Em vésperas do clássico entre o FC Porto e o Benfica, marcado para sábado, Maniche, de 42 anos, fala ao DN da atualidade dos dois clubes, do contexto do jogo e recorda histórias vividas ao serviço de águias e dragões. Umas já conhecidas (contadas sobretudo no livro que lançou no final de 2018), outras nem por isso. A forma conflituosa como deixou o Benfica no final da época 2001-2002 ainda está bem presente nas suas memórias, e por isso, apesar de ter feito toda a sua formação no clube da Luz, assume sem rodeios que é portista de coração (apesar de ser sócio do Sporting), porque foi no Dragão que se tornou mundialmente conhecido com as conquistas celebradas nos tempos em que foi treinado por José Mourinho - "o verdadeiro pai não é aquele que nos faz, é aquele que nos cria", diz..O que espera do clássico deste sábado entre o FC Porto e o Benfica, dado o contexto do jogo? O Benfica vai jogar no Dragão com uma vantagem de sete pontos e em caso de vitória deixa o rival a 10... É um clássico e, independentemente da diferença pontual e da forma das duas equipas, são sempre jogos intensos e equilibrados. Agora, obviamente que este é um jogo que se torna decisivo para as contas do campeonato em caso de vitória do Benfica, pois passa a ter dez pontos de diferença. Mas se o FC Porto vencer, o campeonato está relançado, porque, na minha opinião, quatro pontos não é nada. Faltam muitos jogos e o Benfica pode tremer, porque a confiança pode abanar, pode haver uma quebra..Pela sua experiência, o facto de o FC Porto entrar pressionado pela diferença pontual pode mexer com o rendimento dos jogadores no clássico?Julgo que não. Nas grandes equipas os jogadores estão habituados a jogar sob pressão. Quando entram em campo estão sempre obrigados a ganhar, independentemente do adversário. Este jogo para o FC Porto é decisivo, têm de ganhar. O empate, em meu entender, não serve porque sete pontos é uma margem confortável para o Benfica. Pode perder pontos em alguns jogos, mas é difícil até porque em casa são muito fortes. Agora, se mexe ou não com os jogadores, é relativo. É capaz de existir alguma ansiedade, a ansiedade de ser obrigatório ganhar, e por vezes a vontade de fazer as coisas bem e depressa pode ter influência. Na época passada, por exemplo, o Benfica ganhou no Dragão em condições semelhantes, estava à frente na classificação, e antes do jogo ninguém acreditava. O FC Porto deve ter esse exemplo em mente e vai fazer tudo para ganhar..Ou seja, em seu entender se o Benfica ganhar podem já encomendar as faixas de campeão... Julgo que sim, fica praticamente tudo decidido..Quem são os jogadores mais influentes de um e de outro lado e quem pode decidir este clássico? Benfica e FC Porto têm jogadores que podem decidir individualmente um jogo, futebolistas com muita qualidade. Mas a história dos clássicos e dérbis está recheada de exemplos em que as partidas muitas vezes são definidas por jogadores que em princípio ninguém dava nada por eles. Às vezes nestes clássicos os grandes jogadores, por algum motivo, escondem-se. São jogos que podem ser decididos em pequenos detalhes, numa bola parada, num lance individual... e por vezes por aqueles jogadores que o mais comum dos adeptos não está à espera, e é quem marca o golo decisivo. Há uns anos ninguém acreditava que o Kelvin ia dar a vitória ao FC Porto frente ao Benfica, e foi ele quem resolveu esse jogo decisivo. No Benfica houve exemplos idênticos no passado. Agora é óbvio que existem jogadores que podemos considerar mais influentes. No FC Porto destaco o Soares, que anda a marcar em quase todos os jogos; no Benfica há o Vinícius, que se não faz golos faz passes. O Rafa também está num bom momento. Mas uma e outra equipa valem muito pelo seu conjunto..Sérgio Conceição tem condições para permanecer no FC Porto no final da época se perder com o Benfica e vir o título fugir-lhe? O que é que a sua intuição lhe diz? Acho que independentemente de ganhar ou não ao Benfica, de ser campeão ou não, o Sérgio Conceição vai deixar o FC Porto..Porque diz isso? Acho que neste momento há um desgaste enorme da parte do Sérgio Conceição e do FC Porto que me permite afirmar, com quase toda a certeza, que não vai ficar. É notório, têm surgido vários sinais. Ainda recentemente o Sérgio Conceição disse publicamente que não há união no clube. Isso é demonstrativo de que não há coesão. Depois houve aqueles episódios dos processos disciplinares levantados aos jogadores, a prova de que no próprio plantel não parece existir união. São situações que criam instabilidade no treinador e na estrutura do clube. Refiro-me à situação do Danilo no início da época, à festa de aniversário do Uribe e outros casos, como aquela dura do Sérgio Conceição ao Nakajima no final de um jogo com o Portimonense. Nota-se um desgaste no treinador e na própria estrutura. Estou convencido de que mesmo que o Sérgio ganhe o campeonato não existem condições para continuar. E no meu entender era bom para ambas as partes. Para o Sérgio para dar continuidade a uma brilhante carreira de treinador, e para o FC Porto dar início a uma nova estratégia e a uma nova filosofia..Jogou o clássico dos dois lados. Que jogos mais o marcaram? Foram vários, mas destaco um. Foi o meu primeiro clássico pelo FC Porto depois de ter saído do Benfica, o meu primeiro regresso ao Estádio da Luz com a camisola do rival. Ganhámos por 1-0 ao Benfica e eu fiz o passe para o golo do Deco. Fizemos um grande jogo, podíamos ter ganho por quatro ou cinco. Estava mentalizado para o ambiente que ia encontrar, que ia ser assobiado logo no aquecimento. No meu caso até porque no ano anterior tinha sido capitão do Benfica, e depois pela forma como se deu a minha saída atribulada. Lembro-me perfeitamente que antes do jogo o José Mourinho virou-se para mim e disse-me: "Não te preocupes. Eu vou entrar primeiro e os assobios vão todos para mim. Entras depois e levas só com os restos. Nem sequer os vais ouvir. Entra descontraído e faz aquilo que sabes." Foi o jogo que mais me marcou. São sempre jogos especiais. Mas este é o que tenho mais na memória por todo o envolvimento..Fez a sua formação no Benfica, afirmou-se no clube, chegou até a ser capitão, mas assume-se como portista. Eu fiz a minha formação toda no Benfica, tive grandes treinadores, destaco o Arnaldo Teixeira, o meu mentor quando era jovem, uma pessoa muito importante na minha carreira. Ajudou-me a crescer como jogador e homem, desviou-me muito provavelmente de maus caminhos, porque eu morava num bairro social. Mas sempre fui sócio do Sporting, desde os 2 anos, aliás sou o sócio 7879 do Sporting, por influência do meu pai, que me levava aos jogos desde miúdo. Recordo-me que o meu jogador preferido da altura era o Douglas, eram os tempos do Silas, do Figo, do Paulinho Cascavel. Mas obviamente que de coração o meu clube é o FC Porto, por tudo aquilo que eu passei naquela enorme casa. Tanto como jogador como pessoa. Temos de reconhecer quem nos faz bem. O FC Porto veio buscar-me e deu-me a mão num período muito complicado da minha carreira, tanto a nível profissional como pessoal. Acreditou em mim numa fase difícil e catapultou-me para o futebol europeu. Hoje sou reconhecido pelo que conquistei ao serviço do FC Porto. Ganhei todos os títulos que um jogador pode ambicionar. Sou portista de coração e penso que as pessoas compreendem as razões. Como eu costumo dizer, o verdadeiro pai não é aquele que nos faz, é aquele que nos cria..Naquela última época no Benfica em que foi afastado da equipa e treinou à parte, sem possibilidades de jogar, alguma vez pensou desistir? Não é fácil, por isso é que ainda hoje sou um crítico dos clubes que fazem isso aos jogadores. Quando um atleta não chega a acordo para renovar, a culpa é sempre nossa e depois colocam os adeptos contra nós e tentam desvalorizar-nos. Eu tinha uma proposta de contrato de renovação de cinco anos para assinar com o Benfica, mas obrigaram-me a mudar de empresário [de Paulo Barbosa para José Veiga] para assinar e eu não aceitei. E isso custou-me ficar um ano sem jogar. Confesso que houve momentos difíceis em que estive quase a atirar a toalha ao chão. Mas sou uma pessoa forte psicologicamente e tive dois ou três amigos que não me deixaram cair. É importante nestas alturas termos pessoas do nosso lado a dar-nos força. É muito complicado emocionalmente... vamos abaixo e estamos impedidos de fazer aquilo de que gostamos. Depois é termos contas para pagar no final do mês e só recebermos ao fim de dois, ao contrário dos nossos colegas, que recebiam a horas. Depois todas as manobras para me desvalorizarem como jogador para não impedirem que fosse para um grande clube. Mexeu muito comigo. Se não confiasse em mim próprio, nas minhas qualidades, tinha acabado com a minha carreira. Confesso que caíram muitas lágrimas e que cheguei a pensar em desistir..Continua sem perdoar Luís Filipe Vieira? Não é uma questão de perdoar. Não guardo rancor a ninguém. Tenho um amigo que me disse uma vez uma coisa que nunca mais esqueci: não temos de ter inimigos na vida, não nos faz bem, mas não devemos nunca esquecer as pessoas que nos querem fazer mal. Por isso jamais vou esquecer. Podiam ter acabado com a minha carreira, com o meu sonho. Foi uma situação injusta. Fiz a minha formação toda no Benfica, fui para o Alverca três anos, estive na primeira vez que o clube subiu de divisão, época em que tinha essa pessoa [Luís Filipe Vieira] como presidente. Tínhamos um bom relacionamento. Depois teve essa postura. Isto não é de um ser humano, de uma pessoa que tem filhos. Não é uma questão de perdoar, mas jamais vou esquecer o que ele [Luís Filipe Vieira] me fez e as represálias de não ter renovado por não ter aceitado mudar de empresário..Dizia-se na altura que o Benfica o castigou porque tinha informações de que já estava comprometido com o FC Porto... É mentira. Não havia nada entre mim e o FC Porto. Isso vem no seguimento daquilo que eu disse anteriormente, tentaram desvalorizar-me, fizeram o trabalho sujo com coisas passadas para a comunicação social, a dar a entender que eu não renovei porque já estava comprometido com outro clube. Colocaram os adeptos contra mim. Eu não tinha acordo com ninguém. Eu ia assinar o contrato de renovação com o Benfica, cheguei a estar com a caneta na mão e nem olhei para os números do salário. Quando ia assinar, ele [Luís Filipe Vieira] disse-me para esperar e que só assinava se mudasse para o empresário José Veiga. Ele disse que era quase um pai para mim e faz-me uma coisa daquelas. E eu até lhe respondi "imagina se fosses meu tio"....Depois chega ao FC Porto pela mão de José Mourinho... Devo recordar que quando se dá este momento de tensão com o Benfica, o José Mourinho estava a treinar a União de Leiria. Então como é que eu podia já estar comprometido com o FC Porto? Eu saí no final da época a custo zero e só nessa altura o FC Porto avançou para a minha contratação a pedido do José Mourinho, que nessa altura sim já era treinador do FC Porto. A minha contratação também foi um risco para o FC Porto, porque eu estava quase há um ano sem jogar e havia na altura uma enorme desconfiança sobre mim, até porque algumas contratações anteriores de jogadores que tinham vindo do Benfica não tinham resultado. A minha pré-época nesse ano era a oportunidade da minha vida, parecia que estava à experiência. E eu tinha de agarrar aquela oportunidade. Sabia que o Mourinho me conhecia dos tempos do Benfica, mas tinha de provar naquele mês todo o meu valor porque era a minha vida que estava em causa. Tive a felicidade de o José Mourinho me querer ir buscar. Como é que eu podia recusar uma oferta do FC Porto?.E viveu no Dragão os melhores momentos da sua carreira, certo? Campeonatos, uma Champions, uma Liga Europa... Foram, sem dúvida, os melhores momentos da minha carreira. Tive a felicidade de encontrar grandes jogadores, um treinador enorme [José Mourinho], a felicidade de na altura representar um FC Porto muito bem estruturado, muito bem organizado, bem pensado, um clube que sabia exatamente aquilo que queria. Depois construímos uma equipa unida, uma família, em que as qualidades de cada um vinham ao de cima naturalmente. Ganhamos cada vez mais confiança em nós e as coisas aconteceram de forma natural. Conquistámos títulos muito importantes para a história do FC Porto.Concorda que neste momento o Benfica internamente está à frente dos rivais? O Benfica foi buscar muito daquilo que o FC Porto era. As equipas para serem grandes têm de ter estruturas fortes. Quando se tem uma estrutura forte e organizada a todos os níveis, e pessoas competentes em todas as áreas, é meio caminho andado para o sucesso. Vou só dar dois exemplos do que era a estrutura do FC Porto na minha altura, pormenores que parecem coisas pequenas mas de enorme importância. Quando cheguei já tinha quatro ou cinco casas para escolher para não passar muito tempo no hotel e até me aconselharam cinco ou seis restaurantes para ir, mais identificados com o clube. O futebol hoje em dia é diferente, hoje os clubes são empresas. A marca de um clube é tão importante como os jogadores. Julgo que o FC Porto nesse aspeto foi ultrapassado pelo Benfica. O Benfica tem uma marca poderosa. O FC Porto escondia muito essa lacuna com as vitórias e os êxitos internacionais. A marca do FC Porto eram as suas vitórias, as conquistas da Champions, da Liga Europa, a Taça Intercontinental. O Benfica era mais em termos de marca. O FC Porto vive muito à base das conquistas; o Benfica da sua marca. Se o Benfica conseguir juntar à marca os êxitos europeus vai tornar-se um caso muito sério. Tal como o FC Porto se conseguisse juntar às suas conquistas esta questão da marca.