Manuela esteve 864 dias no hospital sem estar doente. Manuel saiu, mas já demente

Há quem entre no hospital como doente e que passe a morador, por um ano, dois ou mais. A pandemia veio resolver algumas situações. Mas os técnicos receiam que tudo volte a ficar igual.
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Manuela morreu aos 83 anos no Hospital de São João, no Porto, em janeiro deste ano. Tinha dado entrada no serviço de urgência daquela unidade, em 2017, com várias patologias. Foi tratada, e quando já não precisava de cuidados médicos foi obrigada a ficar. Sem ninguém e sem meios, a única solução era ir para um lar. O serviço social pediu a sua integração num lar, a Segurança Social (SS) deferiu o pedido, mas Manuela esperou, esperou. Ao todo, 864 dias, até que o corpo não lhe deu mais tempo. Ela foi dos que conheceram o confinamento mesmo sem pandemia, e partiu sem respostas, sem a vaga que um dia chegou a ser aprovada.

Manuel tem hoje 85 anos. Tinha 82 quando entrou também na urgência do São João. Foi no mesmo ano que Manuela. Foi levado pelo INEM, a causa era uma hemorragia digestiva. Chegou acompanhado pela mulher, com

quem estava casado há muitos anos. Ela não se queixava de nada, mas, afinal, tinha várias patologias para tratar e já alguma demência. Os dois ficaram internados, foram tratados e estabilizaram, mas quando chegou a hora da alta médica, o serviço social não os podia deixar sair. Manuel e a mulher não tinham filhos, irmãos, afilhados, muito menos pais vivos. Ninguém para os cuidar.

A solução era também o encaminhamento para um lar que os recebesse aos dois. O pedido seguiu para a Segurança Social, que o aprovou, mas Manuel e a mulher não voltaram a ficar juntos. Ela morreu durante a espera, ele aguentou 660 dias no hospital. Foi o último doente nesta situação a sair do Hospital de São João. No dia 7 de maio, seguiu destino para um lar, mas demente. "Muito dependente e sem consciência de nada, quando poderia ter ido antes, quando ainda interagia com as pessoas. A ausência de respostas da Segurança Social e das instituições não é de agora e tem graves custos sociais e humanos para o doente. Se nada for feito, irá perdurar", afirma Alexandra Duarte, diretora do Serviço Social do Hospital de São João.

As diretoras dos mesmos serviços nos centros hospitalares Lisboa Norte e Lisboa Central corroboram a perspetiva e os receios da colega do Porto, esperando que o trabalho feito em dois meses de pandemia, em colaboração com a Segurança Social e a Santa Casa de Lisboa, "não desapareça". Alexandra Duarte reforça mesmo ser preciso que "as orientações e as medidas executadas sejam otimizadas", para que não haja mais doentes "ad aeternum nas enfermarias".

Os nomes dos dois são fictícios, mas os verdadeiros estão gravados na memória da equipa das técnicas que lutaram por eles. No caso de Manuela até ao fim, no de Manuel até ao destino que lhe era merecido. Para quem vive esta realidade diariamente no terreno estas são mais duas histórias de gente vulgar. Mas duas histórias que espelham uma sociedade onde ainda "a velhice não tem direito a dignidade" ou onde, simplesmente, "o envelhecimento ainda não é encarado como mais um ciclo da vida".

E, nesta fase, independentemente das condições que criaram ao longo da vida, das famílias que construíram, todos ficam mais frágeis, mas há sempre uns mais do que outros. E é para estes que as respostas ainda falham. Porquê? "Porque não há vontade política para resolver o problema, porque não há estratégias ou orçamentos que, de facto, olhem para esta franja da população como uma prioridade", argumentam.

Mais dinheiro deu mais vagas em lares

Mas o novo coronavírus trocou as voltas aos orçamentos. Em Portugal, fez mesmo que estes doentes fossem, finalmente, uma prioridade. E alguns conseguiram a vaga no lar ou o ingresso na rede de cuidados continuados que lhes estavam destinados.

Ao DN o Instituto da Segurança Social (ISS) respondeu que, "de 9 de março até 30 de abril, foram colocados 2846 doentes dos hospitais do SNS em unidades da Rede Nacional de Cuidados Continuados e Integrados (RNCCI) e 273 utentes em respostas sociais - ou seja, regresso a casa com apoio domiciliário ou a integração em lares ou em outras instituições", sublinhando que o grosso dos pedidos para intervenção social vêm das unidades das regiões "Norte e Lisboa e Vale do Tejo, com 91% dos pedidos".

Perante a realidade descrita pelas técnicas de Serviço Social, o DN questionou o ISS sobre a morosidade das soluções antes da pandemia. No entanto, ficámos sem resposta. Esta é dada por quem está no terreno. "Não era disponibilizado dinheiro para se contratualizar mais vagas em lares, porque apesar de a Segurança Social aprovar os processos e as idas para as instituições é preciso que estas tenham vagas disponíveis. E raramente têm porque estas já são insuficientes para as necessidades que existem. Agora houve dinheiro para a Segurança Social custear mais vagas, porque era necessário tirar de lá os doentes sociais, as camas eram precisas."

O ISS refere que "o contexto pandémico exigiu a adoção de medidas extraordinárias, como na efetivação das altas hospitalares, decorrentes do Plano de Contingência Covid-19".

Números atualizados semanalmente

O número de doentes que necessitam de intervenção social e que aguardam uma resposta em unidades hospitalares é atualizado semana a semana pelos serviços sociais e enviado para a Administração Central do Sistema de Saúde (ACSS) e para a SS. Aumenta e diminui conforme a resposta de que necessitam. A maioria tem como destino a integração em estrutura residencial para pessoas idosas (ERPI), mas também há lista de espera para outras instituições, para a RNCCI e para apoio domiciliário. "A pandemia agilizou as respostas, e alguns doentes conseguiram sair, mas nos últimos anos houve fases em que o número só aumentou", lembra uma das técnicas, admitindo ser "difícil sair do hospital e desligar desta realidade. É o nosso trabalho, mas a impotência para resolver algumas situações mata-nos aos bocadinhos".


Neste momento, nos quatro maiores hospitais do país - Centro Hospitalar Universitário de São João, Centro Hospitalar Universitário de Coimbra, Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte, que integra os hospitais de Santa Maria e Pulido Valente, e Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central, com seis polos, São José. Curry Cabral, Capuchos, Santa Marta, Dona Estefânia e Maternidade Alfredo da Costa - ainda há quase uma centena de doentes à espera de resposta da Segurança Social para ERPI ou para a RNCCI, de acordo com os números enviados ao DN.

A pandemia agilizou os processos. Em março e abril houve respostas, mas em maio voltou a abrandar. "Até agora no mês de maio só saiu um doente e ainda temos 27 à espera de respostas. Dois deles estão cá desde 2018", sublinha Alexandra Duarte.

Argentina Castilho, diretora do serviço social do CHULN, concorda que as respostas da Segurança Social começam a abrandar, mas, como diz, "não temos um problema tão acentuado quanto o do São João".

No início da pandemia tinham 15 doentes com altas proteladas há muito tempo, nesta semana já são apenas cinco. "Tivemos grande colaboração da Santa Casa e de outras instituições", argumenta.

Maria Augusta Dores, diretora do serviço do CHULC, confirma que também ficaram mais libertos dos doentes que estavam com alta protelada, mas graças à grande colaboração da Junta de Freguesia de Arroios e à Câmara Municipal de Lisboa.

Os números dados pelo ISS ao DN são globais, não sendo possível perceber quantos doentes tiveram resposta da Segurança Social ou da Santa Casa, no caso de Lisboa, ou de outras entidades. "Foi organizada uma equipa nacional liderada pelas coordenadoras nacionais da RNCCI, constituída por elementos da Saúde e da Segurança Social , em articulação com o setor social, que definiu circuitos e agilizou procedimentos que permitiram priorizar a resposta a utentes hospitalizados cuja alta carece de integração na RNCCI ou em resposta social, nomeadamente para ERPI, lar residencial ou serviço de apoio domiciliário", explica o ISS na resposta dada ao DN.

Sublinhando que o trabalho de articulação agora feito já estava em curso "através da criação, pelo ISS e pela ACSS, do Manual de Articulação - Saúde e Segurança Social para o Planeamento das Altas Hospitalares, publicado em 2015". Diz o ISS que, "sempre que existem pedidos de encaminhamento para respostas sociais, após avaliação conjunta das situações, a SS procede ao acompanhamento social no sentido de viabilizar resposta atempada e adequada".

Contudo, e para quem está no terreno, tais respostas não têm chegado no tempo adequado para o doente. Alexandra Duarte argumenta: "O manual é claro, mas nem sempre cumprido", e, na sua opinião, com uma agravante: "É omisso no prazo em que a Segurança Social tem de dar uma resposta ao doente. Daí os prazos de um, dois e mais anos nas respostas. E se quisermos otimizar os cuidados isto é essencial."

No início da pandemia, o serviço que dirige registava 43 doentes a aguardar resposta da Segurança Social, "a maioria idosos, de 70 e 80 anos". Nesta semana, o número desceu para 27. De janeiro até agora houve 16 saídas, quatro por óbito, um para lar privado, pago pela família, outro para lar privado, mas custeado pela SS. Segundo a técnica, "uma situação definida no manual de articulação e que deveria ser usada quando as instituições sem fins lucrativos não têm vagas para acolher os casos que vão surgindo, mas que raramente acontece". Depois, ainda há um outro doente que foi integrado na RNCCI e os restantes oito conseguiram vagas em residências.

À espera há 589 dias e há 578

Dos 27 doentes que estão no São João à espera de um destino, dois aguardam há mais de um ano. "Um está há 589 dias e tem indicação para ERPI, outro há 578 dias. São os mais antigos, e são tempos incomportáveis", sublinha Alexandra Duarte.

O último tem apenas 54 anos, sozinho, sem qualquer laço a outros familiares. "É uma situação conhecida da comunidade. Um homem que teve o seu emprego, a sua casa, mas que ficou sem nada, acabou por cair na rua, praticar a mendicidade na zona da Batalha, no Porto, até que veio parar ao hospital. Não tem idade para um lar, mas espera uma resposta para outro tipo de instituição."

O primeiro caso reporta a um homem de 79 anos, que já chegou ao hospital sinalizado pela própria Segurança Social. Foi tratado, mas não tem condições para regressar ao domicílio.

Santa Maria. De 15 doentes para cinco

Nos hospitais da capital, como por exemplo no Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Norte, no início do ano havia 15 doentes a aguardar resposta da Segurança Social, "o mais antigo estava cá desde março de 2019. Os mais recentes tinham entrado em novembro, mas já saíram", confirmou ao DN Argentina Castilho. Nesta semana, o seu serviço lida apenas com a situação de cinco doentes, que já entraram com a pandemia.

A diretora do Serviço Social do Centro Hospitalar Universitário de Lisboa Central (CHULC) admitiu também ao DN que, embora continuem a existir doentes com altas proteladas, as respostas dadas nos últimos meses foram muito mais céleres, reduzindo este número. De acordo com a técnica, àquele serviço chegavam "semanalmente cerca de 30 doentes com necessidade de intervenção social, e cuja alta clínica não coincidia com a alta social. Durante a pandemia este número passou para cinco a sete doentes".

Em pouco tempo o mapa dos doentes protelados passou para 15. Destes, dois estão a ser encaminhados para lares privados, outros dois aguardam decisão do tribunal, não houve entendimento com as famílias e os casos foram levados ao Ministério Público, um teve alta clínica há 132 dias, outro há 118, mas não podem regressar a casa.

Em Coimbra a realidade não é diferente. Em resposta ao DN, a diretora do Serviço Social do CHUC confirma que têm apenas uma situação que espera há dois anos resposta da Segurança Social - uma senhora, com elevado grau de dependência, referenciada para a RNCCI. Há mais "dois doentes à espera de resposta para uma instituição do foro da psiquiatria", mas nesta semana houve um doente que saiu para uma ERPI.

Isabel Ventura refere que as respostas mais difíceis de conseguir são as que pedem integração em residências. Neste momento, têm duas situações no CHUC, um dos casos a ser tratado com a Embaixada de França por ser cidadão francês, o outro foi submetido à Segurança Social por falta de apoio familiar.

Antes da pandemia, "havia 64 doentes referenciados pelo CHUC, 23 dos quais já colocados, e 12 referenciados pelo Hospital dos Covões, dois já colocados.

As respostas ainda não são suficientes, ao DN o ISS garante continuar a trabalhar para "reforçar o alargamento de acordos de cooperação, com vista à criação de maior número de vagas sociais, a par também, em conjunto com a Saúde, do reforço do número de lugares em unidades de internamento da RNCCI".

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