Mãe da Guatemala perdeu as filhas pela segunda vez em Barajas

Ana e Cristina tinham sido adoptadas por um casal espanhol.
Publicado a
Atualizado a

Poucos dias depois do acidente aéreo que a 20 de Agosto matou 154 pessoas em Madrid, Mario encontrava-se na Avenida da Reforma, na cidade da Guatemala. Haviam passado mais de 15 anos desde que vira Maria Pérez pela última vez no notário em que trabalhava e quando a viu passar veio-lhe à cabeça o momento em que tratou da adopção das suas duas filhas. Na altura, tinha-as salvo de uma vida condenada à miséria. Hoje era o portador de uma notícia de morte.


"Senhor! Que surpresa vê-lo por aqui," disse Maria, sem saber o que a esperava.


"Tem um bocadinho?" perguntou Mário.


A mulher assentiu. Ela sabia que se tratava das filhas, só podia ser.


Então o advogado continuou: "Já ouviu falar do acidente em Espanha?"


A pergunta não pedia resposta. Serviu apenas para dar tempo e coragem ao emissário antes de contar a notícia: as suas filhas estavam no avião que se despenhou em Barajas, a 20 de Agosto e, muito provavelmente, contavam-se entre as 154 vítimas mortais do acidente. Mario explicou a Maria Pérez que a identificação dos cadáveres levava já vários dias e que a mulher podia ser a chave para encerrar o processo. Estaria nela o ADN que coincidia com o das duas crianças que ainda faltava identificar?


A resposta chegou à Guatemala semanas depois. As vítimas eram mesmo as filhas biológicas de Maria Pérez, Cristina e Ana Isabel, que depois da adopção receberam o apelido Gallego Ortega.


Algo no coração da mulher morreu quando soube da notícia. "Tinha esperança de conhecê-las um dia. Queria que quando fossem maiores de idade soubessem quem era a sua verdadeira mãe. Queria vê-las casadas e explicar-lhes," disse Maria a um jornalista espanhol do El Mundo.


Maria, de 44 anos, não se esqueceu dos dias em que deu à luz as raparigas. Primeiro veio Cristina. Era o resultado de um amor furtivo da viúva. O pai da bebé era um namorado que como chegou também se foi. E Maria, já com três filhos, não podia mantê-la também a ela. Desesperada, e seguindo o conselho de uma vizinha, deu a filha para adopção. A decisão já estava tomada, a família Gallego Ortega "escolhida", quando Maria deu à luz no hospital Bella Aurora. Foram os pais adoptivos que pagaram o luxo daquele centro médico, um hospital privado de primeira categoria, que está entre os cinco melhores da América Central.


De outro romance fugaz nasceu Ana Isabel. Maria correu para Mário. Mas quando correu mal, ela achou que seria bom manter as irmãs juntas. O casal Gallego Ortega, que havia levado Cristina, aceitou adoptar Ana Isabel também.


Maria Pérez chorou pelas suas filhas que teve de abandonar à nascença quando na Catedral de Almodena, em Madrid e por toda a Espanha, choravam as vítimas do voo JK 5022, cujo funeral decorreu no dia 11 de Setembro.


Quando o jornalista do El Mundo lhe mostrou fotografias de Ana e Cristina, Maria regressou a um passado que não chegou a viver. Descobriu as filhas em retratos desde os primeiros anos no colégio de Las Palmas até ao seu derradeiro ano em que tinham sorrisos largos. Desde a adopção, era a primeira vez que via as filhas que o destino quis que perdesse uma segunda vez.


O jornalista espanhol escreveu: "Maria vê as imagens. Pela cara escorrem-lhe gotas salgadas que limpa com as costas das mãos, quase arrancando a pele. As suas mãos gretadas de lavar roupa alheia, não param de mexer-se. Ela é empregada numa casa de ricos na cidade. 'São bonitas,' disse. 'Ana é igual a mim quando era nova'. Se lhe tirássemos do rosto as marcas dos anos de melancolia e lhe devolvêssemos brilho à íris ela seria Ana. Efectivamente."


Mesmo assim Maria não estava arrependida por ter dado as suas filhas ao casal Gallego Ortega. Originários das ilhas Canárias, Pedro e Maria del Carmen emigrados e não tinham dificuldades económicas. Maria pensava que eles podiam oferecer-lhes uma vida diferente, de sonho. E não se enganou. Ana e Cristina tiveram uma infância privilegiada como nunca teriam na Guatemala. Foram para um colégio de ricos, viajavam muito e viviam numa zona VIP de Las Palmas. A morte trágica no acidente de avião, foi "o azar que ninguém pode controlar".

Artigos Relacionados

No stories found.
Diário de Notícias
www.dn.pt