Foi num programa da RTP durante uma entrevista à jornalista Maria Elisa Domingues que António Arnaut, o "pai" do Serviço Nacional de Saúde (SNS), anunciou a intenção de criar um sistema de cuidados de saúde universal para todos os portugueses. Passadas quatro décadas do momento em que o projeto se concretizou, na lei n.º 56/79, a jornalista publica o livro 40 anos do SNS, apresentado nesta segunda-feira no El Corte Inglés, em Lisboa..O livro passa em revista o percurso de personalidades ligadas ao Serviço Nacional de Saúde e aborda temas como a saúde materno-infantil, cuidados de saúde primários e hospitalares, saúde mental, envelhecimento. Conta ainda com testemunhos do Presidente da Republica, Marcelo Rebelo de Sousa, do primeiro-ministro, António Costa, do antigo chefe de Estado Jorge Sampaio ou dos bastonários das ordens dos Médicos, Enfermeiros, Psicólogos, Farmacêuticos, Dentistas, Nutricionistas e Biólogos..Como é que surgiu a ideia de escrever este livro sobre os 40 anos do SNS? A ideia não foi minha, foi do anterior ministro da Saúde, o professor Alberto Campos Fernandes, que me convidou para escrever este livro dos 40 anos do SNS, para assinalar a data, que se comemorou a 15 de setembro deste ano..Quais foram as grandes conquistas do SNS? O SNS não nasceu no dia zero, levou tempo. Por isso, eu dedico um primeiro capítulo aos precursores, que são uma série de individualidades do campo da saúde que ao longo de todo o século XX foram preparando o terreno para que fosse possível implementar com êxito o pacote legislativo do Dr. António Arnaut. Entre esses percursos está, por exemplo, o pai do Presidente da República - o Dr. Baltazar Rebelo de Sousa -, que foi ministro de várias pastas, entre elas a Saúde e Assistência, e que escolheu para secretário de Estado da Saúde um homem absolutamente notável chamado Gonçalves Ferreira..Gonçalves Ferreira fez uma reforma, no princípio dos anos 1970, durante a Primavera Marcelista, que consistiu na abertura de mais de 300 centros de saúde em todo o país. E é no fundo sob a malha destes centros de saúde que se vai desenvolver o Serviço Nacional de Saúde..Também dedico uma parte significativa ao Dr. António Arnaut, que é o "pai" mais conhecido do SNS. Ele ainda estava vivo quando fui convidada para fazer o livro e quando ele morreu ainda me pareceu mais justo que ficasse um testemunho sobre ele, que pedi ao Dr. António Costa e ao Dr. Manuel Alegre..O Dr. António Arnaut, até à data da sua morte [2018], foi acompanhando o livro? Sim, diariamente. Ele apoiava e entusiasmava-se com tudo o que fosse para defender o Serviço Nacional de Saúde, porque considerava que o SNS corria alguns perigos e que apresentava sintomas de degradação. Ele foi realmente uma grande ajuda..Foi num programa de televisão da Maria Elisa que o Dr. António Arnaut falou pela primeira vez do projeto do SNS. Lembra-se desse momento? Penso que foi no programa Em Questão, nos anos a seguir ao 25 de Abril, no qual eu era autora, coordenadora e apresentadora. Estamos a falar de 1979, estavam sempre a acontecer coisas, foram anos muito fervilhantes e eu tinha 20 anos, por isso acho que nem me apercebi bem daquilo que estava a ser anunciado, da importância que ia ter para o nosso futuro. Depois, fui mantendo sempre um certo contacto com o Dr. Arnaut. Ele prefaciou outro livro meu sobre o cancro [Amar e Cuidar - A Minha Viagem pelo Mundo do Cancro], há seis anos. Na altura, não fazia a mais pequena ideia de que ele tinha cancro, escolhi-o por ser um tema de saúde..A Maria Elisa vive com fibromialgia. É acompanhada no SNS? Sim, a minha médica de família é do Centro de Saúde de Sete Rios [Lisboa]. E mesmo há dois anos, quando parti o braço, fui diretamente para [o Hospital de] Santa Maria..Recorre sempre ao Serviço Nacional de Saúde? Não vou sempre. De vez em quando, tenho problemas de garganta e tenho um excelente otorrino no sistema privado..Porquê? Gosto do SNS, mas a demora que existe em certas especialidades é difícil para as pessoas. Se a pessoa tem possibilidade, porque tem seguro de saúde, e puder recorrer aos dois sistemas, não tenho nada contra. Mas tem de haver resposta no público para as pessoas que não podem recorrer a mais nada..Qual é a melhor memória que tem do SNS? Quando parti o braço e fui para o Santa Maria fui espetacularmente bem atendida, quer nas urgências quer na fisioterapia. Mas uma das minhas melhores amigas está há mais de um ano à espera de uma cirurgia na anca, em sofrimento. Há experiências muito positivas e há coisas a corrigir. Acho que o sistema tem de ser repensado..Que perceção têm do SNS as pessoas com que falou para escrever o livro? Falei com centenas de profissionais de saúde e todos eles dizem o melhor. É claro que, se passar num hospital e as pessoas perceberem que tem uma certa disponibilidade e que está a fazer um livro sobre o SNS, há pessoas que se aproximam só para dizer mal, para dizer que estão ali à espera há muito tempo. Mas, se refletirem, a maior parte das pessoas tem uma opinião extremamente positiva sobre o SNS. Uma percentagem muito elevada das pessoas diz que o SNS foi a reforma mais importante da democracia..No entanto, termina o livro com a pergunta: "Não mereceria o SNS melhor?" Digo isso em relação à forma como a nova lei de bases [da saúde] foi discutida, de forma apressada. O cidadão deveria ser chamado a participar nas decisões sobre a nossa saúde. Acontece que a legislatura estava no fim, o Parlamento ia fechar no verão e a lei foi aprovada de tal forma que na véspera não tinha sido publicada online, como deve estar, para que as pessoas possam estar informadas..Perdeu-se a oportunidade. Perdeu-se muito tempo à volta das PPP [parcerias público-privadas], que foram discutidas só de um ponto de vista ideológico: se eu sou de esquerda sou contra, se sou do PS sou assim-assim e se for de direita sou a favor. Ora, isto é completamente errado, acho que não vi nenhuma intervenção desapaixonada com dados estatísticos sobre o grau de satisfação dos utentes nos hospitais onde as PPP funcionaram. E as PPP nem sequer são a coisa mais importante para os utentes. Seja qual for o modelo de gestão do hospital, o que o utente quer é ser bem atendido, com rapidez, eficiência e qualidade. A saúde é uma coisa séria demais para ter estas posições extremadas..Que diagnóstico faz do SNS hoje? Acho que, tal como a maior parte dos portugueses, o SNS foi a melhor reforma da democracia portuguesa. É, de um modo geral, muito bom. Se nós tivermos uma doença grave, o que queremos é ser atendidos e tratados no SNS, onde há os melhores equipamentos, médicos excelentes..Agora, há falhas? Há. O SNS foi pensado para uma população que vivia X anos e agora vivemos X mais Y (e este Y é muito significativo). Vivemos mais anos, somos mais consumidores de atos médicos, porque quando envelhecemos precisamos de mais cuidados, e as pessoas também estão mais exigentes em termos de tratamento. O sistema explode..Durante a campanha eleitoral, o primeiro-ministro dizia "temos mais médicos e enfermeiros no sistema. Estamos a fazer mais atos cirúrgicos". Mas o aumento da oferta não acompanhou o aumento da procura, porque a procura é brutal..A Maria Elisa chegou a estudar Medicina. O que a afastou? Estudei dois anos. Mas, ao mesmo tempo, andava no conservatório, estudava teatro, e fiquei de algum modo desiludida com o curso, porque achava que era pouco prático. No início dos anos 1970, com a Guerra do Ultramar, houve uma grande explosão de alunos na Faculdade de Medicina e acho que não havia número suficiente de assistentes. Por isso, as aulas passaram a ser muito teóricas.