Maria João Tomás: "É de esperar que a tensão entre Argélia e Marrocos se agrave"
Ao prescindir do gasoduto que abastece a Península Ibérica via Marrocos, para retaliar o país vizinho por questões políticas, a Argélia põe em risco os contratos de fornecimento a Portugal e Espanha, mas também prejudica a sua própria economia, certo?
A Argélia compromete-se a continuar a assegurar o regular fornecimento de gás a Portugal e Espanha, 10 biliões de metros cúbicos de gás natural por ano, o correspondente a 30% do gás natural que se consome nos dois países da Península Ibérica. O transporte que, desde 1996 até outubro deste ano, era feito pelo gasoduto Gaz Maghreb Europe (GME) passando por Marrocos, vai ser feito através do Medgaz, que tem muito menos capacidade, ligando diretamente Argélia a Espanha, evitando o território marroquino. O restante segue por via marítima. Apesar de encarecer, de ter mais riscos e demorar mais tempo, a Argélia deixa de pagar direitos de passagem a Marrocos, no valor de um bilião de metros cúbicos de gás natural por ano, destinados à produção elétrica de duas centrais de ciclo combinado em Marrocos e que geravam 17% da produção marroquina de eletricidade.
Nesta crise entre os dois países magrebinos, que levou mesmo ao corte de relações em agosto, é sobretudo o destino do Sara Ocidental - províncias marroquinas para Rabat mas república independente sob a Polisario para Argel - que explica o súbito agravamento da tradicional tensão?
A tensão entre os dois países está em crescendo. No dia 3 de novembro, a Argélia anunciou a morte de três cidadãos no Sara Ocidental, num ataque que atribui a Marrocos e prometeu retaliar. Rabat não comentou oficialmente as acusações, mas, à AFP, fonte informada do reino afirmou que "Marrocos não se deixará envolver numa guerra com a Argélia". Em setembro deste ano, o Tribunal Geral da União Europeia deu razão à Frente Polisario, anulando dois acordos sobre produtos agrícolas e pesqueiros celebrados em 2019 entre a União Europeia e Marrocos, acusando Rabat de exploração ilegal dos recursos naturais no Sara Ocidental sem o consentimento dos sarauís. Esta vitória, considerada pela Frente Polisario como uma "vitória triunfal para a causa do deserto", implica a perda de cerca de 52 milhões de euros anuais para Marrocos, durante quatro anos. No entanto, os acordos continuarão em vigor durante mais dois meses, para que as duas partes, Bruxelas e Rabat, possam recorrer da decisão.
Lembre-se que Marrocos considera o Sara Ocidental como parte integrante do seu território e que a Argélia apoia a Frente Polisario e tem uma fronteira com o Sara Ocidental com cerca de 42 quilómetros. O Sara Ocidental, apesar de ser grande parte desértico, tem muitas riquezas naturais, como os fosfatos e petróleo, além de ter uma faixa piscatória muito rica.
De que modo a questão do gás, que pode escassear nas casas portuguesas e espanholas ou no mínimo ficar mais caro, vai afetar as relações de Lisboa e Madrid com Argel?
A Argélia compromete-se a assegurar o normal fornecimento de gás a Portugal e Espanha, portanto, para já, não há razão para preocupação. Por outro lado, o nosso país tem excelentes relações com os dois países, apesar do diferendo que os separa. Já com Espanha, não nos podemos esquecer o incidente de junho passado, quando o líder da Frente Polisario, e presidente da autointitulada República Árabe Sarauí, RASD, Brahim Ghali foi acolhido em Espanha para ser tratado pela grave infeção causada pela covid, causando um esfriamento das relações diplomáticas entre os dois países.
Nos últimos meses, tem-se notado hipersensibilidade da Argélia não só em relação em Marrocos, mas também em relação a França, a antiga potência colonial. São tensões distintas as que opõem Argel a Rabat e Argel a Paris, ou existem uma lógica comum que tem que ver com um sentimento de cerco por parte da Argélia, de que os seus interesses e valores estão a ser ignorados?
As relações Argel e Rabat e Argel e Paris são situações bem distintas. A tensão tem escalado entre a Argélia e a França, que acusa a sua antiga colónia estar a ser governada por um "sistema político-militar" que "reescreveu totalmente" sua história. A Argélia chamou de volta o seu embaixador em Paris e proibiu aviões militares franceses do seu espaço aéreo, que a França usa regularmente para ajudar as suas tropas que lutam contra jihadistas na região do Sahel. Por outro lado, Paris reduziu drasticamente o número de vistos concedidos a cidadãos da Argélia, a exemplo do que fez também com Marrocos e Tunísia, acusando-os de não controlarem a emigração ilegal que entra em França. No entanto, Macron reiterou vontade de retomar as boas relações com a Argélia. Para a Argélia é importante afirmar-se como potência do Magreb.
Alguma possibilidade de a situação no Sara, essa antiga colónia espanhola que Marrocos controla no essencial e para a qual Rabat admite no máximo uma ampla autonomia, mudar por causa desta prova de força da Argélia?
A tensão entre a Argélia e Marrocos por causa do Sara Ocidental foi reavivada com a decisão do Tribunal da União Europeia, por isso será de esperar que a situação se agrave, e que a Argélia tire o maior partido internacional para reivindicar o referendo de autodeterminação sob mediação da ONU, planeado quando o cessar-fogo foi assinado em 1991. Não nos podemos esquecer de que em janeiro de 2020, Trump reconheceu a soberania de Marrocos sobre o Sara Ocidental em troca da normalização das relações de Marrocos com Israel, decisão que Biden mantém. Argel por seu lado acusa Rabat de dar apoio expresso ao desejo de autodeterminação do povo berbere da Cabília em relação à Argélia. É de esperar o escalar das tensões, tendo o Conselho de Segurança da ONU já pedido às "partes" que retomem as negociações "sem pré-condições e de boa-fé". Vamos esperar para ver se alguma coisa vai realmente mudar.