Contas feitas, só existem dois tipos de histórias: 1) uma pessoa parte em viagem; 2) um desconhecido chega à cidade..É um daqueles fragmentos de sabedoria comum, um adágio sobre ficção que circula com frequência nos espaços por onde essas coisas costumam circular - e normalmente atribuído a um dos suspeitos do costume: Dostoievski, Mark Twain, Olof Palme, etc. Na verdade, a ideia vem do escritor e professor americano John Gardner, e não foi formulada como lei geral, mas apenas como um dos exercícios criativos propostos no seu manual The Art of Fiction. Uma viagem ou a chegada de um estranho, explicava, eram duas disrupções eficazes e com provas dadas; e a disrupção de uma ordem estabelecida é aquilo que se exige no começo de qualquer história..Não se sabe se Lee Child terá lido a exortação de Gardner, mas quando inventou a sua personagem Jack Reacher, não estava apenas a criar uma das mais impressionantes fontes de rendimento da literatura - mais de 100 milhões de exemplares vendidos desde 1997 - mas também a activar, e colocar em piloto automático, uma síntese das duas fórmulas. Salvo uma ou outra anomalia criativa, quase todos os 26 romances que Reacher protagoniza apanham-no a meio de uma viagem - e chegar a uma cidade nova como desconhecido..As coisas que acontecem a Reacher nessa cidade nova também não se desviam muito do mesmo padrão. Estamos num universo não muito distante daqueles em que se movimentaram os seus mais óbvios antecessores (os protagonistas de Shane ou Yojimbo, ou outras iterações do vagabundo incorruptível, como Kane ou Rambo). Há uma população boa e humilde, mas sob o domínio de um qualquer magnata poderoso. Há uma conspiração ao mais alto nível (sendo que esse nível quase nunca passa do municipal). Há uma procissão de meliantes suficientemente desinformados para tentarem provocar ou agredir Jack Reacher. Há uma conclusão intransigentemente apocalíptica..Em 2014, um académico inglês chamado Andy Martin propôs a Lee Child que o deixasse acompanhar e registar a composição de um dos romances. O resultado foi um dos mais idiossincráticos livros sobre o processo de escrita - Reacher Said Nothing - que, entre outras jóias, contém a seguinte fórmula usada pelo próprio Lee Child para descrever a trajectória narrativa seguida por Reacher..1. Chegar ao sítio. 2. Ó meu Deus! O que é que se passa aqui? 3. Matar toda a gente. 4. Conclusão..Os oito episódios da nova série da Amazon adaptam o primeiro romance da sequência, e tratam a fórmula como se ela fosse a Sagrada Escritura. Não é a primeira adaptação do material, mas os adeptos de longa data manifestaram uma natural relutância em aceitar o filme de 2012 (intitulado, simplesmente, Jack Reacher), em parte pela escolha de Tom Cruise para o papel principal. O Reacher dos livros não é - longe disso - uma personalidade rica e multifacetada. O que tem são duas características absolutamente centrais: fala pouco; e é extremamente alto. Tom Cruise, como é publicamente sabido, mede cerca de um metro e trinta, e nunca ocorreu a ninguém oferecer-lhe um guião minimalista. O novo Reacher, por outro lado, é uma concatenação de sólidos geométricos, que parece exibir três pares de ombros empilhados em cima uns dos outros, que mede aproximadamente três metros e oitenta, e não diz uma única palavra nos primeiros seis minutos e meio da série, embora nesse período consiga - sempre em absoluto silêncio - impedir um episódio de violência doméstica, pedir uma tarte numa cafetaria, e ser preso por assassínio..A série começa, para ser rigoroso, da melhor maneira que é possível começar uma série: com uma porta a abrir, e um par de botas a pisar o asfalto, tudo ao som dos primeiros acordes de "Smokestack Lightnin"" de Howlin" Wolf, que também são os melhores acordes para começar o que quer que seja. Chegado ao sítio (passo 1 da fórmula), Reacher dedica-se ao passo 2 (perceber o que se passa). Para tal, a série mantém intacta a sua capacidade para o raciocínio lógico e a proeza de dedução, uma capacidade que vem dos livros e é aqui vertida numa amostra de truques sherlockianos: cenas em que Reacher, como Sherlock, observa um homem durante 15 segundos, e conclui imediatamente que ele nasceu numa quinta-feira de Setembro, sofre de fungos nos pés, gosta de salsichas com lombardo, e tem um cunhado chamado Ramiro..Como se não lhe bastasse a inteligência abstracta, Reacher é também um compêndio wikipédico ambulante, capaz de citar dramaturgos gregos num minuto, e explicar no minuto seguinte que a terra diotamácea é "um agente coagulante de absorção usado em pesticidas, filtros de piscinas e ração animal". Com este superavit de competências, não admira que o passo 3 da fórmula (matar toda a gente) seja relativamente fácil de cumprir. Reacher só não mata "toda" a gente, aliás, porque quando chegamos a esse ponto, já imensa gente foi morta. Figurantes e actores secundários tombam como tordos, antes sequer de Reacher flectir um dos seus múltiplos bíceps. Honra seja feita à série: a violência é incrivelmente violenta. Pessoas são aparafusadas a paredes, testículos são removidos do seu devido lugar e inseridos à força em indevidos lugares, casais são torturados à frente dos filhos, etc, etc. É tudo muito entusiasmante. A dada altura, um par de tíbias e fémures são quebrados como galhos secos, de forma a permitir arrumar um cadáver numa bagageira. Uma agente da autoridade espreita e comenta: "parece um jogo de Tetris". Uma das chaves para compreender as virtudes específicas de Reacher e o seu possível apelo é compreender que o guião não posiciona esse comentário como piada, mas num território um pouco ao lado, entre o lacónico e o surreal. Da mesma maneira, a violência física alcança um acto de equilibrismo entre o realismo incómodo e o exagero caricatural que é muito mais difícil de executar do que se poderia julgar, e que por isso mesmo não se encontra com regularidade num ecrã. Apesar de não nos mostrar um único aspecto revolucionário, a verdade é que também não existe um modelo óbvio para os prazeres específicos que Reacher proporciona. Talvez o ponto de comparação mais útil sejam as primeiras temporadas de Justified: outra série que combinava violência extrema com descontração narrativa, que não se importava de desperdiçar minutos de guião em debates sobre petiscos, e que pareceu descartar quase todo o livro de estilo a que a televisão de prestígio nos habituou, como se pertencesse a uma tradição mais antiga..Essa tradição, na verdade, será menos televisiva do que cinematográfica, até porque o tipo de televisão que seguia esta fórmula antes do advento das HBO e Netflix era particularmente penosa (coisas como Esquadrão Classe A, MacGyver, ou Walker, Ranger do Texas podem inspirar carinho nostálgico, mas revisitá-las é um exercício penoso). Reacher terá mais a ver com um dos géneros de filme mais populares nos anos 80, e cuja viabilidade comercial mais se dissipou - a sub-categoria do filme de acção que era essencialmente um filme de porrada com um protagonista extremamente musculado e mais ou menos invencível..Mais do que qualquer outra série recente, esta transporta consigo o verdete do clube de vídeo. E, entre todas as formas de usar o apelo nostálgico, esta também parece a mais adulta, e a menos insultuosa. Em vez da perpétua ressurreição de cadáveres para impedir que uma classe demográfica deixe de brincar com os seus brinquedos de infância, fazer aquilo a que o bom entretenimento deve sempre almejar: com ingredientes usados, fazer algo novo, que reproduza uma sensação antiga.. Escreve de acordo com a antiga ortografia