Marta Temido e Graça Freitas receberam "tantas farpas e varapaus" que decidiram não aparecer juntas

A ministra da Saúde assume a responsabilidade pelas decisões que no Natal possam ter sido tomadas incorretamente, mas diz que não consegue ainda ter uma perceção exata do que levou ao aumento dos casos em janeiro.
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A ministra da Saúde explicou que deixou de aparecer ao lado da diretora-geral da Saúde porque receberam "tantas farpas e varapaus" por estarem sempre juntas que decidiram comunicar separadamente para "não cansar mais os portugueses".

Durante largos meses da pandemia Marta Temido e Graça Freitas foram presenças assíduas nas conferências de imprensa da Direção-Geral da Saúde de atualização dos números da pandemia.

A última conferência de imprensa da Direção-Geral da Saúde decorreu no dia 5 de janeiro, numa altura em que Portugal contabilizava 7286 mortos associados à covid-19 em 436 579 casos confirmados de infeção, e desde então tem sido a tutela a dar publicamente a informação sobre a situação epidémica no país.

Questionada pela agência Lusa numa entrevista que assinala o aparecimento dos primeiros casos de covid-19 em Portugal, em 2 de março, sobre as razões que levaram ao fim das conferências imprensa conjuntas, a ministra disse que é uma pergunta que lhe fazem muitas vezes, mas que não há nenhuma explicação de zanga ou qualquer outro motivo, apenas porque se cansaram de a ver junta com a diretora-geral da Saúde, Graça Freitas.

"Não há nenhuma explicação de zanga, mas recebemos tantas farpas e varapaus por estarmos sempre juntas que optámos por não cansar mais os portugueses", disse, com um sorriso.

Sobre se foram os portugueses que se cansaram, Marta Temido disse não ter essa perceção.

"A própria critica à forma como a comunicação da Saúde era feita, que referia muitas vezes que eram figuras demasiado presentes, demasiado repetitivas, demasiado redundantes, levou a que nós tivéssemos optado por aparecer mais desfasadamente, por comunicar mais separadamente, articulando obviamente, mas por fazer essa alteração apenas de imagem, não de substância", esclareceu Marta Temido.

No início de fevereiro, Graça Freitas foi questionada pelo mesmo motivo, mas desvalorizou, justificando a ausência com uma nova estratégia de comunicação.

"A diretora-geral da Saúde não precisa de aparecer, a diretora-geral da Saúde precisa de trabalhar. E esta foi uma fase em que, do ponto de vista comunicacional, se tomaram outras opções. E eu continuo a trabalhar exatamente como sempre trabalhei", disse Graça Freitas, numa cerimónia que assinalou o arranque do rastreio ao cancro da mama, numa Unidade Móvel da Liga Portuguesa Contra o Cancro (LPCC).

A ministra da Saúde assume todas as responsabilidades pelas decisões que no Natal possam ter sido tomadas incorretamente, mas diz que não consegue ainda ter uma perceção exata do que levou ao aumento dos casos em janeiro.

"Eu acho mesmo que ainda é muito cedo para perceber o que aconteceu no Natal. Assumindo obviamente as responsabilidades por tudo o que possa ter sido decidido incorretamente, ou imprevidentemente (...), não tenho ainda uma perceção exata de alguns factos", afirmou Marta Temido.

A governante considerou que, para perceber as consequências no aumento de casos em janeiro das decisões tomadas pelo Governo no Natal, é preciso entender o contributo de alguns factos, como o frio, a época de festas e as novas variantes.

"Nós entrámos no mês de dezembro com um nível com o qual todos nos sentimos confortáveis, na relação à pandemia, em termos de pressão sobre os cuidados de saúde. E acho que temos ali três efeitos conjugados", afirmou.

Destaquedestaque"Não podemos esquecer que a variante inglesa é mais transmissível e que (...) vemos países que tinham a variante inglesa já com prevalência muito elevada a dizerem que as medidas básicas de confinamento não chegam"

A ministra sublinhou o papel da variante detetada no Reino Unido, que, sabe-se hoje, já estava em circulação: "O Reino Unido só alertou a Organização Mundial de Saúde no dia 14 de dezembro, mas também sabemos (..) que nós sequenciámos os primeiros casos já em janeiro e (...) que hoje conseguimos olhar para trás, com o espelho retrovisor, e antecipar que já tínhamos a variante em circulação".

O frio -- "que às vezes é ridicularizado" -- e a "menor disponibilidade para adesão às medidas de proteção" contra a convid-19 são outros dos fatores determinantes apontados pela governante.

"Seria uma ilusão pensar que controlamos tudo, que podemos voltar a partir, por exemplo, para um desconfinamento com níveis tão elevados de casos como os que temos hoje", acrescentou Marta Temido, frisando que, hoje, "todos estamos mais previdentes, mais cautelosos, mais preocupados, mais angustiados e com a preocupação de atingir níveis mais baixos".

"Não podemos esquecer que a variante inglesa é mais transmissível e que (...) vemos países que tinham a variante inglesa já com prevalência muito elevada a dizerem que as medidas básicas de confinamento não chegam, que têm de ser mais elevadas, para combater o efeito desta maior transmissibilidade", afirmou a ministra, acrescentando: "Estamos totalmente protegidos? Aprendemos já que não estamos".

Questionada se conseguia eleger, nos 12 meses de combate à pandemia, um momento mais difícil, Marta Temido apontou vários: o primeiro caso, a primeira morte, as intervenções do Ministério da Saúde para ajudar a articular os serviços hospitalares em situações de maior pressão e a decisão de encerrar as escolas.

"Para quem acredita no poder da educação, da educação pública, da escola, voltar a ter de encerrar as escolas foi uma decisão particularmente difícil para todos os membros do Governo", afirmou.

Disse ter uma sensação de "esmagamento" quando olha para as listas de espera e para o que ficou por fazer no SNS e, quando questionada se alguma vez pensou em deixar o cargo, respondeu: "Estes lugares são de duas entidades: dos portugueses, que elegem o Governo, e do primeiro-ministro, que escolhe os seus ministros".

"Depois, a partir do momento em que decidimos integrar um Governo, estamos cá para servir os portugueses e o Governo e, portanto, são uns e outros que têm este lugar sempre à disposição", afirmou.

Disse ainda que "há circunstâncias muito difíceis para ser Governo", que esta "é uma delas", mas "não será a única".

"Estar no Governo é estar ao serviço dos outros e, portanto, isso tem de ser realizado sempre com muita humildade, perseverança, para continuar a fazer aquilo em que se acredita, mas também disponibilidade para entender que há momentos para ser governo, há momentos para trabalhar noutras coisas. É com essa tranquilidade que, por agora, circunstancialmente, estou ministra da Saúde", afirmou.

"Se as pessoas precisam de mim, quem somos nós para lhes falhar? Quando penso nisso vejo fotografias que colegas vossos fizeram, de profissionais de saúde em dias maus, e lembro-me dos relatos de muitos deles, alguns que me são próximos, e penso que vão sair de casa para mais um dia terrível, como foram muitos dias. Quem sou eu para me queixar?", concluiu.

Na entrevista, a ministra da Saúde admite que o Governo "podia sempre ter feito mais" quanto à execução orçamental e aos recursos humanos, mas lembra os incentivos criados para os médicos e sublinha que nunca faltaram meios financeiros ao SNS.

"Podíamos sempre ter feito mais, mas em termos de execução orçamental gastar mais não significa gastar melhor", reconheceu.

"Por outro lado, não faltaram meios financeiros ao SNS [Serviço Nacional de Saúde] em 2020, em nenhum momento do ano. Em nenhum momento do ano 2020 houve regatear de meios financeiros. Nem em 2020, nem daquilo que já vamos em 2021", sublinhou.

A este nível, a ministra lembrou os incentivos criados para compensar o esforço dos médicos que estiveram na linha da frente no combate à pandemia, sublinhando que se tratou de um sistema de compensação "muito exigente".

"Apenas visava melhorar a gestão das unidades hospitalares e, de alguma forma, atenuar o esforço dos profissionais de saúde. É um sistema de compensação muito exigente. Nós estamos a elevar o valor do pagamento do trabalho extraordinário em 50% face às majorações que ele já tem", afirmou.

E exemplificou ainda: "Estamos a permitir que regimes de trabalho que já tinham sido suprimidos há mais de uma década, como o regime de horário acrescido das 42 horas, sejam reintroduzidos. Isso significa que um profissional de saúde que esteja nesse regime que em lugar das 35 horas faça 42 horas, recebe mais 37 por cento".

"Isto são apenas dois sinais da parte mais visível, mais significativa, que são os recursos humanos, daquilo que tem sido o esforço que o país tem feito... a gestão orçamental não é do dinheiro do Governo. É do dinheiro dos portugueses no sentido de garantir os melhores cuidados", afirmou.

Sublinhou as dificuldades de coordenação enfrentadas, afirmando que "é mais fácil gerir um hospital do que gerir um sistema".

"Coordenar apenas o bem-estar de uma instituição ou coordenar o bem-estar de todo um sistema exige que todos prescindam de algo, e isso nem sempre é fácil", acrescentou.

Sobre os recursos humanos, sobretudo na área médica, que segundo o Portal da Transparência do Ministério da Saúde caíram entre janeiro e dezembro, sendo que desde o início da pandemia até final do ano o SNS perdeu quase 800 médicos (incluindo internos), a ministra justificou os dados com os diferentes momentos do ciclo de gestão de recursos humanos.

"O ciclo de gestão de recursos humanos médicos no Serviço Nacional de Saúde tem vários momentos. Todos os anos em janeiro iniciam a formação centenas de novos médicos que integram o internato geral da formação médica. Esse número produz em cada mês de janeiro de cada ano um artifício naquilo que é a forma como contamos os recursos humanos médicos", explicou a ministra, acrescentando: "Se compararmos o dezembro de cada ano com janeiro verificamos o efeito desse resultado".

"Se depois compararmos o janeiro com os outros meses do ano, à medida que alguns médicos se aposentam, à medida que alguns médicos deixam o Serviço Nacional de Saúde, à medida que alguns médicos enveredaram por outras carreiras que não a prática clínica, verificamos alguma redução, mas no ano a seguir verificamos a mesma tendência", explicou, considerando que "é mais exato" comparar períodos homólogos.

Questionada se podia ter feito mais para manter os médicos que acabaram por sair do SNS, a ministra respondeu: "Podíamos sempre ter feito melhor. Podemos sempre fazer mais para motivar as pessoas, sobretudo num contexto tão agressivo do ponto de vista da exigência como é esta pandemia".

Reconhecendo que as profissões do setor da saúde "são muito exigentes", Marta Temido diz que, apesar de o ano de 2020 não estar fechado, é perfeitamente natural que a pandemia -- por 'burnout' ou doença -- tenha tido efeito nas ausências ao trabalho destes profissionais.

Contudo, sublinha que já se nota uma recuperação, seja por efeito de uma menor incidência populacional de novos casos de covid-19, seja por efeitos da vacinação.

"O ano 2020 foi de facto um ano atípico e o ano 2021, pelo menos até este momento, mantém uma tendência de recuperação", disse.

À Lusa, Marta Temido avançou que o Ministério da Saúde pretende aumentar este ano as consultas externas hospitalares em 9,5% e as cirurgias programadas em 22%, através do mecanismo de incentivos à recuperação da atividade assistencial.

O compromisso acordado entre as entidades públicas empresariais hospitalares e a Administração Central do Sistema de Saúde é que a atividade assistencial em 2021 seja superior à realizada em 2020, afirmou a ministra da Saúde.

Dados avançados por Marta Temido indicam que em janeiro de 2021 se registou um decréscimo de cerca de 194 mil consultas hospitalares e de 19 mil cirurgias face ao mês homólogo de 2020, quando as instituições ainda estavam a trabalhar normalmente.

"[O plano para 2021 prevê] aumentos de 9,5% nas consultas externas, designadamente contratualizar mais 17% de primeiras consultas e 7% de consultas subsequentes (...) e um aumento de cirurgias programadas que contratualizámos com os nossos hospitais em 22%", detalhou.

Marta Temido espera alcançar estas metas com o estímulo à atividade assistencial, decorrente do mecanismo de incentivos criado em meados de 2020, com o recurso a outros setores de atividade, à subcontratação, com "um melhor trabalho em rede" e com um controle da pandemia para níveis que permitam diminuir a perda da atividade assistencial programada como aconteceu em setembro e outubro de 2020.

"Mas, uma vez mais, não depende só dos profissionais de saúde depende da nossa capacidade conjunta de controlar a pandemia", ressalvou, lembrando que muitos hospitais já retomaram a atividade assistencial e outros estão em vias de o fazer ao longo deste mês.

Se em meados de março os cuidados intensivos estiverem com um valor de utilização entre as 200 e as 300 camas poder-se-á retomar as demais respostas, mas com um ritmo inferior ao que existia antes da covid-19.

Destaquedestaque"Hoje temos que fazer as coisas de maneira diferente para que haja segurança, higienização, arejamento dos espaços e isso 'lentificou' a nossa capacidade de resposta"

No ano passado, contou, quando foi a programação da retoma da atividade assistencial, as instituições diziam que "não é como recuperar de uma greve" ou de "um período de férias, porque os ritmos todos se alteraram".

"Hoje temos que fazer as coisas de maneira diferente para que haja segurança, higienização, arejamento dos espaços e isso 'lentificou' a nossa capacidade de resposta", sublinhou.

"Mas temos outras armas que talvez não dispuséssemos anteriormente, desde logo esta capacidade de nos articular melhor com o Serviço Nacional de Saúde e com outras entidades fora do SNS para responder àquilo que são desafios nacionais", sustentou.

O desafio da covid-19 permanece, mas é preciso recuperar as outras necessidades em saúde, disse, manifestando a convicção que o SNS, os operadores privados e sociais "se estão a alinhar" para poderem "responder cabalmente" como responderam na terceira vaga da pandemia.

"Aquilo que o Ministério da Saúde pretende estimular é que essa capacidade de cooperação, de articulação e de partilha de esforços se mantenha, designadamente na área que agora mais nos ocupa e em que estamos mais envolvidos que é a área oncológica", disse.

Há cerca de 5000 mil utentes em lista de espera cirúrgica que é preciso dar resposta, começando pelos casos clinicamente mais urgentes.

Por outro lado, também é preciso melhorar os rastreios oncológicos. O objetivo europeu é que, até 2025, 90% população esteja coberta em termos dos rastreios ao cancro do cólon e reto, da mama e do colo do útero.

Contudo, Portugal tem "uma situação muito diferenciada" em termos geográficos relativamente a estas áreas.

"Estamos a fomentar esta reorganização e esta capacidade de todos darem aos rastreios oncológicos a mesma prioridade que nos últimos tempos deram, por exemplo, aos rastreios de covid e estimular uma vez mais este sentido de urgência relativamente a este tema", salientou.

É preciso fazer "um caminho rápido" para recuperar os rastreios, "sendo certo que o rastreio do ano passado não é por ser feito agora que é recuperado".

Sobre a ideia de que a sociedade está fechada para proteger o SNS, a ministra disse que muitas vezes dá consigo a pensar "o quão errado isso é".

"O objetivo de travar a transmissão não é para poupar o Serviço Nacional de Saúde é para poupar 'entre aspas' as mortes evitáveis por covid, as sequelas de covid que sabemos que também são uma nova área de atividade assistencial para a qual estamos a prepararmo-nos, mas também as outras patologias".

Atualizado às 09:10

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