Manuel Sobrinho Simões: "As doenças dão muito mais votos e dinheiro do que a Saúde"

A Responsabilidade Social da Ciência é o tema a debate no ciclo de encontros "Desafios da Ciência na Sociedade Contemporânea", organizado pelo Instituto de Altos Estudos da Academia das Ciências de Lisboa. A iniciativa com a presença de Manuel Sobrinho Simões, patologista, investigador e docente, Prémio Pessoa em 2002, decorre online, via Zoom, amanhã (18h00). Em entrevista, o conferencista detalha algumas das reflexões que leva ao encontro.
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Vai centrar a sua intervenção na conferência "Desafios da Ciência na Sociedade Contemporânea" na questão da Responsabilidade Social na Ciência. A expressão "responsabilidade social" é hoje comummente associada a organizações e ao seu comprometimento para com os trabalhadores e consumidores. No caso vertente, o das ciências, podemos corresponder essa responsabilidade a termos como condução da investigação, comunicação, integridade, respeito e transparência?
Estou de acordo com a descrição que faz da responsabilidade social "das" ciências. Para além da identificação de pontos cruciais, como a condução da investigação, a comunicação, a transparência e a integridade, aprecio particularmente a referência às ciências na medida em que as Humanidades deverão desempenhar um papel cada vez mais importante num mundo dominado pelo desenvolvimento tecnológico, a la ciência "pura e dura". É crucial recuperar o valor acrescentado das humanidades enquanto parceiro da Ciência em termos de educação e formação, inovação social, transição digital, inteligência artificial, economia, entre outras dimensões. E também é fundamental deixar de centrar o foco, só, no "porquê?". Vale a pena reforçar as questões "como?" e "para quê?", nunca esquecendo a "base", a qualidade dos conhecimentos.

Em concreto, vai abordar a questão da responsabilidade social nas ciências da saúde. Tendo de eleger os temas centrais a esta questão quais são os que elenca?
Começarei por abordar a questão da Saúde enquanto quase sinónimo de bem-estar em termos individuais, familiares, comunitários, entre outros, com uma fortíssima aposta na prevenção desde o nascimento e até antes, durante a gravidez. Entretanto, o problema das doenças - correspondem a três diferentes realidades: disease, illness e sickness - suscita uma abordagem muito diferente de caso para caso, em grande parte porque as doenças dão muito mais votos e dinheiro do que a Saúde.

A responsabilidade social é partilhada pelo indivíduo e pelas organizações desde a família e a creche, até ao Ministério da Saúde e ao Governo. O grande objetivo é a manutenção da Saúde desde o nascimento até a uma morte tão tranquila quanto possível, passando por uma vida pessoal e social equilibrada e um envelhecimento cuidadoso, graças à educação, à literacia e ao bom senso - e, acrescente-se, sorte. Subjacente à consciência da importância do tandem conhecer/compreender, regressamos às questões do "como?" e "para quê?" para enfatizar que é tão decisivo optar por atuar como por não atuar.

Olhamos para a ciência e tecnologia para aí encontrarmos a panaceia, capaz de reparar todos os danos (humanos, ambientais, etc.), num futuro a que aspiramos esteja próximo. Um dos pontos que levará à conferência prende-se com a relação das ciências da saúde face à aspiração humana a uma quase-imortalidade. Não estaremos a pedir em demasia às ciências da saúde? Que estas, de certa forma, "reparem" o comportamento lesivo para connosco e para com o planeta?
Penso que pedimos soluções quase-mágicas, em demasia, à medicina, à enfermagem, à fisioterapia. Somos, em Portugal, campeões do consumo de medicamentos e de exames complementares, nomeadamente estudos imagiológicos - adoramos as TAC e os PET. Temos a mania do cê maiúsculo - Curar - quando mais determinante são os cês de Controlar e, sobretudo, de Cuidar, associados à manutenção da saúde e à prevenção das doenças.

Voltando à aspiração humana de corrigir os erros que causam doenças com ciência e tecnologia, criou-se a ideia que "as coisas" podem ser resolvidas, e resolvem temporariamente, doenças graves - geralmente em pessoas com muito dinheiro -, mas não nos levarão à imortalidade. O mesmo se diga acerca do melhoramento humano à custa da "edição genética" (correção de mutações genéticas herdadas dos pais), por limitações de ordem prática e, para mim, eticamente inaceitável.

Sem querer chover no molhado, vale a pena chamar a atenção para dois aspetos fundamentais: a evolução da saúde/doença depende, na grande maioria das pessoas, muito mais de fatores ambientais, como o estilo de vida, alimentação, microbioma, entre outros, do que de fatores genéticos. Ponto dois, estamos a proporcionar uma espécie de sucesso-envenenado à medida que continuamos a esticar a longevidade sem atender aos problemas criados por comorbilidades associadas à sobrevida de pessoas - muito - envelhecidas e cada vez mais doentes, graças ao desenvolvimento científico e tecnológico.

Em 2019, numa entrevista ao Diário de Notícias abordou questões como o esgotamento das relações interpessoais [crianças não sabem brincar, "robotizamos" o quotidiano], a pressão sobre os ecossistemas, o individualismo, o consumo desenfreado, as doenças degenerativas. Face aos temas atrás expostos, olha para as ciências da saúde e deixa uma pergunta, "haverá saída"? Conjugando o verbo noutro tempo, há saída e que papel têm as ciências da saúde neste contexto?
Confesso que não sei quais serão as possíveis saídas para escapar a um futuro desastre ecológico. Faço um parêntesis para assinalar o falecimento, em 2022, de dois cientistas geniais que abordaram este assunto - Jim Lovelock [James Lovelock] e Bruno Latour. Por caminhos diferentes ambos contribuíram para clarificar as relações entre Natureza, Humanidade e Cultura e substanciaram, entre outros projetos, a hipótese chamada Gaia, a ideia de que a Terra é um organismo vivo capaz de se autorregular, se não dermos cabo de tudo. Seja qual for a saída do tal desastre, e se for possível, passará necessariamente por uma saída política e internacional. Estou convencido de que as ciências da saúde contribuirão pouco em termos globais, para além de soluções pontuais, nomeadamente pandemias e outras doenças infeciosas emergentes (vacinas, terapias), doenças respiratórias e de outros órgãos secundárias a alterações climáticas muito graves (seca extrema, incêndios/fumo), limitações nutricionais, entre outros. Mesmo em relação a estas últimas doenças/ocorrências, a capacidade das ciências da saúde serão diminutas em comparação com os desafios colocados aos ecossistemas a nível mundial ("a Terra").

De entre os muitos temas que detêm a sua atenção há três que, confessou anteriormente, o preocupam de sobremaneira: a pobreza, a longevidade e o trabalho. Que cumplicidade encontramos entre os três vértices deste triângulo e porque os elege como prioritários?
Reconheço que não é fácil ligar o "excesso" de pobreza e o "excesso" de longevidade com a "escassez" de trabalho, enquanto vértices de um triângulo, mas penso que existe uma base comum. A sociedade portuguesa está cada vez mais assimétrica, com crescentes níveis de pobreza. Isto acontece num país ocidental muito periférico com algumas especificações geográficas, climáticas, religiosas, associadas a uma burocracia asfixiante numa sociedade deslassada.
O aumento enorme de longevidade da população nestas condições tem sido um desafio dificílimo e repercute-se de uma forma muito grave em habitações com deficiente salubridade e em parte dos lares, com acesso limitado de muitos cidadãos à Medicina Geral e Familiar, e o recurso ilimitado a urgências hospitalares.
Estes "excessos" de pobreza e de longevidade ocorrem, e continuarão a ocorrer, numa sociedade cada vez mais deslassada em que o papel social do fator trabalho é menos reconhecido. A perda "do" trabalho estende-se desde o trabalho braçal - este cada vez mais realizado por imigrantes - às profissões mais ou menos intelectuais, inseridas num sistema com baixa recompensa salarial, além de outros tipos de recompensa também enfraquecidos: carreiras desleixadas, sobrecarga de impostos, prestígio diminuído. E estas limitações ocorrem num contexto generalizado de informalidade/ corrupção que aumentam, e muito, a fragilidade da sociedade.

Atualmente, lidamos com um volume absurdo de dados. Se por um lado se revelam uma imensa ferramenta de apoio ao conhecimento, também sabemos quão perniciosa pode ser a sua utilização e manipulação. As ciências da saúde recorrem a esses dados. Acreditando que "a humanidade é inerentemente cruel", como afirmou em anteriores declarações à agência Lusa. não correm as ciências da saúde o risco de usar estes dados contra a própria humanidade? Como avaliar a sua qualidade?
A responsabilidade social da ciência está ligada, pelo menos, a quatro domínios do conhecimento: produção, controlo de qualidade, disseminação e aplicação. Nas ciências da saúde, como nas outras ciências, o paradigma da evolução concetual progrediu da ciência descritiva para a matematização e a ciência computacional acabando, nos dias de hoje, no big data, ciência baseada em quantidades imensas de dados.
Em 2002, quando recebeu o Nobel, Sydney Brenner afirmou: "we are drowning in a sea of data and starving for knowledge", e duas dezenas de anos depois, um outro Nobel, Paul Nurse, salientou: "data should be a mean to knowledge, not an end in themselves". Estas afirmações têm sido exponenciadas pelo desenvolvimento da transição digital e da inteligência artificial e, nas ciências da saúde, levaram à invenção da medicina de precisão. Não estou preocupado com a utilização do big data contra a humanidade, mas estou deveras preocupado se os protagonistas, os médicos, investigadores, entre outros, que não perceberem que acima da medicina de precisão existe a medicina personalizada. A questão é ainda mais candente quando progressivamente se tem posto em causa a qualidade dos dados, obrigando a institucionalização de políticas de controlo dessa qualidade.
Na conferência, daremos vários exemplos, a propósito da incidência, patogénese e mortalidade de infeção por Covid-19, alguns tipos de doenças degenerativas e doenças oncológicas, no sentido de procurar compreender as questões lidando com a incerteza e repudiando a fraude.


Siga a conferência aqui: https://videoconf-colibri.zoom.us/j/92374028924
ID da reunião: 923 7402 8924

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