Mapas de Portugal a 11 de Fevereiro

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Manuel Villaverde Cabral lembrou anteontem na RTP que o mapa dos contrastes entre o país do "sim" e o país do "não" remonta, afinal, aos tempos das guerras liberais, quando se produziu a primeira grande fractura sociológica do Portugal contemporâneo. De facto, é um lugar-comum dizer-se que a norte e no interior persiste uma sólida influência da Igreja, enquanto a sul e nos grandes centros urbanos se impôs uma matriz laica que tem dissolvido essa influência. Por isso, os resultados do referendo de domingo não deveriam oferecer nada de imprevisto, apenas o retrato de um país desenhado, nos seus contornos essenciais, há mais de 150 anos. Mas, curiosamente, não foi isso o que aconteceu.

Olhamos esse mapa supostamente estabelecido pela história como se o estivéssemos a ver pela primeira vez, procurando detectar nele uma inesperada evolução dos padrões socio-culturais e deixando-nos, até, surpreender por importantes sinais de mudança. Como se explica este aparente paradoxo? Talvez porque o mapa das clássicas divisões e contrastes nacionais não corresponde, a cada momento, às expectativas - positivas ou negativas - que projectamos sobre o país concreto onde vivemos. Ou porque, enfim, apesar das tais heranças históricas, encaramos este país como uma reserva potencial de sobressaltos e surpresas. O 11 de Fevereiro confirmou-o: apesar de previsíveis, segundo sociólogos, politólogos e especialistas das sondagens, os resultados do referendo acabaram efectivamente por desconcertar aqueles que se bateram dos dois lados da barricada.

O "não" acreditava corresponder ao sentimento da nação profunda e o "sim" temia a reacção hostil desse mesmo sentimento. Ambos estavam, porém, enganados. Nunca o "não" terá imaginado ficar tão aquém da legitimação popular da superioridade moral que ostensivamente reivindicou, nem o "sim" terá acreditado numa vitória tão concludente e expressiva. Não foi por acaso que Sócrates apostou numa dramatização do que estava em jogo. Ou que Marques Mendes, contrariando a neutralidade partidária prometida, arriscou envolver-se na campanha do "não". Os resultados deram razão a Sócrates e mostraram que ele estava de longe mais sintonizado com o conjunto do país do que o líder do PSD. Mas nem Sócrates nem Mendes, apesar dos seus contraditórios estados de alma, terão previsto uma tão ampla diferença de votação nos respectivos campos.

É óbvio que a memória do referendo anterior pesou muito nos cálculos e nas expectativas de ambos os lados. E que o fantasma da abstenção - embora menos ameaçador do que há oito anos - continuou a pairar sobre a leitura política dos resultados. Eram dois fortes factores de incerteza que adensavam a bruma sobre o resultado de 11 de Fevereiro. Mas a margem que acabou por separar o "sim" e o "não" retirou espaço para dúvidas (pelo menos para dúvidas honestas) e salvou até o instituto do referendo da sua morte anunciada. Não se pode é manter a ficção vinculativa acima dos 50%, a não ser que se introduza o voto obrigatório (o que, pessoalmente, me parece uma violência contra a liberdade e responsabilidade individual de cada eleitor).

A abstenção eleitoral é um cancro da democracia, mas será precipitado e perigoso generalizar todas as formas de que se reveste. Por muito que nos custe admitir, os exercícios de democracia directa são normalmente menos mobi- lizadores - se exceptuarmos, porventura, situações extremas de crise - do que as eleições para delegação de poderes num parlamento, num Presidente da República ou, eventualmente, numa autarquia. E embora o aborto seja uma relevante questão social, moral e de saúde pública, é indiscutível que apenas toca directamente uma minoria de cidadãos mais infor- mados, mais politizados ou mais movidos por convicções éticas ou religiosas. Isto não é decerto uma desculpa para o desinteresse, a indiferença, o egoísmo ou a pura e simples imaturidade cívica do eleitorado que se abstém de exprimir a sua opinião. Mas é a realidade - e uma realidade que se exprime com maior intensidade nos lugares onde a vivência da democracia se encontra mais condicionada pelo isolamento ou a insularidade.

Não por acaso, dos dez concelhos onde se verificaram as maiores percentagens de abstenção no referendo, seis são açorianos. Números elevadíssimos registaram-se também na Madeira e no Alentejo, curiosamente as duas regiões do país onde ocorreram a maioria das votações mais expressivas no "não" e no "sim", entre a influência comunista e o pastoreio da Igreja (associada intimamente ao caciquismo político regional). São contrastes quase extremos, caricaturais, nesse mapa de um Portugal que - apesar da fractura herdada das guerras liberais - se redescobriu finalmente mais laico do que religioso a 11 de Fevereiro.

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