Manuel Alegre: "O incêndio da Notre-Dame é a metáfora de uma certa desatenção"

A destruição de parte da catedral emocionou o poeta e fê-lo recordar os momentos em que a olhava no exílio e depois numa visita com Soares e Mitterrand. Considera que é um aviso para o descuido com a cultura e espera que Portugal perceba esse aviso.
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Manuel Alegre foi um dos muitos portugueses que acompanharam em direto o incêndio que devastou parte da Notre-Dame de Paris. Considera que o mundo assistiu emocionado às chamas da destruição, os franceses em primeiro lugar e, de seguida, os europeus, devido à ligação com a monumentalidade e o significado da catedral: "Emocionou-me, tal como a muitos portugueses que estiveram exilados em Paris, pois lembro-me de me sentar junto ao rio Sena, perto de uma livraria, e olhar para Notre-Dame. É uma imagem que fica para sempre na memória de uma pessoa."

Para o poeta existe outro apelo imediato, o que resulta da literatura: "Quem é que não se apaixonou pelo romance de Victor Hugo, Notre-Dame de Paris, pela Esmeralda e acompanhou o corcunda. A catedral parisiense faz parte do nosso imaginário, seja pela literatura, as imagens do cinema e até das histórias aos quadradinhos." Acrescenta: "Além da sua monumentalidade, pois não são só as pedras, a rosácea e os vitrais, contém uma enorme história. Nesse aspeto, é um símbolo de muitos períodos; de ter resistido a duas guerras mundiais, a revoluções, a ser atacada e ao mesmo tempo um local de abrigo para os pobres e mendigos em certos momentos da vida da capital francesa." Recorda-se da missa ao general De Gaulle e da investidura de outros presidentes: "É um símbolo da França e da Europa, católico e ao mesmo tempo laico, pois pertence a todos." Após o tempo do exílio, Manuel Alegre regressou a Paris e à catedral durante uma visita oficial de Mário Soares, tendo como anfitrião o presidente François Mitterrand: "Foi por altura das comemorações do bicentenário da Revolução Francesa e até visitámos uma parte nem sempre possível, a das masmorras. Recordo que já nessa altura se falava da necessidade de obras, mesmo que não se tenha feito grande coisa, apesar de se estar no período dos Grands Travaux do presidente, que queria deixar a sua marca no património."

O incêndio da Notre-Dame emocionou o mundo. Esperava esse sentimento geral?
Sim. Houve muitas catedrais que foram destruídas na II Guerra - a de Rennes e a de Estrasburgo, por exemplo -, e que foram reconstruídas. No caso da Notre-Dame de Paris, e apesar do que se perdeu, podemos ver nesta tragédia a metáfora dos tempos em que vivemos: há muita coisas a cair e bastantes valores virados do avesso. A própria França atravessa um mau momento, um tempo em que existe muito descuido devido ao grande desinvestimento na cultura e na proteção do património, e o mesmo acontece noutro países pelos responsáveis e pelos cidadãos. Foi um aviso, tanto que os espanhóis já mandaram verificar a instalação eletrónica dos seus museus e catedrais - espero que em Portugal se faça a mesma coisa. Mas o que mais me impressiona é o incêndio ter deflagrado e que não estivessem preparados meios de resposta imediata. Isso não aconteceria nas novas catedrais, os bancos e as sedes dos impérios financeiros, onde esses meios existem pela certa. Portanto, o incêndio é uma metáfora de uma certa desatenção.

Em Portugal há monumentos que deveriam ter uma atenção especial?
Sim, até porque são verdadeiros altares da nação: os mosteiros da Batalha, os Jerónimos, o de Alcobaça e o de Santa Cruz, em Coimbra, entre outros. Em Portugal há também um grande desinvestimento na cultura, dedica-se muito pouco dinheiro para a cultura e proteção ao património. Depois, as coisas perdem-se. Discutir a Europa exige pensar estas coisas também.


Os franceses uniram-se em torno da Notre-Dame. Só estas grandes tragédias é que podem alterar a história?
Às vezes para o bem, outras para o mal. Ao ver Notre-Dame a arder recordei outra situação mais antiga, que é mais traumática, o atentado às Torres Gémeas, onde morreu muita gente. A tragédia dessas torres teve consequências mais negativas, como a invasão do Iraque e a fundação do Daesh. Neste momento, sente-se uma unidade e solidariedade em torno da Notre-Dame de Paris, até da parte de gente com muito dinheiro e que nunca fez nada pela cultura, que está a fazer grandes doações - o que está a dar um debate por resultarem em isenções fiscais. Também há aproveitamento político - que acontece sempre nestes momentos - e creio que o presidente Macron vai tentar capitalizar em cima do que aconteceu. Só que estas reações não vão resolver todos os problemas de França. Aliás, o meu amigo Jaime Gama disse que a França é um laboratório da Europa e o modo como se resolverem as coisas no país indicará em muito o futuro do continente. Se a opção europeísta da França derrapar, ou a extrema-direita tomar conta do país, a Europa está definitivamente em perigo.

Macron e Marine Le Pen, entre outros líderes franceses, interromperam a campanha eleitoral para as europeias. Foi o correto?
Corresponde ao estado de espírito das pessoas. Notre-Dame de Paris é um grande símbolo para os franceses, sejam de direita ou de esquerda, seja a França republicana, a laica ou a católica. O que não quer dizer que daqui a poucos dias, após este momento de mágoa, não regressem as questões que estão por resolver.

Há semanas vimos imagens de vandalismo do Arco do Triunfo. A mesma destruição?
Temos de distinguir o que são movimentos genuínos que exprimem o mal-estar da opinião pública, porque o nível de vida em França baixou muito com a desindustrialização e as deslocalizações, com a emergência da China, da Índia, o renascer da Rússia e a nova posição da EUA em relação à Europa. Verifica-se a degradação das condições de vida em França, daí que haja um lado genuíno no protesto de pessoas que ganhavam e viviam acima da média europeia há uns anos e agora não. Além de que existem grupos organizados que se infiltram nestes movimentos de protesto e provocam esses distúrbios. Hoje sabemos que acabaram os apoios de fundações americanas à esquerda e à direita moderada e que é Steve Bannon quem apoia movimentos da extrema-direita e esquerda e fascizantes.

Estava em Paris no Maio de 68, quando os cidadãos também estavam zangados...
O Maio de 68 começou por ser uma festa e o general De Gaulle percebeu-o bem quando disse que as pessoas queria "participar", mesmo quem não tivesse nada para reivindicar, como os universitários de Grenoble que entraram em greve. Era uma festa e as pessoas abraçavam-se na rua, a partir de certa altura entraram os grupos organizados, os maoistas, e começou a degenerar. As forças ligadas ao Partido Comunista Francês tentaram travar, até porque ninguém queria o poder - era a imaginação ao poder - e, tal como agora poderá acontecer, o excesso de violência pode ter o efeito contrário. Na altura houve uma reação posterior, lembro-me de uma manifestação com o Malraux à frente, e a seguir De Gaulle teve uma vitória gigantesca nas legislativas.

Essa "festa" não tem comparação com a Paris assustada com protestos e atentados recentes?
Sim, mas essa realidade é geral na Europa e já temos disso aqui em Portugal. Estou preocupadíssimo com a greve dos camionistas - nem sei se é constitucional -, lembra-me as greves do Chile contra Allende. De repente aparece um sindicato de quem ninguém ouviu falar e há pessoas a dizer que vão paralisar o país. É um ataque à democracia e não estamos preparados nem do ponto de vista legislativo nem psicológico ou politicamente para dar resposta, independentemente das razões que lhes assistam ou que ninguém os tenha ouvido antes. Este período conturbado em França, repito, é uma metáfora que poderá unir os franceses, mesmo que dentro de dias reapareceram os coletes amarelos.

Porque o presidente Macron não tem a dimensão de De Gaulle?
Não, nem para lá caminha. Também se mistificou muito Macron quando apareceu com um movimento político estranho, e, mesmo que tenha vencido Marine Le Pen, não sei se existe nele muita consistência. Esse é o problema da Europa, o da falta de grandes líderes como Churchill, De Gaulle, Mitterrand ou Mário Soares, com uma visão além do pragmatismo.

Quando visitou a Catedral de Notre-Dame sentiu o peso de ser um símbolo religioso?
Miguel Torga tinha uma expressão curiosa: as igrejas do românico era construídas por que se queria, as do gótico eram para se querer - devido à monumentalidade. Há na Catedral de Notre-Dame uma marca de grandiosidade, de espiritualidade e de muito tempo ali acumulado, e isso sentia-se.

Notre-Dame de Paris tem sido uma inspiração literária e poética constante?
Sim, e o caso especial do escritor e poeta Victor Hugo, que com o seu romance esgotou tudo, demonstra-o bem. É difícil ultrapassar o trabalho de um extraordinário escritor e poeta, combatido depois pelos modernistas, mas que continua atual. Quem é que não leu ou viu de alguma forma?

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