Comecemos pela cozinha: ensinar a fazer uma tortilla pode ser um delicado momento de cinema. É pelo menos isso que se testemunha algures a meio de Madres Paralelas, depois de a personagem de Penélope Cruz perguntar à de Milena Smit se esta sabe descascar batatas. Assim nasce uma cena de culinária que escapa a qualquer impressão de trivialidade doméstica, porque no seu âmago contém, como ingredientes bem misturados, uma atitude de compleição materna (que vem preencher uma carência particular) e a transmissão de identidade cultural. Cruz, a mulher quarentona, quer passar à jovem uma sabedoria que está para além da arte da frigideira. Quer dizer a alguém de outra geração que é preciso conhecermos o passado para decidirmos onde queremos estar no futuro. Entre um e outro, a lente de Pedro Almodóvar percorre os caminhos tortuosos do melodrama..YouTubeyoutubeHBDziWb3wO0.Depois de Dor e Glória, primeiro título da fase madura do realizador manchego, que colocava a tónica numa personagem masculina, Mães Paralelas volta-se para o universo feminino que há muito lhe dá fama - e, já agora, é mais do que justo reconhecer que ninguém filma Penélope Cruz como ele. Nesta história, ela é Janis, uma fotógrafa que engravida de um arqueólogo forense (o instante da conceção, magnífico, é dado por uma cortina branca que esvoaça no ângulo de visão exterior de um quarto), e, ao perceber que desse caso amoroso não pode resultar uma vida conjunta, decide ser mãe solteira, com orgulho de dar continuidade a um legado (também a sua mãe e a sua avó o foram). Uma vez na maternidade, conhece a adolescente Ana (Milena Smit), muito menos otimista, travando uma amizade rápida que se confunde com o trabalho de parto de ambas..Neste primeiro encontro hospitalar apresenta-se também a amiga para todas as horas interpretada por Rossy de Palma, pronta a auxiliar Janis na sua nova etapa, e a mãe de Ana (Aitana Sánchez-Gijón), uma mulher independente que se compromete a estar do lado dela, apesar de se demitir desse papel à primeira oportunidade, ansiosa com a sua carreira de atriz. São personagens secundárias que merecem a referência porque trazem ao filme ora humor ora gravidade, esta última no que diz respeito à reflexão sobre o instinto maternal. Almodóvar concede, aliás, à mãe ausente de Ana uma preciosa cena confessional, e lança sobre todas as mães um olhar absolutamente compreensivo. No caso, Janis é quem mais precisa desse olhar, ao descobrir e esconder uma verdade sobre os bebés que se cruzaram naquele dia na maternidade....Entre segredos, dilemas morais e reviravoltas, as duas protagonistas voltam a encontrar-se e, durante algum tempo, formam a tal existência doméstica que dá azo a ensinamentos sobre tortillas..Adivinhamos quase sempre o nível seguinte de revelações, e o que está destinado a acontecer, mas nessa previsibilidade do enredo Almodóvar trabalha com extrema subtileza a confluência para um dos finais mais comoventes e políticos da sua obra. Algo que tem que ver com o início de Mães Paralelas, quando Janis pede ao seu amante arqueólogo que a ajude a conseguir licenças para escavar uma vala comum na vila da sua infância, onde a família diz que está enterrado o seu bisavô, uma das 100 mil vítimas dos franquistas durante a Guerra Civil..De resto, o realizador contempla esta ferida aberta da sociedade espanhola com a mesma veneração humana que esteve por trás de Volver (2006): "Sempre admirei e invejei a naturalidade com que os meus conterrâneos falam dos mortos, cultivam a sua memória e cuidam das suas sepulturas para sempre." Aí reside a dupla face de Janis num filme que embala o passado e o futuro, a vida e a morte, assentando a sua evolução no peso das escolhas das personagens e na busca de um apaziguamento íntimo face às atrocidades históricas..A essência de Madres Paralelas é a solidariedade feminina. Ou seja, a forma como duas mulheres se unem por experiências diferentes de maternidade, num impulso de entreajuda que revela a beleza dos seus sentimentos e a sua determinação. É um dialeto muito almodovariano, que encontra expressão de conforto nas cores do apartamento de Janis, nos tons de vermelho das suas camisolas e no lembrete estampado numa t-shirt: "We should all be feminists." Essa t-shirt enverga-a Penélope Cruz, com toda a propriedade, na pele da personagem que se entrega à angústia florida do seu segredo, ao mesmo tempo que responde com firmeza ao desafio das voltas da vida..Há ainda um encanto específico no melodrama segundo Almodóvar que não abunda no cinema moderno: o gosto simples de contar uma história. Não é sequer a questão clássica da narrativa em imagens, mas aquela tendência que as personagens têm para se narrarem umas às outras, mesmo que o espectador não "precise" desse resumo do que viu acontecer antes. Almodóvar valoriza como poucos a sensualidade - e, por vezes, o lado lúdico - das palavras, a sua aptidão para libertar o desejo, ou apenas aproximar as pessoas. E nessa prática do "fala com ela", que se dissemina por Mães Paralelas, renovamos o prazer de entrar num filme com a sua assinatura. É uma das pérolas do ano..dnot@dn.pt