, Jair Bolsonaro esteve no ar na TV Brasil, uma estação pública, por mais de uma hora. Participava de um evento religioso, o Culto Internacional das Igrejas de Anápolis, ao lado do ministro da Educação, Milton Ribeiro, um pastor presbiteriano contrário a métodos anticoncecionais e favorável a castigos físicos a crianças, e do ministro da Cidadania, Onyx Lorenzoni, aquele que considera um liquidificador tão perigoso como uma arma de fogo e acha o isolamento social na pandemia tolo porque as pulgas e os passarinhos jamais o respeitarão.

No evento, Bolsonaro mentiu repetidamente sobre dois dos seus temas preferidos, as supostas fraudes eleitorais no sistema de voto eletrónico, para já ir preparando um levante dos seus bovinos fiéis caso perca a eleição de 2022, e o uso na prevenção da covid-19 da hidroxicloroquina, um remédio tão útil no combate à doença como ração para gado.

Mas, como o leitor atento terá percebido, o problema não está nas mentiras, porque mentir é talvez a única faceta em que Bolsonaro mostrou competência ao longo de mais de 30 anos de preguiçosa vida pública; nem na bizarria dos ministros, porque os 57 milhões de brasileiros que elegeram o atual presidente do Brasil têm o governo que merecem.

Está, conforme denunciou a Associação Brasileira de Imprensa (ABI), na promoção pessoal por uma hora numa estação pública de televisão, o que é vedado pelo Artigo 37 da Constituição; e na transmissão de um culto evangélico, o que fere a laicidade do Estado,

A ABI, entretanto, ainda não se pronunciou sobre o prometido Bom de Ver, novo telejornal da TV Brasil só com boas notícias. Lá não terão lugar reportagens sobre os mais de 500 mil mortos por covid-19 no Brasil, que colocam o país atrás apenas dos EUA em números absolutos - por enquanto, uma vez que por lá os óbitos estão em refluxo graças à troca de Trump por Biden e por aqui, como ainda não houve troca, continuam em macabra expansão.

O argumento de Bolsonaro e seu séquito para promover o Bom de Ver é que se fala de mais nos mortos e pouco nos curados de covid-19. O "raciocínio" é, portanto, este: sempre que um jornalista noticie o desabamento de um prédio numa comunidade carioca controlada pelas milícias, deve informar também que centenas de outros continuam de pé; sempre que um jornalista noticie o assalto a um cidadão brasileiro, deve informar também que os outros 200 milhões voltaram com a carteira para casa; sempre que um dos milhares de voos diários mundiais chegue a salvo ao destino, isso deve ser notícia.

No fundo, Bolsonaro precisa cada vez mais da TV Brasil porque quando não está a participar nas tragicómicas lives das quintas-feiras, a falar ao país do que lhe apetece pelo tempo que pretende, ou no cercadinho do Alvorada, um espaço onde dezenas de apoiantes o bajulam alegremente, perde as estribeiras.

"Pergunta idiota" (respondeu sobre a boleia dada por helicóptero oficial a familiares seus), "vontade de encher a tua boca de porrada" (a propósito dos 27 depósitos feitos por suspeito de corrupção na conta da primeira-dama), "deixa de ser idiota" (ao ser confrontado por ter festejado mortos em ações policiais), "você tem uma cara de homossexual terrível" (após pergunta sobre buscas a casas do primogénito).

No início desta semana usou os termos "canalha, merda e porco" em nova birra perante uma repórter, menos de 48 horas depois de manifestações contra si em todas as capitais estaduais. Foi "mau de ver".

Jornalista, correspondente em São Paulo

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt