Mar rouba 411 campos de futebol às praias de Aveiro

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OAlexandre abre os braços e ensaia uma corrida como se fosse levantar voo. Grita "goooolo" e tropeça de tanto rir, caindo de costas na apetecível areia do fim de tarde. A futebolada, daquelas de muda aos cinco e acaba aos dez, termina com um derradeiro remate do jovem de Aveiro. Uns esticam-se na toalha, outros voltam às frescas ondas atlânticas, sorridentes e felizes, mas sem que suspeitem que o terreno de jogo da Costa Nova, em breve, será conquistado pelo mar, esse predador que nos últimos 45 anos, entre Esmoriz e a Torreira, no extremo norte do distrito de Aveiro, e a Costa Nova e a Praia de Mira, a sul, roubou o equivalente a 411 campos de futebol.

Isso mesmo dirá hoje, em Coimbra, o director regional da Direcção de Serviços do Litoral, Conservação da Natureza e Infraestruturas, Mota Lopes, numa conferência em que toca os casos de risco e de perda de Território. "A zona centro da orla costeira de Portugal está ameaçada por uma erosão com galgamentos marinhos generalizados e persistentes, com importantes perdas de território e prejuízos para os habitats naturais e a actividade humana", alerta aquele especialista, para quem tal cenário, a prosseguir, vai colocar "em risco importantes aglomerados urbanos costeiros".

A sua preocupação sustenta-se em números "Nos últimos oitos anos, naqueles dois troços, perderam-se cerca de nove milhões de metros cúbicos de sedimentos, ou seja, uma média de 1,1 milhões de metros cúbicos por ano". Daí que este especialista, em documento enviado ao Ministério do Ambiente e cujo teor vai, novamente, realçar na conferência de hoje, defenda a aplicação de "soluções sustentadas", sob pena de "num futuro mais ou menos próximo" não restar outra alternativa que "não seja a retirada de populações, já que a tendência para acidentes cada vez mais graves é crescente".

Mas nem só a acção do mar é responsável pelo continuado desgaste da costa nacional. Os comportamentos incorrectos dos cidadãos, que passam uma tarde de sábado ou domingo, dentro das viaturas, a passear e engarrafar o trânsito entre S. Pedro de Moel, Praia da Vieira e Pedrogão, aliados à sofreguidão construtora para implantar condomínios e casas junto ao mar, como sucede numa das arribas da Pedra do Ouro, no concelho de Alcobaça, constituem exemplos gritantes de como a orla costeira tem sido maltratada.

Erros. Na Pedra do Ouro, a obra em causa está embargada, em consequência de uma providência cautelar interposta pela Quercus, que não percebe como é que se autorizou a construção, naquele local, de um condomínio privado de 6519 metros quadrados. Este caso pode ser visto, de resto, como uma excelente síntese da questão ambiental há um empreendedor que vê uma boa localização e uma óptima oportunidade de negócio; uma autarquia que autoriza o projecto e com ele arrecada mais uma oportuna receita municipal, e uma organização ambiental - mas que poderia ser uma associação de cidadãos - que contesta a obra e interpõe uma acção judicial.

"Eis a prova provada de que se não cruzarmos os braços, é sempre possível fazer qualquer coisa em prol da qualidade ambiental, uma vez que esse é um dos assuntos que diz respeito a todos nós", comenta Alexandre Freitas, natural de Leiria, estudante de Relações Internacionais, em Lisboa, quando instado pelo DN, junto à placa que anuncia o futuro condomínio privado, as "Varandas do Moinho", agora sem máquinas e apenas com o cimento à mostra.

Em todo o caso, faz questão em sublinhar que a sua opinião "está longe de ser a de um fundamentalista do ambiente. Apenas quero dizer que há decisões que não entendo, e esta é uma delas", acrescenta, apontando para a arriba onde se erguem os pilares e as estruturas da construção agora embargada.

Apesar dos riscos existentes, a costa está cheia de projectos e ideias, como o da Marina da Barra, em Ílhavo, obra que totaliza uma área de 58 hectares e um investimento de 150 milhões de euros, mas que, nem por isso, diminui o volume das vozes críticas à iniciativa.

O debate e as atitudes de cada um perante este tipo de casos geram, regra geral, posições extremadas, de difícil conciliação e de resultados imprevisíveis. Daí, que outras situações dramáticas, como a Barrinha de Esmoriz, alvo de 117 fontes de poluição diferentes, seja actualmente objecto de um acompanhamento interdisciplinar, para minorar os efeitos dessa acção, especialmente visível sempre que alguma das fábricas a montante decide lavar os tanques.

Cidadania. Aquela medida revela que a questão ambiental, como nos dizia um estudante de Engenharia, em Aveiro, "é uma luta de todos os cidadãos, não apenas dos especialistas, tantas vezes vistos como inimigos do empreendedorismo". Mas não só "se o mar e os construtores têm as costas largas, a verdade é que ainda hoje observamos em algumas praias corridas de moto4 nas dunas, dada a quase inexistência de fiscalização", disse ao DN, Abreu Gomes, professor do Ensino Secundário, entre a esplanada do "Farol" e o areal da Barra.

Mas se a erosão, que tanto tem atacado o distrito de Aveiro, desde Esmoriz e Torreira, a norte, até à Praia de Mira, a sul, carece de uma intervenção de fundo, dependente de uma decisão política, de acordo com as vozes dos autarcas e ambientalistas locais, o certo é que são, muitas vezes, esses mesmos autarcas que se mostram incapazes de resistir à pressão urbanística que sobre eles se exerce.

"A Carta Europeia do Litoral estipula que na costa deve construir-se em cunha, com esta virada para o mar; ora, em Portugal, constrói-se com a cunha virada para o interior", salienta Fátima Alves, do Departamento de Ambiente e Ordenamento da Universidade de Aveiro, destacando "a urbanização contínua e intensiva" de largas zonas, como a da Vagueira, "outrora um aglomerado piscatório e, hoje, um aglomerado urbano".

Genericamente, esse é o grande problema da costa portuguesa, aqui circunscrita à linha que desce de Aveiro até Peniche. Porém, como toda a regra, também esta tem as suas excepções. No Osso da Baleia, concelho de Pombal, o problema é de cidadania. Regularizados os acessos à praia, o que constitui um avanço significativo, agora são os utentes daquele espaço que não utilizam de forma adequada as estruturas existentes.

ilegalidades. Mas há a situação inversa. O presidente da câmara de Óbidos, Telmo Faria, denuncia, por exemplo, "o incumprimento do POOC (Plano de Ordenamento da Orla Costeira), visto que nada do que ele estipula foi, até agora, feito acessos à praia e os espaços para estacionamento". Por outro lado, acrescenta, "previu mal algumas situações, como as que têm a ver com as áreas dos concessionários e a sua responsabilidade na vigilância da área concessionada".

O autarca refere-se ao caso do proprietário que há vários anos está na praia do Rio Cortiço e que, à luz dos actuais regulamentos, é obrigado a reduzir a sua esplanada de 60 metros quadrados para 16 metros quadrados. "Esta determinação vai matar aquela estrutura", garante Telmo Faria.

A linha de costa da região Centro não enfrenta, segundo nos garantiram todos os autarcas que contactámos, quaisquer problemas com construções clandestinas que tenham de ser demolidas, à semelhança do que sucederá no Algarve. Mas há outros dramas. A Praia da Vieira, por exemplo, dificilmente escapa à imagem desfavorável de ser a foz de um rio altamente poluído, como é o Lis, para onde, regularmente, as suiniculturas da zona atiram os respectivos dejectos.

A Barrinha de Mira e a Lagoa de Óbidos, embora lidando com situações diversas, também aguardam por intervenções que resolvam os seus problemas, com a agravante de "os esgotos de Caldas da Rainha continuarem a ir para a Lagoa", como nos disse José António Silva, da Associação de Proprietários do Bom Sucesso.

Dificuldades. É em grande parte a pensar na urgente necessidade em resolver o problema da Lagoa de Óbidos e na resposta aos críticos dos empreendimentos feitos na Praia D´El Rey e aprovados para o Bom Sucesso, que Telmo Faria afirma que "temos que ser todos ambientalistas, uma vez que se os investimentos, hoje, não tiverem qualidade não serão economicamente rentáveis".

Bem vistas as coisas, no entanto, a questão está longe de ser fácil. A Barrinha de Mira, actualmente com algumas algas que tornam inviável a sua aprazível utilização, situa-se, paradoxalmente, paredes-meias com a mais antiga praia de bandeira azul do País Mira. O mesmo sucede com Água de Madeiros, Pedra do Ouro e com as dunas de Salir e S. Martinho do Porto, a que podemos juntar, ainda, a zona a sul da Figueira da Foz, designadamente a Leirosa e Costa de Lavos, onde, apesar dos esporões existentes, os problemas e as preocupações não acabam.

Por outras palavras, há locais como alguns dos que citámos anteriormente, onde o mar e as ondas (na Pedra do Ouro o bodyboard e o surf já são um must para os jovens das redondezas) são excelentes, o areal é amplo e convidativo, mas os efeitos da erosão, aliados à acção do homem, vêm criando duras dores de cabeça.

E neste contínuo e recíproco fluxo de aproximação do Homem ao mar e do mar ao Homem, começa a haver situações, como na Praia da Vieira e no Pedrógão, em que existem construções nas chamadas zonas dominiais. Isto é, edificações privadas em áreas de domínio público, uma vez que a lei estabelece uma distância de 50 metros entre a linha de água e o território, o qual é inteiramente público. "Mas se um dia as ondas invadirem essas habitações, a quem é que as pessoas vão pedir contas?", pergunta Fátima Alves, para quem a resposta é evidente "ao Estado, porque foi ele que autorizou as respectivas construções".

O mesmo se poderia perguntar acerca do modo como foram implantadas as casas na praia do Vale Furado, experiência essa que representa, a um outro nível, mais um exemplo de como se deveria ter evitado tanta anarquia.

Depois de viverem, diariamente, nas grandes cidades, em pequenos espaços e quase sempre encavalitadas umas nas outras, algumas pessoas - infelizmente, por enquanto, em grande número - parece quererem reproduzir essa estranha forma de vida estragando a qualidade dos seus preciosos tempos de lazer e contribuindo para a degradação ambiental.

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