Matarruanos do lítio impedem glorioso futuro

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"Congo belga". Foi com esta surpreendente comparação que um alto quadro da União Europeia aludiu, numa conversa privada, ao problema da violenta pressão para que Portugal seja a salvação europeia na exploração do lítio. Estudos não faltam e todos dizem a mesma coisa: temos muito. O maior filão europeu. A pergunta seguinte, no entanto, é esta: mas que lítio? Como explorá-lo? Quais as consequências? E é assim que, de forma aparentemente avisada, a Galp desistiu de construir a fábrica de transformação do lítio, a norte, para a colocar em Setúbal. Presume-se que pela sensata razão de que não adianta escavacar as montanhas do Alto Minho, Trás-os-Montes ou Serra da Estrela para obter apenas 10% de lítio por tonelada de pedra extraída.

Ou não. Sensatez é um bem difícil de encontrar nos gigantes da energia e a Galp mantém as garras numa das concessões de lítio do Alto Minho. Espera-se, portanto, que a esmagadora maioria do lítio seja importado do Chile, Bolívia e de outros países, onde a sua extração usa predominantemente técnicas idênticas à da recolha de sal.

As explorações mineiras são feridas abertas no território. As populações que vivem junto de explorações mineiras desta magnitude devem ser ouvidas (e não sacrificadas) em nome do desespero europeu na procura de lítio. Aos "matarruanos das serras", que ninguém quer ouvir porque atrasam o "nosso" desenvolvimento, não resta conformarem-se com a destruição da terra, da história e do modo de vida. Eles estão a fazer-nos o favor de recordar que, antes da mobilidade elétrica (lítio), está o seu modo de vida e o mais precioso dos recursos - a água. E a seguir, a manutenção da biodiversidade; e só depois as alternativas energéticas. Mais: Portugal deve fazer parte dessas alternativas sustentáveis. Estando a ciência na antecâmara da descoberta, por exemplo, do potencial da eletrólise a partir da água do mar, entre outras tecnologias menos impactantes, deveremos encontrar o nosso melhor posicionamento para produzir energia renovável no tempo certo. E não ser o "Congo belga".

Ainda esta semana, mais um "guru" da energia ironizava na SIC Notícias com o facto de Portugal ter abdicado do gás natural na bacia do Algarve. Dito no contexto da escassez de gás, a frase dá vontade de vilipendiar quem cancelou a exploração algarvia. Todavia... esta é a visão unidimensional de cada especialista. Tínhamos gás. Mas continuaríamos a ter turismo com a qualidade que se reconhece ao Algarve?

Veja-se a voracidade com que deixámos o país nas mãos do "petróleo verde", o eucalipto. Vamos precisar de décadas ou séculos para refazer ecossistemas, centenas de milhões de euros para reequilibrar a paisagem e inumeráveis vidas perdidas em incêndios. Quarenta anos depois, repetimos a fórmula de devastação no lítio?

Este é o verdadeiro dilema português: precisamos de diversificar a economia através da tecnologia, da inovação, mas dificilmente através de matérias-primas ou recursos que destruam o território. Porque é a paisagem, os ecossistemas e a qualidade de vida que mantêm a nossa galinha dos ovos de ouro - o turismo - e com ele os milhões de pessoas que cá chegam todos os anos.

Queremos ter a poluição de uma enorme fábrica de lítio para criar 700 postos de trabalho em Setúbal? Todos os países têm de contribuir com algo. Não podemos é querer ter tudo. Face a tudo que já sabemos hoje, compete-nos uma certa inteligência na autopreservação, geração após geração - não as ilusões dos vendedores de sonhos a cada esquina do tempo.


Jornalista

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