Mário Cláudio: "Camões era um marginal"
Há muitas décadas que nenhum intelectual português ataca Os Lusíadas tão frontalmente e em força como é o caso do escritor Mário Cláudio no seu romance Os Naufrágios de Camões, que chega amanhã às livrarias. Para tal bastam-lhe 180 páginas divididas em três partes, colocando na primeira a suspeita ficcional de que a mais importante obra poética da história da literatura portuguesa não é apenas da autoria do próprio Camões. Ou seja, foi usurpada na versão final por um capitão da nau em que o poeta naufraga, também dado às letras. Um naufrágio que possibilitou a criação da imagem mais icónica de Camões, a de lutar contra as ondas com uma mão e a outra, fora de água, a salvar o manuscrito de Os Lusíadas.
As suspeitas sobre o poema épico não são de agora e já Aquilino Ribeiro, entre outros, se rebelara contra o culto da figura como "o" herói nacional de grande parte do século XX, apontando uma diminuição literária nos dois últimos cantos do poema épico. Lembra ainda Mário Cláudio que Camões também não escapou ao hábito da época, o de homenagear grandes autores plagiando frases e versos inteiros, tal como Virgílio - o caso da estrofe inicial -, bem como de muitos poetas importantes na Europa mas pouco conhecidos em Portugal.
Colocando-se também como narrador, e protagonista da terceira parte, Mário Cláudio oferece ao leitor um romance tão divertido como profano, mas, principalmente, implode com a mítica visão que ainda se mantém de um homem que foi, nas palavras do escritor, um "marginal", dominado por uma "hipersexualidade" que o levou a desrespeitar as regras todas.
Acusa Camões de uma certa banalidade em certas estrofes de Os Lusíadas. São as partes que alegadamente "não" teriam sido escritas pelo poeta?
Devo dizer que estou respaldado em Aquilino Ribeiro, que andou à volta da figura de Camões e foi o primeiro a referir as suas célebres três cartas eróticas em que revela a frequência de bordéis e dá indicação sobre as especialidades das meninas. Aquilino faz referência ao canto IX e considera que teria sido expurgado pelo censor da época, o que fez certas passagens serem transformadas numa espécie de água chilra.
Resume-se ao canto IX?
A impressão com que se fica é de que os dois últimos cantos não estão ao nível dos anteriores em termos de qualidade. Há muitas razões que o podem justificar: a vida complicada ou questões de saúde. Os Lusíadas foram escritos ao longo de anos e Camões nem sempre esteve de posse de todos os meios físicos e psíquicos necessários. Acho que há um abaixamento da qualidade do verso nesses cantos.
Camões teria noção desse fracasso?
Não se sabe, mas um homem que sofreu o que ele sofreu, preso mais do que uma vez, presente em guerras, tendo perdido um olho e que escreve grande parte do final da obra numa ilha de Moçambique onde consta que "vivia de amigos" porque não tinha dinheiro... Camões era um marginal e perde o ímpeto no final. Não há dúvida sobre isso. É um grande intelectual, um sábio e um poeta de génio, mas transgrediu muitas normas de direito penal da época, assassinou um homem em Lisboa e por isso foi condenado ao degredo.
Do género má rês...
Exatamente, má rês, sobretudo no aspeto da insubmissão e, claramente, revoltado contra o establishment. E havia o lado do amoroso que não coincide com o platónico dos seus sonetos, que obedecem à estética da época, em que as mulheres eram postas num plano de intocabilidade e de de pureza
Respeito que não praticava?
Sim, era um homem de instintos muito fortes e com uma pujança sexual muito grande, daí frequentar os bordéis de Lisboa e o relatar. Estamos perante uma figura muito controversa, que tem muito menos de herói da pátria do que de herói da literatura e que é um valdevinos, como era reconhecido então.
Hoje, Camões seria um problema?
Sim, salvo as devidas proporções, foi um Luiz Pacheco do seu tempo. Com amores transgressionais e clandestinos, até inter-rácicos e com escravas, o que já na altura era malvisto. E escreveu sobre isso, o que mostra uma certa coragem. Provavelmente era um hipersexual, o que se manifesta na escrita muito escaldante quando se trata de questões de amor - "Erros meus, má Fortuna, Amor ardente", dizia ele.
Camões não escaparia às redes sociais?
Tal como foi uma vítima à época, mesmo que, diz-se, o censor de Camões tenha sido bastante benévolo. O facto é que desconhecemos o que lá estaria antes, e creio que não terá sido tão tolerante como se pensa porque Camões poderia ter escrito no canto IX o que Virgílio escreveu na Arte do Amor, que certamente conhecia, escritos que não estão enquadrados no que se chama os bons costumes literários da época.
Parte da tese que Camões poderia não ter escrito Os Lusíadas todos. É uma brincadeira literária ou está convicto?
As duas coisas. Por um lado, é um desafio ficcional interessantíssimo. Por outro, sabemos que muito do que está em Os Lusíadas já aparece noutras obras. Por exemplo, o primeiro verso é uma tradução da Eneida, e há muitíssimos outros versos que coincidem com os de autores do país vizinho, bem como a transcrição de poemas inteiros de outros seus contemporâneos.
Não se considera um camonista?
O que sei são curiosidades ou pistas de um puro amador, não sou um camonista. Não fiquem alarmados os camonistas porque eu não lhes vou roubar nada. O meu romance resulta apenas de leituras que fiz e de dúvidas que existem e abrem janelas para elaborar alguma ficção.
Sente-se respaldado em alguns camonistas quando aponta esses "plágios"?
Em alguns sim, mas sinto-me mais à vontade entre os meus pares do que com académicos. Trata-se de uma corporação diferente e cuja necessidade de construir uma figura de bronze de Camões era de tal ordem que não concebem que tivesse falhas humanas como todas as pessoas. O próprio biógrafo alemão de Camões, Wilhelm Storck, um dos primeiros a abordá-lo de forma sistemática, nega as fraquezas e faz uma romantização da sua figura num herói sem medo nem mácula
Que acaba enterrado na vala comum?
A maneira como foi tratado em morte denota que não era uma flor que se cheirasse e por isso foi despachado para a vala comum.
Qual será a reação dos camonistas?
Acho que nem vão ler o livro! Há um desprezo dos eruditos académicos pela ficção contemporânea. São catedráticos que em termos de leituras ficaram por aquelas que faziam parte do liceu.
Não nega o valor a Camões?
Isso nunca, Camões é enorme não só por Os Lusíadas, pois como dizia David Mourão-Ferreira era a prova da constância do génio. Hoje ninguém se senta a uma secretária para escrever um poema com uma rotina de trabalho como se fosse prosa. Camões tinha um projeto e um horário de trabalho e consegue com essa atitude manter fervilhante o estro poético ao longo de muito tempo e em simultâneo ser como um poeta dos dias de hoje na sua obra lírica.
Muitos questionam hoje se Camões é o poeta maior ou antes Fernando Pessoa. Qual é a sua opinião?
Essas hierarquias são momentâneas e correspondem muitas vezes a oportunidades de ordem política, até de política literária. Haverá pelo mundo mais leitores de Pessoa porque está mais próximo de nós, muito traduzido e é bastante mais difícil ler Camões. Felizmente não aconteceu ainda com Pessoa o que se passou com Camões, que foi reduzi-lo à estátua e ao cheiro de sala de aula.
Está satisfeito com a sua provocação?
Não sou pioneiro nisto, o próprio Borges negou num texto de ficção a autoria de Cervantes da obra Dom Quixote. Não sou o primeiro a fazê-lo.
Pré-publicação de Os Naufrágios de Camões de Mário Cláudio
"Na sequência de uma carta posterior, datada também de Lisboa, mas de 3 de Setembro de 2007, agendámos um encontro em lugar não muito distante do que Timothy captara na sua medíocre fotografia. Era uma leitaria minúscula, chamada «A Minhota», e uma dessas que Pessoa teria porventura frequentado, a fim de curar com um tépido galão a ressaca da aguardente emborcada na véspera. Dessa vez, e sem delongas, fui eu a interpelar o linguista com esta pergunta que transportava comigo, e que significava a minha vontade de testar a coerência daquele arrazoado, «Mas que vantagem retiraria o Capitão de arrastar pela velha capital do Império uma existência miserável, e inteiramente destituída do respeito que só muito mais tarde, reconhecendo-lhe enfim a dimensão de génio, acabariam por tributar ao poeta aventureiro, retornado das sete partidas?» A explicação de Timothy porém não se faria esperar, carregada de raivoso desprezo pela minha estupidez, nestes termos formais, «Não seja ingénuo, então você não vê que espécie de farsante era o embarcadiço da nau anual da China, capaz de representar durante o dia o papel do funcionário da Coroa, admitido às secretarias régias, e de se mascarar à noite de pobre diabo sem eira, nem beira, vegetando entre as putas dos becos da Mouraria, e surdindo de quando em quando no meio da corja de malandros que no Rossio se entregavam a malfeitorias de todo o género, entremeadas por jogatinas intermináveis à luz de uma candeia de azeite, a desprender o ranço que se associava ao pivete do peixe frito?» Atirei nessa altura o que eu supunha constituir o meu trunfo decisivo, articulado desta forma, «Uma coisa me parece no entanto inegável, e é que o segmento de Os Lusíadas que você atribui ao Capitão não difere por aí além, e no concernente à qualidade literária, do restante da epopeia que o precede.» Soerguendo-se na cadeira, e entornando na sua indignação o anacrónico cálice de genebra, Timothy vociferou num brado que espantaria os raros clientes da leitaria àquela hora avançada da manhã, «E você a dar-lhe, você a dar-lhe!» Em toada de diatribe descarregou então sobre mim este arrazoado, «Sempre que o vigarista se não aproveitou de quanto Luís de Camões havia escrito já, ou pelo menos esquissado, e que seria bastante, mas que o estupor iria manipular a seu bel-prazer, introduziu ele uma versalhada de pacotilha, com a qual muita gente, embalada pela cadência das estrofes anteriores, e sem forças para se sobrepor à ideia assente de que fora o vate quem a produzira, se deixaria preguiçosamente ludibriar.»
«Mas que seria feito daquele jovem», perguntava-me a mim próprio, «que eu conhecera na Casa dos Anjos, recém-casado, e em breve pai do primeiro filho, e que apesar da episódica tentação adulterina a que cedera com Susana, a afilhada de Tiago Veiga, bem poderia constituir um pilar da Igreja de Jesus Cristo dos Santos dos Últimos Dias?» «Que acontecera», interrogava-me ainda, «ao moço linguista tão atilado, e até algo taciturno, que partira para o Cambodja, animado por um projecto de investigador e erudito, e que daí regressara, transmudado em louco varrido?» Pouco depois, amparado no enciclopedismo electrónico, dar--me-ia conta da existência de uma modalidade de paludismo recorrente, comportando surtos de delírio, e quedei-me por tais informes como por um princípio de explicação. Mas eis que entretanto, e sempre na leitaria A Minhota, o meu correspondente de outrora, havendo consumido a sua quarta genebra, e desabando na cadeira mesmo por baixo do letreiro que na parede proclamava, «Não Fumadores, No Smokers, Non Fumeurs», puxaria de um cigarro que logo acenderia. E o que se seguiu foi este discurso destrambelhado, «Vou recitar uma estância do Canto IX, e você decidirá.» E de imediato, erguendo-se de novo, de calicezinho nos dedos, e como quem procede a um brinde, botou se a declamar,
«Que as imortalidades, que fingia
A antiguidade, que os ilustres ama,
Lá no estelante Olimpo, a quem subia
Sobre as asas ínclitas da Fama,
Por obras valerosas, que fazia,
Pelo trabalho imenso, que se chama
Caminho da virtude alto e fragoso,
Mas no fim doce, alegre e deleitoso.»
«Aqui tem você a absoluta banalidade», adiantou Timothy para prosseguir, «e esta passagem arrumadinha surge após a impúdica ribaldaria das Nereides, quando se esperava que campeasse o mais desabusado dos erotismos». «Tentaram explicar a mudança», ajuntaria ele, «com a intervenção do censor, o dominicano Frei Bartolomeu Ferreira, mas por que razão deixaria este intactas umas quantas cenas lúbricas, e rasuraria as restantes?» E atalhou, «A realidade é muito diferente, e cifra-se na descida sobre o poema da mão de chumbo do capitão da nau anual da China, o qual, desassistido do ouro puro do génio de Os Lusíadas, arremedaria esses versos de água chilra, e ao alcance de um qualquer alinhavador de prosa rimada, da raça dos inúmeros que por então proliferavam dentro e fora dos conventos.» E já mais calmo, Timothy concluiria assim, «Quer você mais charra e abominável platitude?»
Em honra do épico baixámos à Mouraria, prosseguindo tangencialmente pelos descampados do Martim Moniz, derradeiro alfobre das «muitas e desvairadas gentes», ou torpe vasculho da progénie dos intocáveis indostânicos, e dos escravos do Continente Negro. E ao longo do percurso o meu companheiro não se calava, acrescentando detalhes a detalhes do seu quadro alucinado. «"E o Jau?", perguntará o meu amigo», lembrava ele para declarar, «O Jau não passaria de um servo como outro qualquer, tão contente por obedecer a este como àquele, se todos os dias lhe pusessem diante do bucho a sopa de muito conduto, e a pinga de carrascão.»"