Num ano em que a lista dos filmes a concurso na competição nacional do IndieLisboa era, passe o cliché, de luxo, acontece o impensável no Curtas Vila do Conde: os filmes nacionais são na generalidade de uma qualidade de excelência. Mais uma vez, uma safra que confirma uma vitalidade evidente no formato da curta, não só a revelar nomes, mas a confirmar percursos. Mérito do comité de seleção do festival ou circunstância feliz dos talentos nacionais? Decididamente, as duas evidências. São curtas que atestam várias tendências e modelos de cinema, mas, acima de tudo, a habitual liberdade autoral que brota uma mistura saudável de registos mais acessíveis, com opções mais experimentais. Em ambos os campos a competição nacional teve filmes muito fortes..Hoje o júri terá a boa dificuldade de fazer escolhas, mas pode até acreditar-se que algumas das curtas portuguesas podem chegar ao palmarés internacional, como, aliás, já aconteceu..A surpresa maior terá sido a estreia de Margarida Vila-Nova, Pê, drama dilacerante onde Adriano Luz constrói uma personagem que recebe a notícia de que terá poucos meses de vida. Um filme capaz de construir uma teia melodramática que dispensa as armadilhas do cancer porn, género cada vez mais em voga. Na essência, filma-se a carta que este homem deixa àqueles que ama, uma despedida de vida luminosa, leve e inspiradora..Um filme que é também uma visita de amor a Lisboa e às suas maravilhas secretas. A câmara dá-se bem com a luminosidade da cidade, mas também dos rostos, em especial de Adriano Luz, ator que emana vida e uma graça transcendental..Em última instância, é um filme emocional, que sabe assumir as "grandes emoções" e tem uma realizadora capaz das mais elegantes composições de planos e de jogos temporais que são cinema..Corações ao alto na cidade do Rio Ave pelas animações que elevaram a bitola do festival. Se por um lado João Gonzalez e o seu Ice Merchants chegavam com a fama e responsabilidade do triunfo na Semana da Crítica, O Casaco Rosa, de Mónica Santos, era uma incógnita, neste caso um musical sobre um casaco cor-de-rosa, que simboliza o comportamento de Rosa Casaco, agente da PIDE. Um casaco que ao som de uma canção supostamente infantil tortura, manipula e costura os opositores do regime. Um humor tão político como criativo num imaginário colorido que nos dá um mundo de casacos com vontade própria..Mas Ice Merchants, para além de todos os elogios que tem tido na sua expansão internacional, confirma-se mesmo como um dos mais bonitos filmes da animação portuguesa. Para Gonzalez, foi importante a questão de o mostrar no Curtas, festival onde diz ter visto a sua primeira curta-metragem. Polegares muito para cima ainda com o regresso da dupla Vasco Sá e David Doutel com Garrano, aclamado em Annecy no maior festival europeu de animação. Uma animação para adultos com um sentido trágico indomável e uma estrutura narrativa sem falhas. Não foi por acaso que foi muito aplaudido..Dos grandes filmes desta competição impossível passar ao lado de As Sacrificadas, coprodução luso-suíça, com assinatura de Aurélie Oliveira Pernet. A história de uma mãe e filha no interior do país a contas com a praga dos incêndios e a sombra do isolamento. Salta à vista uma veracidade à flor da pele, numa fluidez narrativa que tem vagar para olhar para a alma das personagens, sempre com um peso feminino. Ver esta história de incêndios quando Portugal está a arder aperta ainda mais o coração....Muitíssimo bem conseguida é a curta Skola di Tarefe, de Filipa César e Sónia Vaz Borges, documentário-ensaio sobre o processo de educação levado a cabo por Amílcar Cabral na Guiné. Um filme murmurado e de testemunhos sobre os atos hediondos do Exército português na guerra colonial..É também um "filme de artista" com militância histórica, só se dispensando os já tão saturados e aleatórios planos de 16 mm - será que os cineastas não veem os filmes uns dos outros?.Outro dos supostos favoritos é Saturno, de Luís Costa e André Guiomar, cartão de visita de soturnidade de marca registada "cinema português". Conta o caso de Caveirinha, figura real que contracena com Ana Moreira na descrição da sua tragédia pessoal: a morte do seu filho. Objeto de um rigor imperial e com o plano sequência mais belo do festival....Nesta competição nacional houve também um ator com peso forte em dois filmes, João Abreu, presença já bem notada nos espetáculos do Teatro Praga. Um corpo sem género em Uma Rapariga Imaterial, panfleto LGBT de André Godinho e também em See You Later, Space Island, de Alice dos Reis, curioso sci-fi ancorado na bela paisagem de Santa Maria, nos Açores..João Abreu não foi bandeira queer do festival mas foi um símbolo de uma diversidade que não foi nunca encavalitada nesta programação..Para além de tudo, há o caso Sandro Aguilar, veterano vencedor do Curtas, o pai da "geração curtas". O homem da O Som e a Fúria apresentou o enigmático O Teu Peso em Ouro, com João Pedro Bénard, Isabel Abreu e um genial Marcello Urgeghe. Tal como o protagonista hipnoterapeuta, este é um filme que hipnotiza, não pela sideral elegância dos seus mistérios, mas, sobretudo, pela penumbra da sua insanidade...Cada vez mais, um cineasta português com um vocabulário só dele..Depois, a competição teve alguns casos de abertura de caminhos. Filmes que estiveram entre a mera curiosidade e um discurso de aperitivo para outros voos, com é o caso de Raticida, de João Niza Ribeiro, um cineasta que constrói um visual próprio, mas que talvez não tenha o golpe de rins para algo mais singular, tal como 2ª Pessoa, de Rita Barbosa, que se enamora de um texto que propõe olhares sobre as traseiras de vários edifícios de uma grande cidade. Aos Dezasseis, de Carlos Lobo, vindo da Berlinale, também se fica pelo meio caminho, algures entre a dolência de um Gus Van Sant a filmar a adolescência e um realismo a emular o João Salaviza de Montanha. E é também de ambientes que vive Heitor sem Nome, de Vasco Saltão, conto de um vigilante da falésia de outros séculos que se vê de repente nos nossos dias. Parece ser daqueles casos cujo estilo anula um pouco a substância, mas estão lá valores estéticos estimulantes e um ator com estupenda graça de câmara, Isaac Graça..dnot@dn.pt