Mais de 300 réus e um 'bunker'. Mega julgamento da máfia arrancou em Itália
O julgamento contra o grupo mafioso e seus cúmplices - entre eles políticos, funcionários públicos, policiais e empresários - deve durar mais de dois anos, segundo estima a justiça italiana. Com 355 réus, mais de 900 testemunhas de acusação e 400 advogados, o julgamento também apresenta 58 testemunhas do interior da própria organização, algo sem precedentes, prontas para quebrar seu código de silêncio ("omertà") e expor os segredos há muito enterrados do clã.
Também por isso, foram proibidas as filmagens no interior do edifício especialmente transformado numa espécie de bunker, em pleno coração do território de 'Ndrangheta, na Calábria, a região mais pobre da Itália, onde o julgamento arranca esta quarta-feira: Como alvo, a família Mancuso e os seus colaboradores.
Durante uma recente audiência, só a leitura dos nomes dos réus levou mais de três horas. Entre eles está o chefe Luigi Mancuso, conhecido como "O Tio", que passou quase 20 anos na prisão antes de ir para a clandestinidade. E ainda dezenas de outros membros da organização, com apelidos que parecem saídos diretamente de Hollywood, como como "The Wolf" (IL Lupo, em italiano/O Lobo, em português), "Fatty" (Grasso/Gordo), "Sweetie (Dolcezza/Querido)", "Blondie (Bionda/Loirinha)", "Little Goat (Piccola capra/Pequena cabra)" e "The Wringer" (Strizzatore/O Espremedor).
O julgamento é uma demonstração de força para o estado italiano em pleno "quintal" da Ndrangheta, organização mafiosa que controla o tráfico de toneladas de cocaína que vão para a Europa.
A liderar o processo está o mais famoso procurador antimáfia de Itália, Nicola Gratteri, que vive sob escolta policial há mais de 30 anos.
Gratteri, um procurador de 62 anos também ele natural da Calábria, que jogou futebol em criança com muitos dos nomes que agora colocou atrás das grades, prometeu derrubar "esta asfixiante 'Ndrangheta, que realmente tira o fôlego e o coração das pessoas".
A dimensão deste julgamento só tem paralelo no primeiro "megajulgamento" do género, em 1986-1987, em Palermo, então contra a Cosa Nostra da Sicília e a sua enorme teia que abrangia várias famílias.
Esse julgamento lendário viu 338 pessoas serem condenadas. E os promotores envolvidos, Giovanni Falcone e Paolo Borsellino, acabaram posteriormente assassinados pela máfia.
O julgamento que arrancou esta quarta-feira (13) tem um alvo mais limitado, apontando concretamente a uma das (estimadas) centenas de famílias Ndrangheta cujos tentáculos se espalharam pelo mundo.
Ainda assim, a sua importância vai bem para lá da sua dimensão, uma vez que inclui também figuras importantes da sociedade italiana, como advogados, políticos, administradores públicos e empresários que ajudam a Ndrangheta a operar, sublinha Federico Varese, professor de criminologia da Universidade de Oxford.
"Isso mostra que existe uma sociedade, fora da organização criminosa, que está a cooperar e a conspirar com ela", disse Varese à AFP. "Obviamente, é chocante que haja um grupo criminoso tão enraizado no território que leve centenas de pessoas a acabar em tribunal", acrescenta Varese. "Este julgamento mostra como a Ndrangheta está profundamente enraizada na sociedade."
O número de acusados neste processo aumenta para mais de 400, incluindo os mais de 90 réus que optaram antes por julgamentos rápidos.
Entre eles está o ex-parlamentar Giancarlo Pittelli, renomado advogado de defesa, maçom e ex-senador do partido Forza Italia do ex-primeiro-ministro Silvio Berlusconi.
Pittelli nega as acusações de ter servido como intermediário entre a Ndrangheta e o mundo da política, bancos e outras instituições poderosas, incluindo os tribunais.
A maioria dos réus foi apanhada numa série de raides domiciliários efetuados durante uma madrugada de dezembro de 2019, que resultaram em prisões em toda a Itália, bem como na Alemanha, Suíça e Bulgária.
As alegações contra as centenas de réus incluem associação mafiosa, assassinato e tentativa de homicídio, tráfico de drogas, extorsão, agiotagem, divulgação de segredos oficiais, abuso de poder, posse de bens roubados e lavagem de dinheiro.
Entre os vários homicídios que estão em causa, alguns dos quais remontam a 1996, está o do desaparecimento de Filippo Gangitano, em 2002, assassinado pelo seu primo por causa da sua homossexualidade.
"Essas coisas não podem existir dentro da Ndrangheta", justificaram então os chefes da organização ao primo de Filippo, segundo o próprio, que agora é uma das testemunhas sob proteção estatal.
O corpo de Gangitano foi enterrado num local onde uma estrada foi posteriormente construída, disse a testemunha, segundo informações da imprensa italiana.
Os megajulgamentos são controversos, dada a necessidade de dar a cada suspeito uma audiência justa. Os promotores argumentam que as extensas operações da Ndrangheta significam que os crimes não podem ser separados facilmente e processados de forma autónoma.
Mas o risco é alto para o procurador Gratteri. "Se não conseguir condenar muitas pessoas, será considerado um fracasso", disse à AFP um dos advogados de defesa, Nicola Lo Torto.
Mas, mesmo que obtenha sucesso neste julgamento, isso não significará o fim da Ndrangheta, assegura Federico Varese, da Universidade de Oxford.
"Podem colocá-los na prisão, mas se não se atacarem as causas essenciais pelas quais eles existem, eles acabarão sempre por se reproduzir."
A Ndrangheta, com raízes na região sul da Calábria, ultrapassou a famosa Cosa Nostra da Sicília para se tornar o grupo mafioso mais poderoso da Itália, com operações em todo o mundo.
- Origens -
A criminologista Anna Sergi, da Universidade de Essex, em Inglaterra, diz que o nome do grupo tem origem grega - a palavra "andranghateia" refere-se a uma "sociedade de homens de honra", e "andrangatho" significa "fazer ações militares".
O grupo só foi classificado como máfia pela lei italiana desde 2010, mas a sua atividade remonta pelo menos à unificação da Itália em 1861.
Ganhou destaque público nas décadas de 1980 e 1990 com uma série de sequestros em toda a Itália, e acredita-se que membros da Ndrangheta tenham sido responsáveis pelo sequestro do neto do magnata do petróleo John Paul Getty.
- Atividades principais -
O juiz Roberto Di Bella, que tem quase 30 anos de experiência nos métodos da máfia calabresa, descreve a Ndrangheta como "talvez a organização criminosa mais poderosa do mundo, mas certamente a mais difusa e presente nos cinco continentes".
As suas atividades incluem aquelas típicas de grupos do crime organizado - tráfico de drogas, extorsão, tráfico ilegal de lixos e lavagem de dinheiro.
Mas o que torna a 'Ndrangheta diferente de outros grupos mafiosos é a sua estrutura familiar - é baseada em laços de sangue, o que a torna "muito confiável, porque há poucos traidores", disse Di Bella à AFP.
Esta é uma das razões pelas quais os produtores de drogas colombianos ou mexicanos usaram a Ndrangheta para vender na Europa.
- Quanto vale ? -
As autoridades italianas estimam que haja cerca de 20.000 membros da Ndrangheta em todo o mundo, mas a sua verdadeira constituição e riqueza são difíceis de estabelecer.
Nicola Gratteri, um importante procurador na Calábria, que liderou a investigação que resultou neste julgamento, estima que o grupo gere uma faturação anual de mais de 50 mil milhões de euros, grande parte dele devido ao tráfico de cocaína.
- Massacre alemão -
Embora geralmente opere fora dos radares mediáticos, as atividades da Ndrangheta ganharam inesperada exposição com um massacre em frente a uma pizzaria na cidade alemã de Duisburg, em 2007.
Seis membros de um clã rival foram mortos como retaliação por uma rivalidade de longa data entre famílias da cidade de San Luca, na Calábria.
Dezesseis pessoas foram mortas em confrontos entre famílias no bastião da Ndrangheta desde os anos 1990.
- Alimento para porcos -
A 'Ndrangheta é "temida pela sua ferocidade e crueldade", segundo o procurador Gratteri, que viveu sob proteção policial nas últimas três décadas.
As histórias de violência perpetuada pelos membros tornaram-se lendas, mas uma particularmente horrível surgiu dias antes do julgamento desta semana.
Maria Chindamo, uma empresária de 42 anos da Calábria, teria sido assassinada e o seu corpo dado como alimentação a porcos em 2016, após se recusar a ceder as suas terras a um vizinho com ligações ao grupo mafioso.
A Ndrangheta, assim como outros grupos mafiosos, também foram responsabilizados pela morte de dezenas de crianças desde os anos 1950. Entre elas esteve Nicola "Coco" Campolongo, de três anos, que foi baleado na cabeça em 2014 por homens armados que ameaçavam o seu avô.
Nesse mesmo ano, em visita à Calábria, o Papa Francisco convocou os católicos a lutar contra a Ndrangheta, declarando o grupo como "excomungado".