Trocar o treinador que conseguiu a qualificação para o Campeonato do Mundo a pouco mais de três meses do evento não devia ser, em teoria, uma boa ideia. Talvez por isso, poucos apostariam que Marrocos se tornasse na principal surpresa da competição que está a decorrer no Qatar, sendo a única seleção fora do lote de favoritos ou candidatos que conseguiu chegar aos quartos-de-final, batendo pelo caminho Bélgica (2-0) e Canadá (2-1) e empatando a vice-campeã em título Croácia e uma Espanha que prometeu muito de início, mas acabou superada no desempate por penáltis perante os africanos..Fernando Santos avisou para as dificuldades que esperam Portugal no jogo deste sábado, recordando o quão difícil foi bater os magrebinos na Rússia - "Foi um jogo mais complicado do que aquele que perdemos com o Uruguai", disse -, e é bom não esquecer a surpresa desagradável de 1986, no México, quando a soberba lusitana foi punida com três golos em 62 minutos e um bilhete de regresso a casa..Dificilmente se pode dizer que a decisão da federação marroquina de despedir o bósnio Vahid Halilhodzic da direção técnica dos Leões do Atlas tenha sido uma surpresa, apesar da qualificação para o Mundial estar assegurada depois de um play-off bem-sucedido frente à RD Congo. O antigo jogador e treinador do Paris SG já tinha vivido essa experiência em duas ocasiões, na Costa do Marfim (que apurou para a edição de 2010) e no Japão (qualificado para a prova de 2018): desta vez, a razão oficial foi o desacordo com a forma como Marrocos devia preparar-se para o Qatar, mas a verdade é que o feitio particular do técnico também deve ter jogado um papel importante na decisão..Hakim Ziyech, uma das estrelas da equipa, tinha abandonado a seleção depois de Halilhodzic o ter acusado de fingir uma lesão para escapar a um particular, numa longa lista de conflitos que incluíram o ex-sportinguista Feddal (convocado e depois desconvocado porque o técnico se lembrara que ele era esquerdino), o japonês Honda (que recusou jogar na tática que o técnico defendia) ou mesmo Pauleta, ainda nos seus tempos em Paris: ameaçou vender o avançado português no fim da época..Para o seu lugar a escolha recaiu em Walid Regragui e, pelos vistos, foi em cheio. Antigo lateral-direito, jogador discreto mas eficaz que passou pela Liga espanhola, já tinha um passado na seleção como adjunto de Fachid Taoussi, e construiu boa parte da sua reputação no banco ao serviço do Wydad Casablanca, onde conquistou o título e a Liga dos Campeões Africanos..Nascido num subúrbio parisiense, já chamaram a Regragui o "Mourinho marroquino" mas o atual selecionador terá mais pontos de contacto com outro português: Abel Ferreira. Não só pela sua posição como jogador mas, sobretudo, na forma como une o grupo de jogadores em torno de uma causa comum, como o prova o regresso de Ziyech. Para ele há três mandamentos que os seus pupilos devem obedecer: "É proibido estar parado, passar a bola parado e receber a bola parado.".Rolland Courbis, que foi seu técnico no Ajaccio, não se espantou com a passagem para o banco: "Tive um jogador como Zidane e nunca pensei que ele se tornasse treinador e muito menos que gostasse de o ser. Com Wadid foi o contrário, ficaria surpreendido se ele não fosse técnico. Já então, na sua forma de refletir, de falar com os colegas, sentíamos que ele era feito para isso.".Longe de ser um idealista na forma de ver o jogo, Regragui chegou a ser acusado de "estacionar o autocarro" na passagem pelo Wydad. Mas a verdade é que esta equipa de Marrocos se defende muito bem, como vem mostrando jogo após jogo neste Mundial. Nos sete encontros sob o seu comando, a equipa não sofreu um golo que fosse apontado por um adversário, nem no desempate por penáltis: na única vez que o guarda-redes foi buscar a bola ao fundo da baliza, perante os canadianos, o desvio fatal coube a Nayref Aguerd - curiosamente, o atual defesa do West Ham tinha sido seu jogador no FUS Rabat e foi sempre aposta, mesmo quando cometia erros comprometedores devido à sua juventude. "Acreditamos nele até à morte", avançou o guarda-redes Munir Mohamedi ao diário espanhol Marca..Fazendo jus à sua alcunha, "Leões do Atlas" - curiosamente um animal já extinto mas cujo ADN ainda sobrevive noutros felinos da mesma espécie -, Marrocos tem sido uma espécie de Monte Toubkal, com os seus 4167 metros de altitude no Alto Atlas, para os adversários. Podem rodeá-lo mas até agora não o conseguiram transpor e chegar ao cume..Considerada uma das seleções africanas mais difíceis de orientar devido ao facto de grande parte dos seus jogadores não ter sequer nascido no país (o que só sucede com 12 dos convocados, sendo que apenas três dos 26 jogam em Marrocos) e ter crescido na Europa (sobretudo Holanda e Bélgica, países onde os adeptos criaram mais confusão para celebrar os triunfos da equipa no Qatar, mas também em Espanha, França, como o selecionador, ou Itália), Marrocos tem brilhado pelo espírito de equipa e resiliência, o que só demonstra a qualidade dos três meses de trabalho de Regragui..Se uma parte do sucesso não pode ser dissociado da criação, em 2009, da Academia de Futebol Mohammed VI, destinada a potenciar os jovens talentos do país - por lá passaram nomes como o goleador Youssef En-Nesiry (Sevilha), o médio Azzedine Ounahi (jogador do Angers que maravilhou o técnico espanhol Luis Enrique na partida dos oitavos: "De onde é que ele saiu?") ou o já referido defesa Nayef Aguerd -, a verdade é que o selecionador conseguiu potenciar a experiência adquirida pela maior parte dos seus jogadores noutras paragens e o orgulho de representar o país que, para eles, é o dos seus pais..DestaquedestaqueA Walid Regragui já chamaram de "Mourinho marroquino" mas o atual selecionador até terá mais pontos de contacto com outro português: Abel Ferreira..Do capitão e central Roman Saïss (antigo colega de Rúben Neves no Wolverhampton), passando pelas duas estrelas da equipa, o lateral Hachraf Hakimi (formado no Real Madrid e que agora está no Paris SG, depois de passagens pelo Dortmund e Inter Milão) e o extremo Hakim Ziyech (Chelsea, que o contratou ao Ajax), e acabando no intransponível trinco Sofyan Amrabat (Fiorentina, mas já cobiçado na Premier League), o conjunto tem funcionado como um bloco. E lá atrás, na baliza, sobra Bono (na verdade, Yassine Bounou), com um sorriso permanente e sempre a jogar no limite do risco com os pés, intratável nos penáltis - apesar de um ataque vertiginoso (problema nos olhos) que o impediu de jogar na segunda ronda, frente à Bélgica, já depois de tocados os hinos..Com um título relevante no palmarés (a CAN em 1976), os "Leões do Atlas" (cujo jogador mais internacional ainda é o ex-sportinguista Naybet, um dos muitos marroquinos que passaram por Portugal, como Hassan, Hajri, Hadji, Saber ou Chippo, entre outros) já fizeram história no Qatar, afinal, nunca uma equipa árabe-africana tinha chegado tão longe num Mundial. Tem sido o princípio de uma bela amizade entre Walid Regragui e a seleção..dnot@dn.pt