"Não acredito em quem diga que está tudo mal nem acredito em quem diga que está tudo bem no sistema de proteção português, porque tal não corresponde à minha observação. Acredito, sim, que são necessárias melhorias incrementais no sistema." A afirmação é de José Barros, juiz no Tribunal de Bragança..Ao pedido de entrevista do DN começou por esclarecer não ser dos magistrados com mais experiência na área do direito de família e menores, mas já é conhecido como um dos que procuram soluções alternativas, mais consensuais, evitando julgamentos, e que defende a ideia de que uma criança precisa de figuras de referência e que estas não têm de substituir a família..Na semana em que o mundo assinalou os 30 anos da Convenção sobre os Direitos das Crianças, o juiz José Barros, de 39 anos, contou ao DN que o facto de ser filho de um juiz o terá influenciado a optar pelo Direito, que fez na Universidade Católica do Porto. Mas o gosto pelo Direito da Família e Menores só o descobriu durante a formação para juiz, no Centro de Estudos Judiciários..José Barros todos os fins de semana faz o caminho de Bragança até ao Porto, onde vive, trabalha mais de 11 horas por dia, porque, defende, até a matéria em causa não pode ter só uma leitura de bom senso ou experiencial, mas tem também de ser estudada. "Durante muito tempo pensou-se que era uma questão de bom senso, e não é. É também uma questão de estudo jurídico e psicológico.".Aqui fica a entrevista na íntegra..O que deve ser feito para que a sociedade portuguesa seja mais justa? Penso que é preciso termos presente uma ideia que, muitas vezes, é crucial no sucesso ou no insucesso do percurso de vida de uma criança, e que tem que ver com o facto de todas precisarem de adultos de referência em quem possam confiar de modo a desenvolverem as suas capacidades e se realizarem como pessoas. Quando os pais não podem constituir tais figuras de referência, que seja algum familiar, um amigo de família, uma família de acolhimento ou, pelo menos, um professor, um médico de família, um técnico de uma casa de acolhimento ou um técnico da Segurança Social, um magistrado. Para se ser a tal figura de referência não se tem necessariamente de substituir os pais, mas sim de se estar presente na vida da criança quando seja necessário orientá-la no seu caminho. Todos nós, adultos, temos figuras de referência na nossa história de vida que não se cingem aos nossos pais. As crianças também precisam dessas figuras na sua história de vida..Nesta semana assinalou-se os 30 anos da Convenção sobre os Direitos das Crianças, ainda há muitos direitos que são ignorados? O que me preocupa em matéria de direitos da criança é verificar que muitas crianças portuguesas ainda não têm garantidos os seus direitos básicos, como o direito à saúde, à higiene, à alimentação, a condições habitacionais adequadas e à educação. A relativa maioria dos processos de promoção e proteção de crianças e jovens em perigo que surgem nos tribunais têm que ver com a negligência parental ao nível dos cuidados primários das crianças, negligência essa que resulta, em partes iguais, de situações de falta de competências parentais dos progenitores e de carências económicas, sociais e culturais destes. Preocupa-me que as crianças portuguesas sejam ainda, em demasiados lares, expostas a situações de violência doméstica, o que traduz uma violação muito grave do seu direito à segurança e à saúde (física e psicológica). A tudo isto soma-se terem depois de passar por um processo-crime em que um dos pais é arguido e pode ser condenado numa pena de prisão efetiva, bem como pelo processo de divórcio e de regulação de exercício das responsabilidades parentais, tudo isto muito difícil de gerir emocionalmente para uma criança..Quais são os direitos mais vezes esquecidos?.Um dos mais importantes é o direito de não serem afastadas dos progenitores, direito esse que é posto em causa sempre que, no contexto de um regime de residência exclusiva da criança com um dos pais, o outro progenitor - seja por constituir família, seja por mudar de residência para local distante - se esquece do filho, afastando-se progressivamente deste e abandonando-o emocionalmente. Ou quando a criança, por iniciativa própria no sentido de se ver obrigada a tomar partido por um dos progenitores ou por influência negativa do progenitor que com a mesma reside, se afasta do progenitor não residente e rejeita convívios com este. Em todas as referidas situações, é o direito da criança a ter os dois progenitores na sua vida e a não ser separada de algum dos seus pais que está em jogo e que é esquecido por estes..É difícil fazer prevalecer os direitos de uma criança numa situação de divórcio dos pais? Uma percentagem elevadíssima (situada entre os 95% e os 99%) dos processos de regulação do exercício das responsabilidades parentais termina com a obtenção de um acordo dos progenitores homologado por sentença do tribunal. A dificuldade não consiste, por isso, em obter um consenso que satisfaça o superior interesse da criança, mas antes um acordo que, posteriormente, ambos os pais estejam realmente dispostos a cumprir. As crianças sofrem, sim, com o prolongamento do conflito por muitos processos subsequentes em que todas as questões (a escola que a criança deve frequentar, os convívios que devia ter tido nas férias e não teve, o dinheiro que o pai não pagou à mãe a título de alimentos, etc., etc..) são motivo para os pais discutirem..O que é preciso fazer nestes casos?.Para prevenir esta discussão sem fim, o Tribunal pode, durante o processo, encaminhar os pais para mediação familiar (com o consenso dos progenitores) ou para a intervenção da Segurança Social através da denominada audição técnica especializada (um conjunto de entrevistas com os pais conduzida por um técnico especializado e que visa obter o consenso dos progenitores quanto às questões a decidir). Tais soluções ajudam, de alguma forma, a prevenir, numa fase inicial após a separação parental, se transformem naqueles progenitores - felizmente, não a maioria - que andam 5 ou 10 anos em Tribunal e que, ao fim de algum tempo, já mostram todos os sinais de uma depressão relacionada com o conflito parental. Também nesse sentido de ajudar estes pais e estas crianças, é hoje possível fiscalizar o cumprimento dos acordos de regulação pela Segurança Social, bem como encaminhar os pais e a criança para o CAFAP (Centro de Apoio Familiar e Aconselhamento Parental), entidade que presta serviços de aconselhamento familiar e que, hoje em dia, ajuda muitas famílias nos casos em que é necessário melhorar o diálogo entre os pais ou reaproximar uma criança de um dos seus progenitores.."Há casos em que não se dispensa a intervenção e o diálogo do magistrado".Tem de ser o próprio magistrado a intervir, a falar com os progenitores e com as próprias crianças? Há casos em que não se dispensa minimamente um trabalho de audição paciente, esclarecimento (nomeadamente, sobre as questões legais) e de aconselhamento do próprio juiz e do magistrado do Ministério Público (este último representante do superior interesse da criança no processo) no sentido de serem alcançadas soluções que os pais e a criança entendam como justas e que, como tal, todos os intervenientes estejam dispostos a cumprir. Para que se tenha noção, nos casos mais difíceis, a audição dos pais e da criança, bem como a tentativa de consensualização de um acordo, pode demorar três-quatro horas ou até um tempo superior. Com efeito, para além da justiça das propostas do tribunal que é sempre determinante para que os respetivos destinatários cumpram, os acordos homologados por sentença, importa também a forma como as pessoas percecionam a dedicação do tribunal ao seu assunto e a forma como são ouvidas por este..Defende que em situação de separação os pais e os filhos devem ser ouvidos sobre as decisões a tomar em relação a eles?.A lei obriga a que sejam ouvidas as crianças quando possuem idade igual ou superior a 12 anos ou quando, possuindo idade inferior, revelem maturidade suficiente para compreender os assuntos discutidos no âmbito de um processo nesta área da Família e das Crianças. A audição é importante por duas razões. Em primeiro lugar, permite à criança expressar a vontade sobre o modo como vai viver a sua vida futura na sua relação com os pais, o que é algo de enorme importância para ela. Em segundo lugar, é também o único meio que o Tribunal dispõe de a conhecer e saber a sua vontade, vontade essa que é crucial na decisão a tomar. De acordo com a minha experiência, se é certo que nem sempre a vontade da criança coincide com o seu superior interesse, a verdade é que tal coincidência existe na grande maioria dos casos..Qual a experiência que tem tido no Tribunal de Bragança? No Tribunal de Bragança, temos optado por ouvir as crianças com mais de 7 anos de idade, uma vez que, por experiência, verificamos que crianças a partir dessas idades revelam capacidade para falar sobre os assuntos em causa. Evidentemente, não obrigamos a criança a falar se não quiser. É um direito dela falar ou não falar e ao tribunal só cabe respeitar tal opção. Não colocamos questões que envolvam uma escolha entre os progenitores ou que obriguem a criança a revelar diretamente a sua vontade ou a sentir que está a ter de tomar partido no conflito parental. Compreendemos a sua vontade através das respostas que vai dando. No final, perguntamos, por regra, se há algo que ela ainda não nos tenha dito e que queira dizer. Habitualmente, não prolongamos o diálogo por mais de 15 minutos, a não ser em casos especiais em que as crianças queiram falar de um problema que as perturbe. Isto dito, na medida em que as crianças já sabem pelos pais que vão a tribunal falar sobre as questões da residência e dos convívios, tendo vontade de que a decisão a tomar respeite os seus interesses, são as mesmas que nos revelam espontaneamente tal vontade..Considera que tal não constitui um trauma para a criança? Da minha experiência resulta que a esmagadora maioria das crianças quer ser ouvida pelo tribunal e que esse desejo supera significativamente os receios que tenham quanto a tal audição. Se tal audição se revelar especialmente sensível num determinado caso, o tribunal recorre naturalmente a especialistas (por exemplo, psicólogos que prestam assessoria externa), o que sucede, de resto, obrigatoriamente, nos processos-crime em sede de declarações para memória futura quando haja suspeitas de que a criança possa ter sido vítima de abuso sexual, as quais exigem, não só a presença de um psicólogo, mas um trabalho prévio deste com a criança e tempo disponibilizado pelo tribunal para que tal trabalho seja efetivamente realizado e possa efetivamente tranquilizar a criança aquando do seu depoimento. Nesses casos particularmente sensíveis, é importante que o juiz converse com o psicólogo, quer antes quer depois de este falar com a criança, no sentido de articular o modo como o depoimento será realizado..Hoje em dia a medida comum num caso de separação é a residência alternada e quando isso não defende o superior interesse da criança é difícil de gerir? A residência alternada maximiza o direito da criança a conviver com ambos os pais e evita conferir demasiado poder ao progenitor residente, removendo, em princípio, as questões - convívios e alimentos - que estão na origem da maioria dos incumprimentos de acordos e sentenças de regulação do exercício das responsabilidades parentais. Sendo a razão da não fixação de convívios óbvia (a criança passa tendencialmente o mesmo tempo com ambos os pais, só sendo, por regra, necessário acautelar as datas festivas), já a não fixação de alimentos depende de não haver grande disparidade de rendimentos dos progenitores, o que é o caso mais habitual nas famílias portuguesas. O facto de, por regra, não haver possibilidade de discussões sobre essas questões e a circunstância de os pais sentirem tal solução como igualitária também ajuda a pacificar o conflito. A discussão atual na Assembleia da República resulta da Resolução 2079 (2015) do Conselho da Europa, o qual instou Portugal a consagrar o princípio da preferência por esse regime. Previamente à discussão que agora corre no Parlamento, houve pareceres do Conselho Superior da Magistratura e da Procuradoria Geral da República e que vão no sentido de que tal preferência pela residência alternada não deve afastar a possibilidade de o Tribunal (mediante acordo dos pais ou por sentença) fixar um regime de residência exclusiva sempre que tal corresponda ao superior interesse da criança. É importante esta ressalva que também me parece bem traduzida na proposta de lei do partido do Governo..Mas quando há situações de negligência parental ou até de maus-tratos? Entendo que, para além dos casos evidentes de maus tratos, de negligência parental de um dos progenitores ou de violência doméstica, a residência alternada não é, em princípio, solução adequada se ambos os pais preferirem a residência exclusiva ou se a criança estiver distanciada emocionalmente de um dos progenitores e preferir, com razões justificadas, um regime de residência exclusiva ou quando ambos os pais vivam longe um do outro em termos que dificultem a vida deles e da criança. A ressalva contida nos pareceres do CSM e da PGR permite acautelar estas situações, pelo que, se for respeitada, a alteração legislativa é, por mim, bem-vinda..Há cada vez menos divórcios litigiosos? A lei de divórcio mudou radicalmente em 2008 ao assumir como princípio que ninguém deveria continuar casado contra a sua vontade e, consequentemente, deixar de exigir a verificação de culpa por parte do cônjuge que não pretendesse divorciar-se. Nesse sentido, tal princípio - que, podendo ser questionado por alguns, mostra-se, hoje em dia, em sintonia com a consciência social da maioria dos portugueses - eliminou grande parte do conflito nos processos de divórcio sem consentimento. Mesmo nos casos raros em que o processo chega a julgamento, o tribunal já só tem de verificar a ocorrência de alguma das situações objetivas de divórcio legalmente previstas, bastando, por exemplo, a separação de facto dos cônjuges pelo período de um ano. Creio que, para além da questão legal, há também mudanças culturais (nomeadamente, a atenuação do estigma social associado ao divórcio e, consequentemente, às pessoas divorciadas) que contribuíram nesse sentido. Por outro lado, a frequência elevada (mais alta em Portugal do que noutros países europeus) de divórcios nos últimos dez anos contribuiu naturalmente para um aumento de consciência social relativamente às questões conexas relacionadas com o exercício das responsabilidades parentais e, consequentemente, para os direitos das crianças e dos pais..Que casos já teve de decidir e que o marcaram mais? Lembro-me de muitos processos, mas vou contar um porque julgo importante alertar para uma situação. É o caso de um pai com um filho portador de deficiência mental grave. Não falava, assumia comportamentos de risco, atravessava a rua de forma descontrolada, podendo ser atropelado, atirava pedras para as casas dos vizinhos ou para os carros que passavam, comportamentos que o progenitor não conseguia controlar ou evitar, apesar de ter uma relação de enorme afeto com a criança. Este pai soluçava enquanto aceitava a solução que o tribunal lhe propunha de acolhimento do filho numa instituição especializada para utentes com deficiência que, no entanto, e por falta de uma rede de casas de acolhimento para crianças com tais características, ficava situada a uma distância enorme da residência dos pais e também acolhia adultos. A segurança social aceitou financiar viagens, com alguma regularidade, do pai à instituição para ver a criança, mas marcou-me e entristeceu-me, pela dor do progenitor, e pelo facto de não haver possibilidade de acolhimento perto do local de residência da criança que lhe permitisse manter um contacto próximo com a família..Qual foi o resultado? A criança adaptou-se bem à instituição e a solução, lamentavelmente muito condicionada pelos poucos recursos existentes em Portugal, acabou por se revelar a mais acertada dentro das alternativas que existiam. Este caso serve para mostrar que ainda há muito para fazer em Portugal no apoio às crianças com deficiência e aos pais que as têm consigo. Para que sirva de comparação, em Inglaterra e nos Estados Unidos, existem equipas especializadas no âmbito do chamado respite care que vão, de urgência e a qualquer hora, a casa dos pais e que oferecem apoio especializado na contenção de tais crianças com deficiência (portadoras, por exemplo, de autismo ou de epilepsia) em momentos de agitação ou de crise, retirando-as, se necessário, por períodos de horas ou de poucos dias, de modo a que os progenitores possam ter, eles próprios, um tempo de recuperação e consigam manter os seus filhos consigo..A experiência é essencial na decisão de um juiz? A experiência é essencial para um juiz, mas só é "experiência" no sentido próprio do termo se, antes disso, houver preocupação em ouvir as pessoas, estudar cada caso e decidir bem. De outra forma, são só anos de serviço. O que a experiência nos dá é essencialmente o conhecimento das soluções que funcionam e daquelas que, por muito bem-intencionadas que sejam, não surtem efeito, bem como dos melhores procedimentos a adotar para se alcançar a decisão mais justa possível. E, nesse sentido, a experiência muda, de facto, a prática de um magistrado da mesma forma que muda, suponho, a prática de um professor ou de um médico..Já alguma vez pensou que gostaria de voltar atrás? Não seria verdadeiro se dissesse que, como magistrado, nunca cometi erros. Procuro é que eles ocorram da forma mais rara possível e, por isso, tento adotar os procedimentos que já referi no sentido de diminuir a margem de erro..Vamos agora a outros casos, por exemplo numa situação de abandono, um juiz deve ter em consideração as circunstâncias que levam uma progenitora ou progenitores a tomar esta atitude? Não falarei de nenhum caso em concreto, porque não posso nem devo fazê-lo, mas, no contexto de um processo-crime, qualquer que seja o ilícito em causa, a lei manda atender a todas as circunstâncias relevantes do caso (incluindo, pois, as circunstâncias externas relevantes à atuação do agente, bem como a motivação deste) no que se refere, não apenas à questão da condenação ou absolvição do arguido, mas também, em caso de condenação, à determinação da medida e da natureza da pena a aplicar. No contexto de um processo de promoção e proteção, tais circunstâncias são igualmente relevantes para efeitos de determinação do projeto de vida da criança e, consequentemente, da medida de proteção a aplicar. Daí que a resposta à questão tenha naturalmente de ser afirmativa.."Não há muitos casos de abandono físico, há outro tipo de abandono".Os tribunais ainda recebem muitos casos de abandono? Situações de abandono físico da criança são raras, embora ainda aconteçam em Portugal, como noutros países. Mais frequentes são as situações, também, por vezes, qualificadas como de "abandono" em termos juridicamente menos corretos e que se caracterizam por um manifesto desinteresse dos pais relativamente ao seu filho (por exemplo, quando, acolhido este numa casa de acolhimento, aqueles não o visitam, nem sequer o contactam por telefone). Ambas as situações, quando traduzam um comprometimento sério dos vínculos afetivos entre os pais e o filho, constituem, entre outras, causas autónomas de decretamento da adotabilidade da criança (ou seja, da confiança da criança para adoção)..Como se pode evitar estas situações? Esta questão coloca-se num plano anterior à existência de um processo nas CPCJ ou no tribunal, mas que é muito importante e, frequentes vezes, esquecida. É que muitas crianças em perigo não estão sinalizadas e, por isso, não estão a ser alvo de proteção no âmbito de um processo de proteção de crianças a correr na comissão de proteção ou no tribunal. Nos termos da lei, tal sinalização compete, em primeira linha, às entidades com competência em matéria de infância e juventude (escolas, hospitais, Segurança Social, polícia, ONG, etc.) que, como tal, têm o dever de estar atentas a toda e qualquer situação de perigo em que a criança possa encontrar-se e reportar tal situação às CPCJ ou ao tribunal. Isto dito, qualquer cidadão, perante uma violação grave dos direitos de uma criança que ponha em perigo a sua segurança, saúde, formação, educação ou desenvolvimento de que tenha conhecimento pode e deve fazer uma denúncia da situação..Na sua opinião, há apoios suficientes na sociedade portuguesa para que tal não aconteça? No âmbito dos processos de proteção de crianças e jovens em perigo em que às crianças é aplicada uma medida de apoio junto dos pais, estes podem, quando dele careçam, beneficiar de apoio económico, bem como de apoio no que respeita à melhoria das respetivas competências parentais (designadamente, por via dos CAFAP), podendo ainda as comissões de proteção e o tribunal interceder junto, por exemplo, do município no sentido de assegurar habitação social aos progenitores quando um dos perigos sinalizados seja a falta de condições habitacionais da residência em que a criança se encontra a viver..Mas o que falta assegurar? A meu ver falta assegurar apoios mais direcionados às crianças de famílias carenciadas que passem, por exemplo, pelo acompanhamento educativo absolutamente necessário nestes casos, tendo em vista assegurar o sucesso escolar desde tenra idade em contextos familiares em que os pais não possuem escolaridade, pelo apoio psicológico (que, no caso de algumas destas crianças, é necessário que seja mais frequente do que aquele disponibilizado pelo SNS) ou frequência de creches e de ATL (no sentido de realização de um trabalho de desenvolvimento das capacidades físicas e intelectuais das crianças, bem como de possibilitar aos pais terem as crianças em segurança quando estejam a trabalhar)..Fala de que tipo de apoios? Defendi num artigo recentemente publicado que tais apoios de que falei poderiam ser disponibilizados, mediante decisão das CPCJ ou dos tribunais, pelas casas de acolhimento que, muitas vezes, já prestam tais serviços às crianças institucionalizadas. Tal tenderia a aproveitar as estruturas já existentes na sociedade portuguesa e diminuir o risco de institucionalização. Tais serviços também podem e devem ser prestados pelas casas de acolhimento a crianças que, tendo estado institucionalizadas, voltem a integrar o agregado familiar de origem, porquanto também estas necessitam muitas vezes de tais apoios quando regressam a casa. Infelizmente, a lei dá a entender que as competências e as valências das casas de acolhimento só são exigíveis a estas no âmbito de uma medida de acolhimento residencial, o que, a meu ver, dificulta a utilização pelas CPCJ e tribunais de tais recursos existentes..Mais apoios ajudariam mais os pais? Há casos em que tais apoios podem, de facto, ajudar os pais (que o queiram e estejam dispostos a fazer os esforços necessários para isso) a manter as crianças consigo de forma que efetivamente assegure, não só a relação de vinculação própria da relação filial, mas também os cuidados de que qualquer criança necessita para se desenvolver como pessoa;, outros há em que, infelizmente, os pais, por muita ajuda que lhes seja disponibilizada, não estão dispostos ou não são capazes de fazer os esforços necessários para terem os seus filhos consigo. Daí que o diagnóstico pelo tribunal da vontade real e capacidade de cumprimento dos acordos de promoção e proteção por parte dos pais seja tão relevante.."Já tive de retirar crianças aos pais e enviá-las para uma instituição".Já teve de retirar crianças a pais e encaminhá-las para instituições? Já, várias vezes. O princípio legal que vigora nesta matéria é ainda o princípio da não separação dos pais de que já falei a propósito da separação conjugal e que, no âmbito da proteção de crianças, supõe que o acolhimento residencial seja encarado como medida limite quando não é viável aplicar outras medidas no meio natural de vida da criança (medida de apoio junto de outro familiar ou de não familiar que com a criança tenha uma relação de vinculação) nem a medida de acolhimento familiar..Qual é o motivo mais comum? Os casos mais típicos são aqueles que já referi de falta grave dos cuidados (de saúde, de higiene, de condições habitacionais, de educação, etc.) mais básicos e dos afetos de que as crianças carecem para poderem desenvolver-se de acordo com as suas capacidades, mas também são frequentes casos de adolescentes com problemas de comportamento (consumos de álcool e de estupefacientes, prática de factos qualificados como crime, absentismo escolar grave, indisciplina em ambiente familiar ou escolar)..Cada caso é caso? Cada caso é um caso, sem dúvida, e por isso é que, para além da audição presencial dos pais e da criança (quando deva ser ouvida), é tão importante o diálogo com o procurador, com o técnico da Segurança Social, com técnicos da CPCJ e outras pessoas relevantes (por exemplo, o médico de família da criança ou o diretor de turma)..As decisões têm o acordo dos pais? A esmagadora maioria das decisões (mesmo as que implicam o acolhimento residencial de uma criança) são obtidas por acordo com os pais (e com as crianças com mais de 12 anos). E a proposta que lhes é feita resulta desse diálogo prévio com o Ministério Público, a Segurança Social e outros intervenientes relevantes. Nesta área do direito da família e das crianças, importa que as pessoas tenham noção de que a atividade do juiz não é solitária. Isto dito, cada entidade envolvida no processo de decisão é independente no sentido de "pensar pela sua própria cabeça" e desempenhar um papel diferente. Por exemplo, a Segurança Social, nos relatórios sociais que produz deve recorrer a fontes de conhecimento que não apenas, por exemplo, as informações das casas de acolhimento; os tribunais devem recorrer a fontes de informações (por exemplo, junto da escola, junto da CPCJ quando tenha havido uma intervenção anterior dessa entidade, para além naturalmente das declarações dos pais e da criança e outros intervenientes relevantes) que não apenas os relatórios sociais que a Segurança Social lhes apresentam..Há técnicos da justiça e da área de ação social que defendem que a legislação portuguesa insiste muito na recuperação da família biológica e que por vezes se perde tempo no projeto de vida para uma criança. Concorda? A questão não é de solução legal, porquanto faz sentido que o decretamento da medida de confiança com vista à adoção seja uma medida-limite, mas sim, de compatibilização dos tempos da decisão com os tempos da criança. Frequentes vezes, é diagnosticada a impossibilidade de a criança estar com os pais, mas existe um familiar que surge como possibilidade aparentemente viável para que a criança seja acolhida junto ainda da família biológica, o que não permite concluir logo pela substituição do projeto de vida da criança (de um primeiro projeto visando a reintegração familiar com os pais ou com outros familiares para um segundo projeto visando a confiança para adoção).."Muitas vezes familiares da criança não podem assumir a responsabilidade de a acolher".Como se pode atenuar este tempo? Logo que venha a ser pensável a definição de um projeto de vida para a criança que passe pela sua adoção, por vezes, até no início do processo, o tribunal deve recolher o máximo de informações possível sobre os familiares e não familiares que com a criança tenham uma relação de vinculação e que se certifique junto destes - e de forma naturalmente crítica e ponderada - da real viabilidade ou não do acolhimento da criança pelos mesmos no âmbito das medidas de acolhimento junto de outro familiar ou de confiança a pessoa idónea. Tal "despiste" de outras soluções possíveis tem de ocorrer logo que se perspetive o projeto de vida de adoção e não em fase posterior (por exemplo, quando já em fase de julgamento, tendo em vista a aplicação da medida de confiança para adoção)..Há outras formas de resolver a situação que não seja encaminhar uma criança para uma instituição? Como família alargada ou família de acolhimento? A lei prevê essas possibilidades, privilegiando a primeira (apoio junto de outros familiares) e só mandando aplicar a segunda (acolhimento familiar) de forma subsidiária, ambas as medidas antes ainda da medida de acolhimento residencial. O problema, no âmbito da primeira (apoio junto de outros familiares) das medidas referidas, é que, muitas vezes, tais familiares, por razões muitas vezes compreensíveis (já terem de cuidar dos próprios filhos, não terem tempo disponível porque trabalham, etc.), não assumem tal responsabilidade, especialmente quando ela, sendo, em princípio temporária, corre o risco de se tornar tendencialmente definitiva (por via da regulação do exercício das responsabilidades parentais a favor de tal familiar) até aos 18 anos da criança nos casos em que os pais não conseguem ou não querem reunir as condições para o regresso do filho à sua companhia..Mas não há muito investimento no acolhimento familiar em Portugal. Do ponto de vista da intervenção protetora do Estado é preocupante o desinvestimento no acolhimento familiar ao longo dos últimos 10-15 anos, sabendo-se hoje - de acordo com um largo consenso científico - que tal medida - na impossibilidade da aplicação das medidas de apoio junto dos pais ou junto de familiares ou de pessoas idóneas próximas da criança - é, de longe, a mais indicada, sobretudo no caso de crianças até aos 12 anos de idade e que o acolhimento residencial deve ser reservado para crianças com necessidades terapêuticas (por exemplo, crianças com deficiência e adolescentes com problemas comportamentais, tais como a prática de factos qualificados como crime, consumos de álcool ou de estupefacientes). Para que se tenha noção, no âmbito das medidas de colocação (acolhimento familiar e acolhimento residencial) só 3% das crianças estão junto de famílias de acolhimento, estando as restantes 97% das crianças em instituições. Se a isso acrescentarmos que as instituições acolhem normalmente 20 a 30 crianças quando, de acordo com as melhores diretrizes, não deveriam acolher mais de dez, verificamos que esta é uma lacuna grave do sistema de proteção português..Considera que algo pode mudar? Este problema não é só do Estado português, mas também da sociedade, na medida em que soluções legislativas como a do acolhimento familiar carecem da adesão das famílias portuguesas. Está a decorrer uma campanha muito importante e de grande dimensão da Santa Casa da Misericórdia no sentido de obter candidaturas de famílias residentes no país a famílias de acolhimento e é crucial que as famílias portuguesas adiram maciçamente a tal campanha no sentido de ajudar as crianças mais vulneráveis que se encontram sob proteção do Estado.."Tribunal de Bragança tenta reduzir acolhimento em instituição".O Tribunal de Bragança tem feito a experiência de tornar o período de instituição menos longo alternando-o com idas a casa... Em que consiste esta experiência? No Tribunal de Bragança, temos, em alguns casos, aplicado soluções semelhantes em que, por exemplo, a criança passa o dia com os pais, indo dormir à Instituição e sendo, nesse contexto, realizado um trabalho intensivo de formação das competências parentais dos progenitores pela casa de acolhimento, ou em que outras crianças passam uma semana em casa dos pais e a semana seguinte na Instituição de forma alternada ou em que a criança passa uma semana por mês (nos meses sem férias, uma vez que já passa férias e fins de -semana com a mãe) em casa da progenitora, recebendo durante essa semana alguns cuidados de saúde e de higiene da parte da Instituição depois do fim das aulas e antes de ir para casa..Que resultados têm obtido? Os resultados têm sido positivos (algumas das crianças, depois de terem estado na casa de acolhimento a tempo parcial regressaram a casa no âmbito de uma medida de apoio junto dos pais e viram, posteriormente, o seu processo terminado por já não existir uma situação de perigo). Noutros casos, os resultados, não sendo tão "espetaculares", não deixam de constituir uma melhoria, na medida em que as crianças (estando mais tempo em casa, apesar de continuarem em acolhimento residencial) se mostram mais confortadas com a solução do acolhimento residencial, uma vez que este se tornou mais humano, diminuindo o afastamento dos pais, os quais, muitas vezes, por muitos problemas que apresentem, ainda constituem figuras de referência para os filhos..O que pretende mudar com esta medida? O que este tipo de soluções permite é atenuar os efeitos negativos da institucionalização prolongada (carência de afetos, falta de figuras de referência na sua vida, dificuldades ao nível do relacionamento afetivo e de constituição de ligações afetivas significativas) e simultaneamente permitir um trabalho mais eficaz (obrigatório por lei quando o projeto de vida da criança passe pela reintegração familiar) de trabalho das competências parentais dos pais (ou outros familiares) por parte das Instituições. No fundo, trata-se de intensificar o direito da criança em acolhimento residencial ao convívio com os seus pais (ou outros familiares), bem como permitir mais eficazmente a realização de um trabalho conjunto entre a instituição e os pais, trabalho esse necessário para a reintegração familiar da criança quando seja esse o projeto de vida definido. Claro está que esta solução não deverá ser aplicada em todos os casos de acolhimento residencial (nomeadamente, nos casos em que não exista possibilidade sequer de convívios aos fins de semana ou nas férias), mas penso poder ser muito válida para um número significativo de casos..O processo de adoção em Portugal é moroso. Disto se queixam os candidatos e até os próprios técnicos. Como atenuar esta situação? Como resulta do relatório anual de atividades do Conselho Nacional de Adoção para o ano de 2017, o problema da morosidade do processo (em grande medida, administrativo e apenas numa fase final judicial) tem que ver com a compatibilização das preferências dos candidatos a pais adotivos com as crianças adotáveis (ou seja, sujeitas a medidas de confiança para adoção) existentes a cada momento no país. Muitos candidatos não conseguem adotar ao final de vários anos, porque estabelecem condições muitos restritivas (por exemplo, em termos de idade, género, etc.) que não vão ao encontro das características das crianças adotáveis existentes em cada momento. Normalmente, quando os candidatos a adotar são menos exigentes nas suas preferências (designadamente, quanto ao fator idade da criança, mas também quanto a outros fatores), o processo de adoção é bem mais célere, o que também beneficia enormemente as crianças mais dificilmente adotadas e que assim encontram pais que as adotem. Nesse sentido, este é um problema que passa, sobretudo, por uma mudança de mentalidade dos candidatos.."Lei tem de assegurar todas as fases previstas para a adoção".O processo não é muito burocrático? A lei tem de assegurar todas as fases previstas (de identificação dos candidatos ideais para a criança, de convívios supervisionados entre aqueles e esta, de pré-adoção e, posteriormente, de avaliação desses períodos com consequente proposta de adoção por parte da Segurança Social e respetivo decretamento, a pedido dos candidatos, pelo tribunal) de modo a garantir o superior interesse da criança adotável. Isto tanto mais assim é quando se sabe que, ainda assim, com tais cautelas, existem rejeições de crianças adotáveis pelos candidatos a pais adotivos nos períodos de transição (em que ocorrem os convívios supervisionados) e de pré-adoção, o que naturalmente constitui um trauma muito significativo para a criança..A adoção em Portugal é um sistema fechado, uma vez concretizada a criança perde os laços com a família biológica. Como juiz, como olha para esta situação? Em 2015, a lei mudou e passou a prever apenas a adoção plena, a qual pressupõe, em princípio, um rompimento total da criança com a família biológica. Isto dito, desde tal alteração legislativa, é possível, a título excecional, o tribunal - com o consentimento dos pais biológicos e desde que tal corresponda ao superior interesse da criança, satisfazendo uma necessidade atendível desta como, por exemplo, a manutenção da ligação com os irmãos - permitir contactos entre esta e a sua família biológica (só os irmãos, por exemplo, ou também os pais), bem como a obtenção mútua de informações (da criança sobre a sua família biológica e desta sobre a criança). Portanto, a possibilidade já existe e é, a meu ver, um progresso significativo na legislação portuguesa. Poderia eventualmente ponderar-se a dispensa do pressuposto do consentimento dos pais adotivos, exigindo-se apenas os demais requisitos previstos na lei, mas atendendo à sensibilidade da questão é compreensível a opção legislativa tomada. Para além dos critérios legais que referi, pressupõe-se na decisão de autorização de contactos com a família biológica por parte do tribunal uma avaliação e conhecimento também das características de tal família, bem como da respetiva aceitação ou não do seu papel naturalmente reduzido e secundário (mas, desde que exercido de forma positiva, eventualmente relevante) na vida nova da criança..Poderia ser diferente? Se fosse haveria mais crianças a sair de instituições? Refira-se, neste contexto, e para que se compreenda a dificuldade deste tipo de soluções, que os modelos de adoção restrita (até 2015) e de apadrinhamento civil (figura que veio substituir em 2015 a adoção restrita) não têm tido sucesso em Portugal, o que tem que ver, não só, mas sobretudo, com a dificuldade já referida no próprio relacionamento entre os pais adotivos ou padrinhos, de um lado, e os pais biológicos, do outro.