Manual para ser grande
Virtual: que existe potencialmente e não em ação
Dicionário Priberam
1-Não fiques de fora, se partilhas, logo existes. Junta-te à moda global do nutscapping ("testículos e paisagem", em tradução livre) e saca-os para fora, deixa que entrem na composição de uma foto no topo de uma montanha, numa praia com pôr do Sol; carrega nos filtros, depila-te, não deixes que os pelos contaminem a beleza do enquadramento, publica a foto e - porque não? - inicia uma nova tendência: nutfooding, deixando que a tua genitália paire sobre um prato de sushi de baleia ou de vieiras com trufas de diamante e vinagreta de gel para o cabelo e redução de suor de uma virgem famosa.
2-Se te contactaram é porque precisam de ti, fazes parte da população portuguesa - um terço - que envia sms enquanto conduz; não deixes para depois a mensagem que podes mandar agora, porque se não apareces deixas de importar, o chat chama por ti, a torrente de informação precisa do teu contributo, confirma que vais chegar daqui a meia hora, depois diz que só faltam cinco minutos, escreve "Estou a chegar" ou "Podes descer", porque a bolha cintilante e bonita que segue sempre contigo não pode rebentar, porque viver depressa, morrer jovem, deixar um bonito cadáver, talvez sair nas notícias, vale mais do que a assunção absurda, difícil de compreender, ainda que tão óbvia, de que podes morrer e matar alguém se, ao volante, simplesmente respondes à pergunta do Facebook: "Em que estás a pensar?"
3-Tudo começa em ti e propaga-se pela fibra ótica, as tuas palavras e fotos chegando a todo o lado à velocidade da luz. Não te deixes influenciar pelos que não entendem a urgência da tua missão, pelos que te corrigem a meio de uma conversa porque não largas o telefone inteligente - como tu és. Faz jus ao teu valor e assume-te, sem vergonha, como entusiasta do phubbing, essa nova arte de snobismo praticada por quem prefere o telefone e ignora a companhia. Tu és o centro, a origem, o Big Bang, és a filigrana de uma impressão digital singular, o universo existe por causa de ti, e tens um telefone que amplia a importância do que comeste ao pequeno-almoço, da frase mal citada do Einstein, dos teus testículos sobre a cabeça de um Buda na Tailândia.
4-Se te ligarem escrutina o número. Não precisas de atender, não deixes que a tua voz seja de fácil acesso. Mas responde imediatamente ao chamamento do barulhinho redondo do chat e demora-te a comentar, com toda a revolta, uma notícia falsa. Se encontrares alguém que te interessa desliza o dedo para a direita no Tinder, manda um inbox no Facebook, envia sms só a partir do segundo encontro, sexting a partir do terceiro e se, por algum acaso, encontrares alguém ao vivo, não peças o número de telefone, diz "Segue-me no Instagram", porque as redes sociais são a beleza da mulher de biquíni na praia, mas telefonar a alguém é o constrangimento da mulher em cuecas e sutiã no meio da rua.
5-Não te desvies, ocupa o passeio, mantém-te de cabeça baixa, os olhos na intermitência do ecrã, e impõe-te ao caminho dos outros. Tira uma dickpic e envia a alguém, não penses muito onde estão armazenadas todas as fotos, todos os comentários, todas as mensagens que trocaste - ferros-velhos invisíveis de gigabytes, torres de vídeos amadores do teu desempenho sexual com uma mulata em Fortaleza empilhados sobre vídeos da tua filha na festa da escola ou de gatinhos, de bebés, de quedas, uma megalópole que te eterniza, infinitos ecrãs nos quais passaste a ver o mundo; a banda a cantar no palco e tu a escolher o melhor plano, tentando postar o que captaste - "Aqui não há 3G?", contando, até ao fim do concerto, quantas pessoas fizeram like no vídeo que nem sequer viram. Documenta a tua existência a toda a hora, cria uma personagem, vive para exibir, estás em todo lado sem estar em lado algum.
6-Em maio, uma romena morreu eletrocutada, no topo de um comboio, quando tirava uma selfie. Em julho, uma mulher caiu de uma ponte, em Moscovo, enquanto tirava uma selfie. Em agosto, um espanhol morreu quando tentava fazer uma selfie durante uma largada de touros. Todos eles apareceram nas notícias, têm páginas online de elogio fúnebre, estarão para sempre na rede, inscritos na história. Tu és um ser humano único, um euPhone antropocêntrico, sabes perfeitamente que o Sol anda à volta da Terra e que a Terra gira em torno de ti. Em cada batimento cardíaco teu, em cada sms, e-mail, post, o cosmos expande-se mais um pouco e a luz do ecrã do teu amor eletrónico, o teu espelho, o lago de Narciso, resplandece em ti como um halo. Se tiveres de morrer para que todos conheçam a tua cara fica a saber que alguém irá escrever a tua hagiografia, e que o teu epitáfio será uma citação do Justin Bieber, que, na verdade, é capaz de ser do Oscar Wilde: "Ponho todo o meu génio na minha vida."