Até ao nono ano, Fédora Lucas praticou todos os desportos que a escola permitia: futebol, voleibol, basquetebol, ténis, râguebi, natação. Cedo se apercebeu que tinha muito mais massa muscular do que as raparigas da sua idade, mas as roupas largas disfarçavam o corpo maciço. "Por vezes, comprava roupa na secção masculina, porque não queria brilhantes e lantejoulas", recorda. Queria vestir-se como o primo, porque achava que as roupas dele eram mais confortáveis. "Saias e vestidos nunca foram a minha paixão. A minha mãe gostava, mas não me impunha. Usava sweats e camisas com t-shirts largas por dentro"..Contrastava com a maioria das suas amigas, "que vestiam calças justas, t-shirts mais femininas e roupa cor-de-rosa". Na praia, não gostava de andar de biquíni. "Não queria usar a parte de cima, então estava sempre de calções de rapaz ou de fato de surf. Passava a vida dentro de água com o meu primo". Também jogava cartas e snooker com o pai, que ficava bastante orgulhoso dos seus dotes..Quando passou para o secundário, Fédora Lucas, agora com 19 anos, transformou-se. "Havia muito mais pessoas para conhecer e estava fora da minha zona de conforto, o que fez com que me preocupasse mais com a imagem", lembra. Aluna do curso de Novas Tecnologias da Comunicação da Universidade de Aveiro, mantém o corpo musculado, os braços e as pernas fortes, mas já não o esconde debaixo de roupas largas. Pratica voleibol e faz musculação duas vezes por semana. Diz que enquanto a maioria das raparigas "trabalham glúteos e pernas", ela exercita todos os músculos. "E gostava de dedicar mais tempo ao ginásio"..Durante muito tempo, Fédora "fazia tudo o que os rapazes faziam, mas simplesmente era uma menina". Era aquilo a que costumam chamar "Maria-rapaz", o que, na sua opinião, não tinha um sentido depreciativo, nem fazia com que fosse alvo de qualquer tipo de discriminação. Mas nem sempre os rótulos são inócuos. Numa altura em que tanto se fala de igualdade de género, vários especialistas alertam para o facto de os títulos persistirem e para a necessidade de serem combatidos..Adultos transmitem estereótipos."Maria-rapaz é um rótulo que se mantém através das gerações mais velhas e é assim que vai chegando às mais novas. É um estereótipo que persiste, que vai sendo mantido e passado", diz Maria João Cunha, fundadora e investigadora do Centro Interdisciplinar de Estudos do Género (CIEG). Desta forma, prossegue, é possível constatar "que as questões da igualdade de género não estão resolvidas na nossa sociedade"..Na opinião da professora do Instituto Superior de Ciências Sociais e Políticas da Universidade de Lisboa, é um título que "encerra em si a ideia de que determinados comportamentos supostamente só devem ser desempenhados pelo sexo masculino, quando sabemos que isso são construções sociais". Se uma rapariga gosta de brincar com carros, correr ou trepar às árvores, "imediatamente terá esse rótulo", que "pode não ter um sentido demasiado negativo ou pejorativo até à adolescência, mas, daí para a frente, as coisas mudam de figura"..Ressalvando que não conhece nenhum estudo científico sobre o assunto, o pediatra Mário Cordeiro afirma que "o bom-senso mostra que é idiota classificar as crianças conforme os seus comportamentos, muito mais quando essa classificação é baseada em ultrapassados e contraproducentes estereótipos de género". Para o pediatra, "o senso comum e a experiência mostram que chamar mariquinhas só porque se tem receio de algo ou não se quer arriscar, ou Maria-rapaz porque uma rapariga é ousada e determinada é muito obtuso"..Mário Cordeiro acredita que rótulos como "Maria-rapaz" e "mariquinhas" estão a cair em desuso. No entanto, alerta, "se forem usados, podem condicionar os comportamentos e ser penalizadores para as crianças. Por subir a uma árvore uma rapariga é Maria-rapaz? Mas porquê rapaz? Maria-rapariga, então. Enfim, creio que as crianças, felizmente, são inteligentes e não querem saber dos complexos e idiossincrasias de certos adultos"..Para observar melhor as interações que ocorrem no espaço escolar, a investigadora Maria do Mar Pereira esteve infiltrada numa escola, em Portugal, e chegou à conclusão que "as pessoas não querem admitir que usam rótulos, mas, na prática, vemos que eles ainda existem". Na opinião da professora associada no departamento de Sociologia da University of Warwick (Reino Unido), autora do livro Fazendo Género no Recreio - A negociação do género em espaço escolar, "a situação estará um pouco melhor, porque as gerações mais novas não têm os mesmos estereótipos, mas ainda há muito a fazer para que estas categorias desapareçam". E o facto de a sociedade achar que o problema já não existe, agrava-o..A investigadora, que venceu o Prémio Philip Leverhulme, no valor de 116 mil euros, por dois estudos pioneiros que realizou sobre sexismo em escolas e universidades portuguesas, afirma que "muitas vezes, as crianças veem as pessoas à sua volta usarem categorias que lhes dizem o que é aceitável fazerem, e depois usam-nas com os outras crianças". Regra geral, ser Maria-rapaz não tem uma conotação negativa como o "mariquinhas", sobre o qual falaremos mais à frente. "Se a sociedade valoriza traços que costumam ser associados aos homens - coragem, autonomia, iniciativa, aventura -, pode ser bem visto uma rapariga ter essas caraterísticas", explica..Eu sou Maria-rapaz, dizem elas.Teresa, de 8 anos, costuma dizer que é Maria-rapaz, porque gosta de jogar futebol. "Não leva isso como sendo um elogio, nem como algo pejorativo", conta ao DN a mãe, Mafalda Miranda. Tem três irmãos - Madalena, de 10 anos, Vasco, de 8, e Francisco, de 6 - e é com as brincadeiras dos rapazes que mais se identifica. Gosta de praticar desporto, de jogar Fifa, de brincar com os rapazes na escola. "Se tiver de se mascarar, mais depressa veste o fato do Ronaldo do que o de uma princesa". Não dá qualquer importância à roupa nem gosta de brincar com bonecas, mas, ao mesmo tempo, "é super atenciosa, cuidadosa, prestável. Tem muitas caraterísticas femininas"..Para Mafalda, o facto de a filha se autointitular Maria-rapaz não é uma situação preocupante. "Ela gosta, lida bem com isso. Nunca me disse que a chamavam assim na escola", sublinha, destacando que não sente que a filha seja alvo de qualquer tipo de discriminação..Carlota, de 6 anos, também não se cansa de dizer que é Maria-rapaz. "Adora skates, bolas e coisas de rapazes, mas também gosta de brincar com o fato de ginástica da irmã", conta a mãe, Daisy Ulrich. Sempre que brinca às escolas ou com bonecos, escolhe ser um rapaz. "Diz que não gosta de cor de rosa, mas é capaz de vestir fatos brilhantes em casa". E adora usar o equipamento do Benfica ou do Sporting.."Não aprofundo muito a questão. É uma coisa que não me incomoda nada. Nem penso que a pode vir a afetar no futuro. A Carlota tem uma parte muito sensível. Também diz que quer casar e ter filhos", conta Daisy. Na opinião desta mãe, a filha terá alguma vergonha de mostrar o lado feminino, e prefere fazer prevalecer as caraterísticas tidas como mais masculinas.Apesar de os rótulos serem aparentemente inofensivos, Maria João Cunha alerta para o facto de "acabarem por estereotipar, limitar a ação dos indivíduos". Enquanto nas meninas tendem a desaparecer quando chegam à adolescência, "nos rapazes são mais nocivos". "É mais fácil entender que a filha é Maria-rapaz do que aceitar que o filho brinca com brinquedos que são considerados mais femininos", indica a investigadora do CIEG..O peso do "mariquinhas".Pais e especialistas concordam que este é um rótulo com uma conotação mais negativa. "O estigma da homossexualidade masculina é maior do que o da feminina embora, sublinhe-se com letras bem grandes, isto não tem nada a ver com o assunto", esclarece o pediatra Mário Cordeiro. Nem os comportamento mais ousados, nem os tímidos estão relacionados com a orientação sexual, "que aliás só se estabelece no final da adolescência embora seja inata - querer defini-la por jogar à bola, trepar aos muros ou embalar bonecos é de um obscurantismo a toda a prova". .Regra geral, dizem os investigadores, os rapazes tendem a ser mais penalizados do que as raparigas quando se desviam daquilo que é esperado para o seu género. Na investigação que realizou em contexto escolar, Maria do Mar Pereira deparou-se com "dois rapazes que eram considerados mariquinhas, porque não gostavam de futebol da mesma maneira do que os outros e porque fisicamente não tinham o mesmo corpo". Todos os dias, recorda a investigadora, eram "excluídos implícita ou explicitamente das atividades. Era criado um estigma à volta deles, como se ser mariquinhas fosse contagioso"..Havia um outro rapaz, conta, que tinha um grande interesse por dança, mas "os próprios professores gozavam com esse interesse, dizendo que era coisa de raparigas". "Podem existir talentos excecionais ou coisas que apaixonem as pessoas, mas que elas não vão fazer, porque acham que não vão ser aceites. É trágico quando vemos o potencial desportivo de mulheres e o lado emocional dos rapazes serem postos de parte assim. É muito triste mutilar as pessoas por causa de categorias que não são naturais, são arbitrárias", lamenta a investigadora..Os desvios aos ideais rígidos impostos pela sociedade podem gerar diferentes tipos de reações, "como insultos, agressões físicas, castigos ou coisas mais subtis, como pequenas bocas ou comentários, mas até esses têm um efeito muito grande". Segundo a socióloga, os rótulos podem gerar também "grandes problemas de auto-estima, porque as crianças sentem que os seus interesses não são considerados válidos"..Ao expressarem sentimentos como angústia e ansiedade, os rapazes são muitas vezes considerados "mariquinhas". "Se um rapaz é ensinado a não mostrar emoções, isso pode dar origem a uma série de problemas de saúde mental, que explicam uma maior taxa de suicídio entre os rapazes", adianta a investigadora..Impacto depende da criança.Tal como foi relatado ao DN pelas mães da Teresa e da Carlota, muitas vezes são as próprias crianças que dizem ser Marias-rapazes. "Há crianças que acham piada e se autointitulam de alguma coisa. Mas há situações em que esse rótulo tem uma conotação de gozo, um lado mais negativo. Se a criança acha piada, não vale a pena fazer um drama. Mas, se houver desconforto, convém que parem de o usar", indica Inês Afonso Marques, psicóloga responsável pela área infantojuvenil da Oficina de Psicologia..Muitas vezes, reforça a psicóloga, esse rótulos vêm de casa, do convívio com os adultos. "Temos de ter muito cuidado com as palavras que escolhemos para nos dirigir aos miúdos. Nós somos modelos", alerta. Existe potencial para haver impacto do ponto de vista psicológico, mas "isso depende das caraterísticas de personalidade da criança e da forma como encara esses títulos"..A igualdade de género faz parte dos currículos escolares, mas "talvez seja preciso fazer mais, porque continuamos a ter estes rótulos, e não são tão inocentes como se pode pensar", adverte Maria João Cunha. Em alguns jardins de infância, adianta, "os meninos vão brincar para a rua, enquanto as meninas ficam a brincar às casinhas". "É aí que temos de começar a combater os estereótipos".