Não é uma manifestação, é uma marcha pela dignidade da profissão de enfermeiro e recusa conotações sindicais. Mas contará com a participação dos sindicatos - um decretou greve para garantir maior participação - e com o apoio da Ordem dos Enfermeiros (OE), que paga os mais de 70 autocarros que vão transportar gente de norte a sul do país até Lisboa..A Marcha Branca, que no Dia Internacional da Mulher pretende homenagear uma profissão maioritariamente feminina, não deixa também de ser uma forma de chamar a atenção para os problemas deste setor, que ficou com imagem enfraquecida depois da greve cirúrgica que levou o governo a decretar uma requisição civil e a recorrer aos tribunais..No entanto, o cartaz da marcha, organizada pelo Movimento Nacional de Enfermeiros com o apoio da Ordem, traz no fim uma advertência: "A organização adverte que este evento pretende mostrar ao país a importância do enfermeiro e da enfermagem e não tem natureza sindical. Pede-se a colaboração dos participantes para se absterem de reivindicar quaisquer direitos laborais e outros de natureza similar.".E é à natureza não sindical da iniciativa que a bastonária da OE, Ana Rita Cavaco, recorre para responder a quem a acuse de estar a manobrar esta iniciativa, como aconteceu por ocasião das greves cirúrgicas. "Esta é uma iniciativa perfeitamente assumida e pela dignidade da profissão, que tem sido muito atacada por líderes parlamentares e governamentais. Estamos conscientes de quais são as nossas competências. O estatuto permite que a Ordem apoie este tipo de iniciativas desde que não tenham cariz sindical. É para isto que os enfermeiros pagam quotas.".O ponto do Estatuto dos Enfermeiros que serve de argumentação à bastonária, e que tem força de lei, é o artigo 3.º, que determina as atribuições da entidade: "Zelar pela função social, dignidade e prestígio da profissão de enfermeiro, promovendo a valorização profissional e científica dos seus membros." O mesmo artigo do estatuto refere que "a Ordem está impedida de exercer ou de participar em atividades de natureza sindical"..Ana Rita Cavaco acrescenta que se trata de um apoio "completamente transparente" e que a OE recorre à contração pública depois de uma decisão do conselho diretivo. Não é, de resto, a primeira vez que apoia uma concentração de enfermeiros - ainda em maio do ano passado isso aconteceu. Da mesma forma que apoia "congressos ou outras atividades pela dignificação da profissão"..Nas atuais circunstâncias, o apoio da Ordem não tem uma leitura política? "Não tem de ter, porque é um evento sem cariz sindical. O poder político também reage muito à bastonária dos Enfermeiros por eu ser mulher. Se fosse homem não seria assim. Por exemplo, o bastonário dos Médicos faz exatamente o mesmo que eu faço no apoio às greves e nunca se viu um ataque tão feroz a uma intervenção sua como em relação a mim. Aliás, recordo-me de que em 2018 chegou a dizer que ia aderir à greve.".De resto, considera que a intervenção política é muito importante do ponto de vista cívico: "Estou sempre a encorajar os enfermeiros a fazer isso em qualquer partido, os enfermeiros precisam de visibilidade política. Mas quer os partidos da esquerda quer os da direita não foram muito simpáticos com a dignidade dos enfermeiros, que têm suportado o Serviço Nacional de Saúde sem condições nenhumas.".E é essa dignidade que Ana Rita Cavaco diz ser necessário resgatar. O Dia Internacional da Mulher, quando mais de 80% da população de enfermeiros são do sexo feminino, é uma ótima data para isso. Porque, sublinha, as enfermeiras não conseguem ter os mesmos direitos do que outras mulheres de outras profissões, como nas questões da amamentação e parentalidade. A Marcha Branca pretende ser uma homenagem a Florence Nightingale (1820-1910) - a britânica considerada a mãe da enfermagem a quem os feridos da guerra da Crimeia chamavam Dama da Lamparina ou Dama da Lâmpada, porque percorria as enfermarias com uma luz na mão..Sem previsão de discursos.O Movimento Nacional de Enfermeiros, que organiza a marcha, quer que este seja um dia para valorizar a profissão, sem reivindicações laborais - apesar de os sindicatos terem respondido presente. Sónia Viegas, uma das quatro cabeças do movimento, faz questão de frisar que "não há qualquer mistura de organizações sindicais ou da Ordem" na organização e convocação da Marcha Branca. "O facto de a bastonária apoiar não quer dizer que esteja atrás ou à frente da iniciativa", defende a enfermeira do Hospital de Santa Maria..Na Marcha Branca - cuja concentração está marcada para as 15 horas no Parque da Bela Vista, com percurso até ao Hospital de Santa Maria, onde deverá chegar às 16 horas - não estão previstos discursos de sindicalistas ou da bastonária, garante Sónia Viegas..O Movimento Nacional de Enfermeiros, "independente e apartidário", é distinto do Movimento Cirúrgico, que convocou as greves do final do ano e de fevereiro que levaram ao adiantamento de cerca de 13 mil cirurgias. Mas há no entanto membros que se cruzam, como é o caso de Catarina Barbosa, do Hospital de São João do Porto. Além de Sónia Viegas, o movimento nacional é também encabeçado por Marco Carvalho, enfermeiro no Curry Cabral (Lisboa), e por Nuno Alpalhão, de Évora..Os sindicatos vão manter-se neutros?.Apesar de o movimento sublinhar que a marcha não é um evento sindical e do próprio panfleto apelar aos manifestantes para se absterem de reivindicações dessa ordem, a verdade é que os sindicatos vão participar. A Associação Sindical dos Profissionais de Enfermagem (ASPE) marcou mesmo uma greve nacional para este dia, "para libertar os enfermeiros para que possam participar"..E embora não vá levar bandeiras com palavras de ordem, Lúcia Leite, da ASPE, admite que é difícil dissociar as reivindicações da classe da dignidade que se pede para a profissão. No pré-aviso de greve, os objetivos da paralisação são bem claros: pela dignificação da profissão; pela justa e correta contagem dos pontos para o efeito de descongelamento das progressões a todos os enfermeiros, independentemente do vínculo ou da tipologia do contrato..Por seu turno, o Sindicato Democrático dos Enfermeiros de Portugal (Sindepor) - que juntamente com a ASPE decretou as greves cirúrgicas - emitiu um comunicado a anunciar o seu apoio e participação na Marcha Branca. E no mesmo comunicado, logo no segundo parágrafo, diz que foi contactado para "retomar as negociações com a comissão mandatada pelo Ministério da Saúde e Finanças", mas acusa o governo de querer resumir as matérias a negociar "questões menores"..E continua numa linguagem de luta sindical: "E se estão a pensar que vão negociar matérias que lhes interessam, como os serviços mínimos em greve, sem que tenham de negociar tantas outras questões que interessam aos enfermeiros, como o descongelamento das progressões ou a compensação do risco, desgaste e penosidade com efeitos na idade de aposentação, estão muito enganados.".A Marcha Branca conta igualmente com a participação do Sindicato dos Enfermeiros Portugueses (SEP), que não aderiu às greves cirúrgicas. No seu site, o SEP tem um anúncio lacónico: "Em resposta ao Movimento Nacional de Enfermeiros, a Direção Nacional do SEP, reunida ontem, decidiu que participa na Marcha Branca em homenagem a Florence Nightingale.".A marcha, que prevê juntar milhares de enfermeiros - quatro mil que vêm até à capital nos autocarros pagos pela OE mais os da região de Lisboa - também sugere um dress code: roupa e cravos brancos. A frase proposta para as T-shirts é "ninguém solta a mão de ninguém".