Mais literacia, prevenção e investimento. Os três desafios do sistema de saúde do futuro

Resolver os problemas deixados pela pandemia na atividade assistencial é a prioridade das autoridades, embora os especialistas ouvidos pelo DN não se mostrem confiantes em relação à sua concretização. "Nos confinamentos houve um abandono total das pessoas", aponta Tamara Milagre.
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O cenário negro na prestação de cuidados de saúde provocado pela crise sanitária é claro e conhecido de todos - em 2020, ficaram por realizar 500 mil rastreios oncológicos, 1,2 milhões de consultas e mais de 150 mil cirurgias. Mais do que olhar para o passado, os especialistas que participaram no webinar "Covid-19: É tempo de olhar em frente", promovido esta terça-feira pelo DN com apoio da AbbVie, concordam que é preciso pensar o futuro e começar, desde já, a implementar estratégias que permitam evitar danos gravosos à saúde dos portugueses. "Esta falta de rastreios e de consultas vai levar a, como costumo dizer, um tsunami de diagnósticos tardios", acredita Tamara Milagre, representante dos doentes com cancros hereditários. A presidente da Associação EVITA Portugal teme que muitas destas doenças oncológicas evitáveis se tornem, em alguns casos, fatais pelo atraso na sua identificação e no início dos tratamentos.

A preocupação, diz, ganha dimensão pelas características particulares do cancro hereditário, que normalmente surge em "idade mais precoce" e que é "bastante mais agressivo e rápido do que o cancro esporádico". Por essa razão, a recuperação das ações de rastreio deve ser uma prioridade das autoridades de saúde. Sobre a possibilidade de Portugal estar em risco de enfrentar uma nova pandemia, ligada às patologias que ficaram por diagnosticar e tratar ao longo dos últimos 14 meses, Ricardo Mexia admite ter uma "enorme preocupação" relativamente às consequências da covid-19 na saúde pública. Enquanto presidente da Associação Nacional de Médicos de Saúde Pública (ANMSP), defende uma maior atenção a áreas importantes como a oncológica, a cardiovascular, a obesidade e até a saúde mental. "Não sabemos ainda a magnitude desse agravamento", revela, reconhecendo, contudo, que a pausa na atividade assistencial impacta "o aumento da incidência destas doenças e o diagnóstico mais tardio" que dificultam uma atuação clínica eficaz. "Nos confinamentos houve um abandono total das pessoas", aponta Tamara Milagre.

Controlar estas ameaças passa, necessariamente, por uma maior aposta na prevenção, na literacia em saúde e num maior investimento, planeado e cuidado, na capacidade de resposta do Serviço Nacional de Saúde (SNS). "Gostava de dizer que vai tudo mudar e que vamos perceber que apostar na prevenção contribui não só para a melhoria da saúde das pessoas, mas também para a sustentabilidade do sistema", adianta Ricardo Mexia. No entanto, assinala, os sinais políticos "não são particularmente animadores", a começar desde logo na ausência da prevenção do conjunto de investimentos previstos no Plano de Recuperação e Resiliência (PRR). Especialista no tema da hepatite C, Guilherme Macedo, que foi recentemente eleito presidente da Organização Mundial de Gastrenterologia, lamenta que esta continue a ser uma área não prioritária para o país. "Seria perfeitamente possível resolver este problema em três ou quatro anos", diz. Em causa está o compromisso que Portugal assumiu com a Organização Mundial de Saúde (OMS) para a erradicação, até 2030, das doenças infeciosas, entre as quais a hepatite C.

Apesar de reconhecer que existe hoje uma maior sensibilização da população em geral para a doença e para os termos técnicos utilizados, fruto da pandemia, defende que continua a faltar implementar uma estratégia robusta de testagem em massa. E esta é, sublinha, uma das lições que ficam da resposta à covid-19. Responsável por um projeto de rastreio nos centros de saúde do Porto que testou 10 mil pessoas, Guilherme Macedo revela que existe 0,9% da população infetada com o vírus.

"É um número muito elevado", garante. Com base nestes valores, o perito estima que existam "entre 30 a 40 mil pessoas que precisam de ser tratadas e não sabem", um sinal que deve dar força à importância de rastrear estes doentes. Tendo em conta as capacidades técnicas do país, mas também as armas terapêuticas eficazes que tem à disposição, o responsável da OMG defende ser possível tornar Portugal num exemplo para a Europa na eliminação da hepatite C. "Temos de mostrar aos políticos e às pessoas que com o mesmo valor [200 milhões de euros investidos na prevenção do HIV] dividido em três ou quatro anos, conseguimos eliminar a hepatite C. Isto não é ficção, são contas que estão feitas e que são demonstráveis", afirma. Se Portugal se mantiver, como diz, na cauda da Europa no que respeita a este combate, "não resolveremos o problema antes de 2040 ou 2050" e aí será "tarde demais, com custo demais em vidas e em economia", remata.

Até ao final desta década, em 2030, a Comissão Europeia quer evitar a morte de três milhões de doentes oncológicos. Para isso, lançou, em fevereiro, o Plano Europeu de Combate ao Cancro com uma dotação orçamental de quatro mil milhões de euros que deve ser investida em três áreas - a prevenção, a deteção e o diagnóstico precoce e o tratamento. Na última semana, o secretário de Estado Adjunto da Saúde, António Lacerda Sales, garantiu numa intervenção pública que a versão nacional deste programa está já a ser estruturada para que Portugal possa contribuir para este esforço comunitário. "Esse plano é muito importante para unirmos forças para promover a equidade no acesso à melhor prevenção e aos melhores tratamentos existentes", assinala Tamara Milagre. Porém, acrescenta, "talvez fosse preciso infiltrarmos mais militares nos órgãos decisores das estratégias nacionais e europeias e na organização dos recursos existentes" que, diz, são muitas vezes desperdiçados.

Ainda assim, a presidente da EVITA acredita que mais do que "documentos muito bem arrumados nas gavetas", é preciso agir e envolver as associações que representam os doentes. "O problema do orçamento de saúde é que o período legislativo é curto e os louros ficam para o Governo que vem a seguir", critica, justificando que a prevenção se torna pouco atrativa para a ação política. Na oncologia como nas outras patologias, a tecnologia pode ser aliada na missão de recuperar o tempo perdido e, sobretudo, de evitar que as doenças surjam ou, no limite, que se tornem agudas. "Temos muitos dados [de saúde], mas se calhar temos pouca informação porque esses dados não são analisados", explica Ricardo Mexia. O presidente da ANMSP lembra o papel de soluções de inteligência artificial na identificação de padrões no imenso mar de dados existentes, mas também no aprofundamento da literacia em saúde, que se quer clara, acessível e cientificamente suportada.

A este propósito, Tamara Milagre lembra a criação da plataforma EVITA pela associação que lidera, com o objetivo de permitir que "qualquer pessoa preocupada com o seu risco para cancro" possa registar-se e receber aconselhamento profissional personalizado. "Vai aumentar a literacia em saúde, emitir alertas para a toma de medicação, para consultas, para ensaios clínicos e para ajudar as pessoas a tomarem decisões informadas", detalha. "Em vez de estarmos à espera do top down, e então nunca mais é sábado, decidimos criar o nosso consórcio". Além do apoio através da informação, esta plataforma permitirá recolher dados que possam ser colocados ao serviço da monitorização e da investigação e desenvolvimento (I&D) de novos medicamentos ou terapêuticas, confirma a responsável.

Para o médico de saúde pública Ricardo Mexia, a ação futura na gestão dos serviços de saúde deve ter como base as recomendações deixadas pela OMS sobre 19 áreas técnicas que os países devem robustecer para terem uma resposta eficaz a estes problemas. "Acredito que estas 19 áreas técnicas distribuídas por estes três eixos - prevenção, deteção e resposta - podem seguramente dar-nos um bom ponto de partida para aquilo que tem de ser melhorado nos mais diversos sistemas de saúde", defende.

O Webinar Covid-19: É tempo de olhar em frente é uma parceria Abbvie; DN e TSF

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