Maiorias absolutas: "A oposição fica a mandar bolas à trave"
Ferraz de Abreu, que viria a ser presidente do PS até 1991, passava o testemunho da liderança parlamentar a Jorge Sampaio, que a levaria até 1988, e que tinha herdado de José Luís Nunes; Vítor Constâncio era secretário-geral [ficaria até 1989] sucedendo a Mário Soares; Cavaco Silva, eleito em 1985, estava a meses de conseguir a primeira maioria absoluta. O PRD abriu-lhe as portas quando a 3 de abril de 1987 fez cair o governo minoritário do PSD. "A benesse da moção de censura", escreveria, anos mais tarde, Cavaco Silva na sua autobiografia. Vítor Constâncio ainda tentou, depois da queda do executivo, criar um governo que juntasse PS, PRD e PCP - "geringonça" que foi recusada pelo Presidente da República.
Mário Soares, eleito Presidente a 16 de fevereiro de 1986 [a posse foi a 9 de março], depois da tensa disputa com Freitas do Amaral, dissolve o parlamento e a 19 de julho de 1987 Cavaco Silva com 50.22% dos votos consegue a eleição de 148 deputados [tinha 88 eleitos em 1985] dos então 250 que constituíam a Assembleia da República.
A fita do tempo regista os "estragos" no partido socialista; três líderes até 1995 (Constâncio, Sampaio e Guterres) e cinco líderes parlamentares: Sampaio, Guterres, Jaime Gama, Almeida Santos e Jorge Lacão. Seria Francisco Assis, já em 1995, quando António Guterres ganha as eleições legislativas, a tomar as rédeas parlamentares.
Nessa noite de julho de 1987, o PRD cai a pique e passa dos 45 deputados que tinha para apenas sete, o CDS vira o "partido do táxi" [quatro deputados, quando tinha eleito 22 dois anos antes] e a CDU cai dos 38 para 31 deputados. Os socialistas sobrevivem e elegem mais três deputados ficando com 60. Hermínio Martinho, nessa altura, vice-presidente do PRD, [Ramalho Eanes era o presidente do partido] disse mais tarde que Mário Soares tinha sido avisado da possibilidade de uma maioria absoluta, coisa de que "ele [Soares] não estava à espera".
Octávio Teixeira, que sucedeu a Carlos Brito na liderança parlamentar do PCP [Álvaro Cunhal seria secretário-geral até 1992, altura que Carlos Carvalhas entraria para ficar até 2004], recorda o "esvaziamento completo" que as maiorias absolutas de Cavaco Silva - entre 1987 e 1995 - provocaram no parlamento. "Tudo dependia da vontade e da bonomia do partido maioritário" porque os "outros partidos não contavam para nada".
"As dificuldades não passavam apenas pela questão das votações", explica, "porque isso era dado como adquirido, só passava o que o partido maioritário queria. O que se passava no plenário também se passava nas comissões que têm todas a ponderação de voto do plenário, por isso em todas elas havia uma maioria absoluta do PSD. E para além das votações, os próprios agendamentos de matérias que deveriam ser discutidas no plenário, e que são decididas na conferência de líderes, eram travadas por imposição do partido maioritário".
O antigo líder parlamentar comunista não tem dúvidas de que as maiorias absolutas causam um "enfraquecimento da democracia" e receia que também agora, com António Costa, não haja mudanças. "Sobe sempre à cabeça do partido maioritário e do governo essa ideia do "eu quero, posso e mando". E por isso, acho difícil, embora não exclua a hipótese, que venha a haver uma grande alteração do comportamento em relação às outras maiorias absolutas".
Manuel Monteiro, que apanhou "a segunda maioria" como líder do CDS, entre 1992 e 1995, e que era presidente da Juventude Centrista quando, em 1987, Cavaco Silva ganhou a primeira maioria, lembra que o então primeiro-ministro "não era uma pessoa muito dada aos diálogos com os partidos da oposição, a não ser quando havia cimeiras europeias, só nessa altura ela chamava os líderes da oposição".
O problema, para além deste isolamento, está no facto de "a verdadeira sede de poder passar do parlamento para a direção do partido que ganha e para o governo" e deixar "a oposição a mandar bolas à trave". Basicamente, diz, os partidos da oposição apresentavam "propostas sabendo que iam chumbar para depois tirar partido disso fora do parlamento". E recorda mesmo, o caso de 1994 quando "nós que tínhamos cinco deputados propusemos uma moção de censura. Obviamente condenada a fracassar, mas era um ato político simbólico para marcar uma posição".
E se não há parlamento, há a rua que se transforma "num palco político. Percebemos, nessa altura, que nossa capacidade de afirmação não era do parlamento para fora, era da rua para dentro do parlamento. Eu tinha aquelas semanas temáticas com lavradores, pescadores, etc... com as quais procurámos compensar a ausência de concretização de medidas nossas, propostas nossas na Assembleia da República".
E agora? "Isto já se viveu e provavelmente voltar-se-á a viver. O António Costa disse que ia dialogar com todos, até pode pretender isso, mas na altura da decisão nada muda. Não é por acaso que na noite eleitoral Jerónimo de Sousa chamou a atenção para a eventualidade da agitação de rua voltar", sublinha.
O socialista João Proença, que nesse período era secretário-geral adjunto da UGT e o responsável na central sindical pelas negociações na Concertação Social, e que lembra a primeira greve geral em Portugal [decretada em conjunto por CGTP e UGT], desvaloriza o que classifica de "demonização" que o PCP faz das maiorias absolutas.
"Não são diferentes as maiorias absolutas de uma maioria relativa em termos de atuação do movimento sindical. É igual, são uma realidade em democracia como as relativas, como as coligações de governo, como os blocos centrais. Então a geringonça não foi uma maioria absoluta? Sobretudo a primeira, não era uma maioria absoluta para governar? Claro que era", afirma.
João Proença, que diz não ter tido "problemas" em negociar com o governo de Cavaco - "era fácil, não havia problemas. Temos é que perceber a dinâmica da relação de forças" -, considera "um absurdo" que se diga que "por serem governos de direita são automaticamente contra os trabalhadores, mas que se forem de esquerda automaticamente são a favor".
"Há que saber dialogar com governos que foram eleitos pelo povo. O povo é que dá as maiorias absolutas não é o governo", conclui.
Se nos oito anos de maiorias absolutas de Cavaco Silva, o PS teve três secretários-gerais e cinco líderes parlamentares, nos quatro anos de maioria de José Sócrates os "estragos" no PSD foram maiores. Quatro presidentes do partido [Santana Lopes, Marques Mendes, Luís Filipe Menezes e Manuela Ferreira Leite] e cinco líderes parlamentares: Guilherme Silva, Marques Guedes, Santana Lopes, Paulo Rangel e Montalvão Machado.
Guilherme Silva, que liderou a bancada social-democrata nos primeiros tempos da maioria absoluta de José Sócrates, reconhece que se fica numa posição "muito mais difícil, mais dificultada e tem um ónus acrescido que é cada momento denunciar os atropelos. É preciso esse esforço e ir passando para a sociedade, para a opinião pública, esses atropelos como os que aconteceram com Sócrates".
O antigo deputado sublinha o que considera serem "os ajustes de contas com o passado, as cedências" que foram feitas. "As maiorias absolutas trazem, muitas vezes em si, um embrião que leva os titulares dessas maiorias a olhar um bocadinho para trás, para toda uma construção legislativa que foi sendo adquirida por consensos, porque anteriormente não havia maioria absoluta e era necessário fazerem-se essas negociações. E nesta primeira oportunidade têm o impulso de alterar e repor todo aquilo que era a sua opinião, que era a seu objetivo, que era o que pretendiam e que não tinha conseguido porque não tinham essa maioria".
Guilherme Silva que esteve nos dois lados da barricada, na maioria absoluta de Cavaco e contra a de Sócrates, estabelece diferenças que diz serem significativas. Do lado socialista houve "toda aquela tendência de asfixiar a sociedade, de calar as vozes incómodas e um certo domínio da comunicação social, a tentativa de controle do órgãos de maior penetração. Essa é uma marca absolutamente intolerável, inaceitável do uso da maioria absoluta. Com o Prof. Cavaco, e eu vi isso, vivi isso, e ele terá os seus defeitos como todos temos, mas o sentido muito acentuado que ele nos transmitia do interesse nacional foi uma coisa que me marcou muito".
O exemplo? "O Prof. Cavaco Silva chamava-me várias vezes e dizia sempre: "cuidado, cuidado, cuidado com as concessões. Temos de compreender que as coisas são relevantes, mas o interesse nacional, mas o interesse nacional, o interesse nacional é que é importante". E por acaso registei sempre uma diferença de postura entre o partido que estava no poder e o que estava na oposição que dizia sim a tudo, concordava com todas as reivindicações corporativas". E depois há um "facto: as maiorias absolutas inevitavelmente causam estragos nas lideranças da oposição".
Francisco Louçã, que na altura de Sócrates liderava a bancada do Bloco de Esquerda (o partido nasceu depois das maiorias de Cavaco), diz que "a tentação de poder de um partido com maioria absoluta é soltar o animal feroz [expressão que ficou célebre nesses anos]. Naquele tempo, essa maioria absoluta provocou conflitos muito fortes, o mais importante foi com os professores, como toda a gente se lembra, e portanto foi um rolo triturador. Transformou as escolas num purgatório".
"No parlamento, e são muitas as pessoas desse tempo que lá estão agora, o Augusto Santos Silva, a Ana Catarina Mendes, etc... basicamente o plenário era uma reprodução do que o governo decidia, nunca havia negociação com nenhum partido e as comissões eram terra queimada, não funcionavam. Até houve uma comissão de inquérito ao BCP que o PS teve que aceitar, mas impondo uma regra: não se pode ouvir ninguém. E isso com um à vontade e uma desfaçatez que a maioria absoluta permite", recorda.
O antigo dirigente do BE avisa que "uma maioria absoluta com os partidos que temos em Portugal é uma espécie de biombo para os interesses económicos. Não é por acaso que dois bancos se atrevem a fazer declarações políticas de saudação à maioria de Costa. É uma parolice, mas demonstra que o interesse financeiro se sente à vontade para festejar as portas que se lhe abriram".
Bernardino Soares, na altura líder parlamentar do PCP, não tem "memória de qualquer tentativa de negociação, salvo quando as decisões eram de dois terços. E, portanto, havia negociações do PS com o PSD, de resto, exercitava-se a maioria absoluta. E não havia grandes contemplações em coisas, aliás, muito negativas. Foi um tempo onde se fizeram privatizações grandes, em que o governo encerrou milhares de escolas, o Correia de Campos encerrou serviços de atendimento permanente, de maternidades por esse país fora, foi um tempo de grande, como nós dizemos aqui no PCP, de grande ofensiva, de grande ofensiva".
O antigo autarca de Loures e membro do Comité Central recorda um "elemento que contrariava, por vezes, uma certa tendência da maioria absoluta do PS de ultrapassar os direitos das oposições, que era o Jaime Gama por estranho que isto possa parecer. O presidente da Assembleia da Assembleia da República tinha uma posição própria, muito sólida e fazia a questão de a vincar mesmo em oposição ao seu próprio partido. Muitas vezes era ele que contrariava certos ímpetos da maioria".
Bernardino Soares assegura que há um sinal - os pedidos de autorização legislativa - que permite avaliar da "vontade de envolvimento, de transparência e debate por parte do governo", coisa que "não existiu em Sócrates". Nessa maioria, lembra, "era useiro e vezeiro o governo em pedir inúmeras autorizações legislativas. Só discutia de forma mais breve o pedido e nem havia depois trabalho na especialidade".
Um aviso: "Um governo quando tem uma maioria absoluta pode retirar uma série de coisas que são da competência do parlamento, em termos legislativos, que são de reserva relativa e não reserva absoluta, para poder legislar ele próprio por autorização legislativa. Esse é um instrumento que esvazia o parlamento, e que é muito usado quando há maioria absoluta, porque a partir daí quem legisla é o governo".
Uma quase certeza: "Suponho que agora não vai ser diferente. Pode ser um bom barómetro para avaliar se estas palavras de ocasião do António Costa se vão concretizar ou não."