Manuel Alegre espantado com a Escritaria

O poeta foi homenageado em Penafiel, cidade onde durante uma semana se celebra e debate a tempo inteiro a obra de um autor da literatura portuguesa e lançou o seu novo livro, Os Sonetos.
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Manuel Alegre estaria preparado para conversar sobre a obra na sessão da Escritaria, no entanto em vez de ser questionado sobre os livros e a vida o que se ouviu antes de mais foi o grupo Cantarias a interpretar alguns dos seus escritos. Os versos da Trova do Vento que Passa foram os primeiros a serem cantados em voz alta perante uma plateia de duas centenas de pessoas, sentadas sobre fardos de palha num anfiteatro inventado na Quinta da Aveleda em Penafiel.

Não era a primeira vez que lhe cantavam/declamavam os seus poemas durante esta 12.ª edição da Escritaria, desta vez dedicada a Manuel Alegre, pois como já o poeta referira uma jovem tinha-se abeirado dele antes e surpreendido ao cantar-lhe versos seus mesmo junto ao ouvido. A jovem, um dos vários integrantes do grupo de teatro que se movimenta pelo centro da cidade a recriar poemas e outras partes dos livros de Manuel Alegre, não surpreende apenas o autor, mas todos os que passam e são interpelados pelo que representam com vigor.

Pode dizer-se que a palavra escrita está espalhada por toda a cidade como já é hábito nestas homenagens de Penafiel a um escritor desde há uma dúzia de anos. Quem passeia pela cidade reencontra-se com outros dos homenageados em pinturas de paredes de anteriores edições ou nos bustos e frases que foram deixados. Também Alegre teve direito ao seu busto e a uma frase em que sintetiza a intenção da obra no Jardim dos Namorados, mesmo atrás da Biblioteca Municipal, onde foi inaugurada uma exposição biográfica e bibliográfica sobre o homenageado. Sobre a representação em aço recortado com as feições do poeta, Alegre só pôde comentar que era a primeira vez em que se revia numa obra destas, de tão parecido que estava. "Fiquei apreensivo quando disseram que íamos inaugurar um busto, até preocupado, mas neste reconheço-me", confessou.

Mas antes de chegar à manhã de sábado em que se inaugurou a exposição Manuel Alegre: a estrada de um peregrinante, houve a noite de sexta-feira e a entrevista feita pelo radialista Fernando Alves ao relento, acompanhada pelo Cantarias e por várias fogueiras espalhadas por um cenário onde um espigueiro gigante completava uma imagem que mais parecia de filme do que a realidade. E os muitos que queriam ouvir esse interrogatório inicial escutaram uma longa digressão de vida, os pormenores da arte da escrita e as suas motivações, os tempos do exílio, o exercício da política, entre temas vários.

Alegre, que é um adepto convicto do clube de futebol da Académica, não deixou de criticar logo ao início o quanto a sociedade do país está distante do que é importante: "Na televisão já só há espaço para se ouvir os vitorinos nemésios do futebol", comentadores da bola que preenchem demasiadas horas de programação e deixam de lado a cultura. Logo aí fez um agradecimento à organização da Escritaria, por dar anualmente espaço à poesia e à ficção nacional e, desde Penafiel, exportar para o resto do país e para o mundo uma parte da vida nacional que está a ser silenciada na comunicação social e descurada pela sociedade.

Ao comentar-se a fotografia sorridente do poeta no guia do evento em vez da reprodução do seu rosto habitualmente mais sisudo, Manuel Alegre justificou estar de acordo com a realidade que veio encontrar em Penafiel: "As pessoas são amáveis." Acrescentou que "não sorrio por sorrir nem o faço de propósito para a fotografia". Não deixou de aproveitar para revelar os seus sentimentos para com o evento e afirmar que mais do que homenagem a si, era o poeta que se sentia obrigado a homenagear a cidade que tratava com esta grandeza a literatura. Um agradecimento que repetiu cada vez que era surpreendido pelas iniciativas em que foi participando.

Nessa entrevista, a vida de Manuel Alegre foi passada em revista e nem evitou a situação política atual, ao comentar que a diminuição do peso eleitoral da direita era perigoso por que permitia que organizações populistas ou sem um ideário político democrático fossem ganhando espaço eleitoral. Nada que durante a Escritaria não tivesse visto acontecer na prática, como aconteceu ao ter conhecimento que o PAN tinha enviado ao autarca uma mensagem de repúdio por estar a homenagear Alegre, um defensor de manifestações culturais e prazeres que esse partido considera obrigatório serem proibidos.

Curiosamente, um autoritarismo contra o qual Manuel Alegre lutou durante metade da sua vida e de que em muito resulta a sua obra inicial. Por mais do que uma vez, o poeta fez questão de afirmar que a intervenção política tem o seu lugar nos primeiros livros quase a tempo inteiro e que a temática se vai alargando com o passar dos tempos após o 25 de Abril. Não renega o livro A Praça da Canção, que considera ser uma das suas produções que irão sobreviver-lhe, tal como o livro A Senhora das Tempestades. Deu como exemplo dessa sua abertura a novos temas e interesses um encontro que manteve numa das três escolas que visitou, onde, disse, "tive uma agradável surpresa ao ver que os alunos liam os meus livros mais recentes e não os livros míticos. As novas gerações querem outras perguntas, as do nosso tempo, e essa também tem sido uma preocupação minha".

A língua portuguesa foi uma constante nos seus discursos, como se verificou ao explicar a frase que escolheu para deixar registada em Penafiel: "É uma frase sobre a viagem que nunca acaba, a atlanticidade e uma homenagem à língua e a quem a fez após viagens por outros continentes." Referia-se, principalmente, a Camões, o "primeiro poeta europeu que vai ao encontro de outros povos, aquele que é um lusíada dentro de Os Lusíadas."

Entre os que foram evocados, esteve também o primeiro homenageado da Escritaria: "Urbano Tavares Rodrigues, que foi o primeiro a dar notícia o meu livro A Praça da Canção." Uma carreira que o professor José Ribeiro Ferreira analisou na apresentação do novo livro de Alegre, Os Sonetos, que inclui uma recolha desse género poético em toda a obra, num total de nove dezenas. "Há sonetos desde o primeiro livro, A Praça da Canção, o que demonstra a amplidão temática do autor, feita com alguma regularidade e resultado da personalidade inquieta e nunca contente com a situação em que vive", referiu, antes de se dedicar ao tema da "errância do português" que "é muito frequente na sua obra".

Entre os vários momentos desta 12ª Escritaria, que encerra este domingo com uma sessão sobre a obra que conta com a presença de Teresa Carvalho, Paulo Sucena e José Carlos de Vasconcelos, talvez um dos mais emocionais para Alegre tenha sido aquele em que se confrontou com a sua biografia na exposição da Biblioteca Municipal. Ao rever momentos documentados por versos, imagens, fotografias, entre outras formas de expressão, de uma vida com mais de oito décadas, o poeta não pôde evitar dizer que a mostra "ajudou-me a descobrir factos que já não tinha presente, textos que escrevi e de que me não lembrava" enquanto percorria, seguido por mais de uma centena de pessoas, o circuito exposto da sua vida.

No final da visita à exposição, Alegre fez questão de perguntar: "Não sei se têm consciência do trabalho que estão à fazer para defender e preservar a nossa literatura, que está a ser maltratada e precisa de estímulos como este?" Com o seu trabalho, continuou, "a Escritaria projeta-se além de Penafiel, cria uma aproximação entre os autores e os leitores, e faz com que se retirem os livros das estantes e se ganhem novos leitores e, quem sabe, autores."

O evento na biblioteca terminou com uma leitura de um texto de Manuel Alegre sobre a sua amizade com a poeta Sophia de Mello Breyner, interpretado pela Troupe de Palavras Vivas, um momento em que foi possível reviver mais um pedaço da biografia do homenageado. Situação semelhante à que num jardim próximo foi acontecendo junto de crianças que eram convidadas por dois atores, que interpretavam o navegador Bartolomeu Dias e o poeta Camões, a pescar palavras dentro de um recipiente e a compor frases que identificavam a obra de Manuel Alegre.

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