Mais alto e mais forte, sempre mais perto

Há quem defenda que os Pearl Jam nasceram para estar em palco. Diante de registos como "Let"s Play Two", gravado a 20 e a 22 de agosto do ano passado, pleno de energia, torna-se difícil discordar da ideia.
Publicado a
Atualizado a

Se todas as comparações entre percursos musicais escondem (pelo menos) um aspeto odioso, que acabam por diminuir individualidades ou personalidades, há um lado utilitário nesta prática que não deve ser desprezado: o de ajudar a localizar as propostas de cantores ou grupos perante aqueles que estão menos próximos do meio musical, particularmente do universo rock. É nessa medida que, hoje, com confiança renovada depois da audição de Let's Play Two, mais um CD a juntar à longa lista de registos de palco dos Pearl Jam, se pode dizer sem exageros que eles ocuparam, sem atropelos, à força de talento, trabalho e persistência, os lugares que pertenceram - em tempos idos e nem por isso menos felizes - aos Led Zeppelin e aos The Who.

De um lado, na esteira de Plant, Page & Cª, há canções e desempenhos dos rapazes de Seattle que funcionam como despertadores (ou sinais de alarme) para uma geração inteira, que não se coíbe de acompanhar cada verso de Alive, de Black, de Better Man, de Go. Não importa sequer que, como os Zeppelin, os Pearl Jam se encarreguem de reinventar, de reciclar, cada um desses hinos quando atuam perante um público que continua, desde há mais de 25 anos, a colocá-los na linha da frente do rock decibélico e elétrico. Da banda de Pete Townshend e Roger Daltrey herdaram o gosto pela intervenção, pela transformação, pelo alertar das massas, pela indisponibilidade para o conformismo. Além de um claro ceticismo quanto às regras da indústria, cada vez mais formatada e uniforme.

[youtube:qM0zINtulhM]

As aventuras ao vivo dos Pearl Jam nunca se repetem - esta, que agora nos ocupa o espírito e nos compassa o ritmo cardíaco, foi gravada a 20 e 22 de agosto do ano passado no Wrigley Field, "casa" dos Chicago Cubs, equipa profissional de basebol. Há, de resto, um momento que não engana, quanto ao cenário: naquilo que se adivinha ser já um encore, Eddie Vedder, o vocalista dos Jam, nativo da cidade (embora tenha vivido sobretudo em San Diego, na Califórnia, e depois em Seattle, berço das grandes bandas do movimento grunge), volta a cantar All the Way, escrita para apoiar o clube.

[youtube:5ChbxMVgGV4]

O alinhamento é primoroso, não hesitando os músicos em assentar arraiais nos três primeiros álbuns (Ten, Vs. e Vitalogy, publicados entre 1991 e 1994), que ganham direito a mais de metade do alinhamento. O reconhecimento popular é imediato e percebe-se bem o prazer da multidão no reencontro com canções que, em vários casos, acompanharam e encorajaram o crescimento de cada um dos presentes. Mas não se presuma que as aventuras "fora da caixa" ficam pelo incentivo clubístico - um dos grandes momentos do concerto, com direito a um empolgante solo de órgão de Boom Gaspar, mora em Crazy Mary, original da desaparecida Victoria Williams, uma das princesas do movimento alternativo norte-americano, sem notícias pessoais frescas (leia-se: de novas canções) desde 2002. Mais adiante, para fecho, a festa chega à apropriação, obviamente tolerada, sabiamente assumida, de I've Got a Feeling, tema que, escrito por John Lennon e Paul McCartney, integra o rol que os Beatles mostraram ao mundo no disco Let It Be.

Filme para fãs

Em paralelo com o disco, há um filme (já com escala em Portugal) e que documenta esta dupla passagem dos Pearl Jam pelo estádio. É realizado por Danny Clinch, que começou por se dedicar à fotografia, trabalhando com Annie Leibovitz e publicando (entre muitos) na Vanity Fair, na Rolling Stone e na Spin. Clinch já tinha rodado com o grupo na digressão italiana de 2006 e assumido a realização do clip da canção Mind Your Manners. Os felizardos que tiverem acesso a esse documento poderão testemunhar o delírio das massas, que - 25 anos depois da estreia do conjunto - acolhem os Jam como se de uma estreia se tratasse.

[youtube:jWQYYavheUA]

Em boa verdade, mesmo com Eddie Vedder, Mike McCready, Stone Gossard e Jeff Ament - os quatro fundadores que se mantêm no elenco da banda - já na casa dos 50 anos, a eficácia dos Pearl Jam não mostra quaisquer sinais de erosão, antes pelo contrário: desde que McCready e Gossard passaram a repartir os solos, momentos de destaque elétrico sobre cadências rítmicas tantas vezes avassaladoras, fica a ideia de que o estímulo mútuo passou a servir para desempenhos cada vez mais acutilantes, em que se troca qualquer exibição de virtuosismo por um contagiante estilhaçar das fronteiras dos temas em que se aplicam nesse mano a mano, muito mais complementar e fraterno do que competitivo e bélico.

[youtube:_4BObpNQqNo]

Depois, haverá sempre a voz grave e "autoritária" de Vedder, uma das maiores figuras emergentes no rock desde a década de 1990. Talvez se possa confirmar que este entusiasta do direito da mulher à escolha (na questão do aborto), das respostas ao problema ecológico, do tratamento decente aos que aguardam nos "corredores da morte" a respetiva execução, da preocupação com os comportamentos face aos animais, este surfista militante e praticante, este apoiante (nas campanhas presidenciais) de Ralph Nader, John Kerry, Barack Obama e Bernie Sanders, este homem singular já não salta nem corre tanto como o vimos fazer no - extinto - Pavilhão de Cascais, onde demonstrou à saciedade o seu apreço pelo mosh. Mas nem por isso perdeu as faculdades que o colocam entre os grandes vocalistas do nosso tempo, superando em instinto aquilo que pode faltar-lhe na técnica.

[youtube:2uF4zYXzL_8]

Resumindo: Let's Play Two é uma festa em 17 andamentos, cada um deles um trunfo para nos (re)converter - como se fosse preciso - à causa rock. Só perdem mesmo aqueles que, por preguiça ou preconceito, decidirem ficar de fora. Quanto aos Pearl Jam, continua a valer a ideia de que estão mais fortes e devem continuar a ser ouvidos bem alto. Têm o público na mão? Claro que sim, até porque estão cada vez mais perto dos que os escutam e seguem - mas não os manipulam.

Let's Play Two

Pearl Jam

Ed. Republic

PVP: 15,99 euros

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt